Orville Faubus, governador do Arkansas de 1955 a 1967, estava muito mal nas pesquisas eleitorais para sua reeleição, pois seu governo desagradou a todos. Só um milagre o salvaria.

Foi quando a Suprema Corte americana decidiu que as escolas públicas de todo o país deveriam aceitar nas mesmas salas tanto alunos negros como brancos. Nisso, Faubus viu uma possibilidade. Primeiro, ele ligou para Washington perguntando se mandariam forças federais para conter a violência que eclodiria nas escolas no próximo período letivo, o que deixou o governo federal em alerta. A verdade é que não havia indícios de violência, era tudo invenção. Mas Fabus providenciaria o circo sangrento.

A seguir, o governador pediu ao comissário de polícia e amigo pessoal Jimmy Karam que organizasse secretamente uma quadrilha de brutamontes. Quando as aulas começaram, a quadrilha agrediu um grupo de estudantes negros que pertenciam a um time de basquete, e esses revidaram com igual violência. Porém, a versão da polícia foi a de que os alunos é que agrediram os brancos.

Faubus falando a uma multidão que protestava contra a integração das escolas em Little Rock
Faubus falando a uma multidão que protestava contra a integração das escolas em Little Rock

As rádios locais divulgaram a versão oficial, e organizações racistas se reuniram para defender a honra de “seus irmãos brancos”. Quando as forças federais chegaram, um clima de terror e de ódio racial havia se alastrado. Fabus, então, adotou na campanha o discurso de que o governo federal estava conspirando para destruir a autonomia dos estados federados ao dar liberdade para a população negra criar o caos. Os brancos deveriam, portanto, se unir contra o inimigo em comum.

Foi um milagre eleitoral. Faubus, que os analistas acreditavam já estar derrotado, recebeu 80% dos votos.

“Política, na prática, seja qual for a ideologia, sempre consistiu na organização sistemática do ódio”, resumiu Henry Adams. E todos os políticos e marqueteiros eleitorais de hoje em dia sabem disso. Afinal, a história ensina essa lição. Na Guerra Fria, os americanos odiavam os comunistas, e os soviéticos odiavam os burgueses. Na Revolução Francesa, Jacobinos e Girondinos odiavam-se reciprocamente, e ambos odiavam a monarquia. No Brasil Imperial, os conservadores saquaremas e os liberais luzias detestavam-se com igual força — mas Holanda Cavalcanti dizia que nada era mais parecido com um saquarema do que um luzia no poder.

E isso é o que temos neste 2º Turno das eleições presidenciais de 2014. Ódio organizado e direcionado para converter-se em votos. Nas redes sociais, o que é mais compartilhado não são as propostas de Dilma e Aécio, mas memes, slogans e notícias tendenciosas sobre o candidato adversário. Fatos são distorcidos, gráficos exageram ou falseiam os dados, caricaturas grosseiras fazem rir os soldados de um dos exércitos.

E o alvo dessas ofensas não é apenas o candidato odiado, mas também seus eleitores.

O curioso é que, salvo algumas questões pontuais, na prática o programa e a ideologia de ambos os candidatos e dos partidos que eles representam são muito semelhantes. Ambos são sociais-democratas e nos principais aspectos a política econômica do governo de Lula (e de Dilma) foi o prosseguimento da política econômica de Fernando Henrique Cardoso.

Em seu livro Sobre Formigas e Cigarras, inclusive, Antônio Palocci afirma que recebeu das mãos de Armínio Fraga (declaradamente futuro Ministro da Fazenda se Aécio sair vitorioso), durante a equipe de transição FHC/Lula, um documento então chamado “Agenda Perdida”, em que o economista Ricardo Paes de Barros apresentava o projeto do Bolsa-Família, formulado durante o governo do PSDB.

Mas os marqueteiros de Dilma e de Aécio sabem muito bem que é importante organizar sistematicamente o ódio. Para isso, cada um pinta o rival com as cores do que o seu eleitorado imagina serem as do próprio demônio. Isso jamais é declarado, mas fica subjacente em toda a campanha eleitoral.

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Forja-se, então, uma polarização entre direita e esquerda, muito mais retórica do que prática.

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Para a campanha de Aécio, Dilma é a representante de um partido “esquerdista” que um dia transformará o Brasil numa grande Venezuela com o objetivo de cercear as nossas liberdades individuais e corromper a administração pública ainda mais. Para a campanha de Dilma, Aécio é um “coxinha da direita conservadora”, um segundo Collor que leiloará o Brasil ao capital internacional até regredirmos ao Período Colonial com o objetivo, bem, de cercear nossas liberdades individuais e corromper a administração pública ainda mais.

Os programas de governo ficam para segundo plano (até porque não são muito diferentes nos aspectos essenciais) e o palco é ocupado por denúncias e acusações que chegam a atingir a vida privada dos candidatos. A estratégia de ambos é destilar o medo e fazer com que o voto do eleitor não seja tanto a favor de um candidato, mas contra o outro, afinal, há uma distinção muito importante apresentada por ambas as campanhas: se Dilma se reeleger, o caos será instaurado; se Aécio for eleito, o caos será instaurado.

As redes sociais não permanecem livres dessa batalha campal. Ao contrário, elas são o principal front em que dois exércitos do ódio e do asco por um candidato se reúnem para combater. E quem não participa dessa guerra adota qualquer tática para salvar seu couro e escapar das balas perdidas.

Essa organização sistemática do ódio consiste em definir os outros, os inimigos, como menos-que-humanos. Petralhas e coxinhas são rótulos que substituem certas características da individualidade humana por generalizações grosseiras que possibilitam tornar o outro, durante o 2º Turno, mero receptáculo de nosso deboche e indignação.

Pois eu digo que eu tenho um sonho. E no meu sonho delirante, ambos os candidatos, no último debate a ser televisionado no dia 24, decidem fazer perguntas baseadas nas regras do diálogo não-violento de Arthur Martine. Durante o debate civilizado e voltado para a análise dos programas de governo, ouviríamos numa réplica um dos candidatos falar algo mais ou menos assim ao seu adversário:

“Obrigado, candidato. Embora discordemos, você conseguiu expressar minha posição nesse tema de forma tão precisa que eu gostaria de ter colocado dessa maneira. E veja que nossos programas de governo concordam no ponto X e no ponto Y, correto? Além disso, confesso que minha futura gestão utilizará algumas das melhores iniciativas da gestão do seu partido quando estava na Presidência, pois meu partido aprendeu com o seu em relação ao ponto Z e W. Porém, deixe-me fazer as seguintes críticas objetivas a sua proposta…”

Mas, como disse, isso é um quase delírio. Na situação em que estamos, parece até uma piada. O próprio tempo que os candidatos dispõem durante um debate para responder e fazer réplicas e tréplicas é reduzido demais para que ocorra um diálogo saudável.

Parece até que as emissoras brasileiras querem estimular as simplificações e a estratégia do ataque e do ódio. Afinal, diálogo civilizado não dá ibope — e muito menos voto.

Victor Lisboa

Não escrevo por achar que tenho talento, sequer para dizer algo importante, e sim por autocomplacência e descaramento: de todos os vícios e extravagâncias tolerados socialmente, escrever é o mais inofensivo. Logo, deixe-me abusar, aqui e como editor no site <a>Ano Zero</a>."