De mochila no Himalaia


“Bem-vindo ao Himalaia”, dizia a placa em inglês. Até aquele momento eu ainda não estava certo se aquela viagem tinha sido uma boa ideia. 

Nepal

Foram 14 horas dentro de um ônibus que parecia ser da década de 60, pronto para desmanchar. Pior: a estrada percorrida era horrível e cheia de curvas, as janelas do ônibus não fechavam e o vento das montanhas teimava em entrar durante a noite.

Fatores que transformaram aquela na pior viagem de ônibus que já fiz na vida. E olha que a concorrência é brava. Mas bastou perceber que, sim, eu estava no Himalaia, para o arrependimento ficar para trás. O esforço tinha valido a pena.

Minha estreia no Himalaia foi em McLeod Ganj, uma vila no norte da Índia que se tornou mundialmente famosa por ser a casa do Dalai Lama. Cerca de 15 mil tibetanos vivem nessa região, que virou casa para o Governo em Exílio do Tibete depois que a China invadiu o país, em 1950. Tenzin Gyatso, o 14º Dalai Lama, fugiu da terra natal cerca de uma década mais tarde, junto com 100 mil tibetanos. Essa difícil travessia, feita pelas montanhas nevadas do Himalaia, é relembrada num museu de McLeod.

Como já contei aqui no PapodeHomem, eu morei durante seis meses na Índia. A viagem para McLeod Ganj foi a primeira de muitas que fiz no país. E uma das melhores.  Atrás da vila, montanhas nevadas. Nos templos e nas ruas, orações, monges e pessoas meditando. E ainda tinha uma cachoeira por perto que era usada pelos monges como local para lavar roupas.

Monges em McLeod Ganj (Foto: Greg Goodman)

Para completar, o cruzamento principal da cidade tinha uma enorme foto do Pierce Brosnan, lembrando aos visitantes que aquele era o tipo de lugar que gente como o 007 gosta de frequentar. Enfim, um lugar único.

Fiquei 4 dias em McLeod. Jurei que ia voltar. No restante do nosso tempo no país, cogitamos até largar nossos empregos numa empresa de TI para fazer trabalho voluntário e viver em McLeod. Não rolou, mas o juramento de voltar lá permanece. Por sorte, passei pelo Himalaia em outras duas ocasiões.

A segunda vez também foi na Índia: em Manali. É engraçado pensar como que o estereótipo indiano é de um país quente, cheio de encantadores de serpentes, elefantes e um povo zen. Quase ninguém pensa num país repleto de montanhas nevadas e com lugares que têm temperaturas abaixo de zero durante boa parte do ano. 

Mas essa Índia também existe.

Assim como a viagem para McLeod Ganj, a ida até Manali foi complicada. Como sempre, os ônibus eram horríveis. E a estrada tem a fama de ser uma das mais perigosas do mundo. Estivemos lá em janeiro de 2012, no inverno. Fomos recebidos com metros de neve e gelo e com boa parte da cidade fechada.

Neve em Manali, norte da Índia

Manali tem milênios de história. Para a tradição hindu, foi lá que repousou a arca em que estava Manu, o primeiro rei que governou a terra. Assim como Noé, Manu teria sido avisado por deus, neste caso Vishnu, de que uma grande enchente destruiria toda a vida no planeta. Para sobreviver, ele fez um barco enorme, que depois da chuva torrencial foi parar em Manali. Por isso, a cidade foi batizada em homenagem a Manu, que a partir daquele local teria começado a repovoar a Terra.

Além de templos, Manali tem uma das mais famosas estações de esqui do país e a fama de ser uma grande produtora de maconha, embora eu imagine que isso só aconteça quando todo o vale não está congelado pelo inverno.

Dizem que, no verão o rio Beas, que separa Old e New Manali, recebe milhares de turistas, na maioria estrangeiros. Cabos de aço são atravessados de uma ponta a outra do rio. Nessas épocas, a moda é atravessar o rio pendurado no cabo, com eventuais paradas para um mergulho rápido nas águas geladas que vêm do Himalaia. Depois, todos correm para os bares de Old Manali, que ficam repletos de mochileiros de todas as nacionalidades, principalmente israelense.

Old Manali

No inverno eu não vi nada disso: as ruas estavam tomadas por monges, casais em lua de mel e um ou outro mochileiro que tinha preferido a neve do Himalaia do que as praias de Goa, o programa preferido dessa tribo durante o inverno indiano.   

Minha terceira passagem pelo Himalaia foi meses depois, mas já em outro país: o Nepal. Esmagado entre a China, a Índia e o Butão, o Nepal é dono de algumas das maiores montanhas do mundo. A chegada no país, pelo aeroporto de Katmandu, já foi marcante. É impossível não se impressionar com as Praças Reais, com as estupas budistas e com as ruas repletas daquele tipo de poluição visual que só a Ásia é capaz de fazer.

Mas a cidade mais bonita do Nepal é outra: Pokhara, a cerca de 6 horas de ônibus da capital e aos pés do Annapurna, um dos maiores picos do mundo. Com um lago cheio de barquinhos coloridos (e que reflete a imagem das montanhas), estupas budistas e bons restaurantes, essa é outra cidade fantástica perdida no Himalaia.

“E Pokhara, como é?”, perguntei para o recepcionista do nosso hotel em Katmandu, antes de embarcar para a cidade.

“Pokhara é diferente. Pokhara é o paraíso”.

É difícil discordar dele. E olha que nos primeiros dias as nuvens escondiam completamente o Annapurna. Mas bastou o tempo melhorar para o paraíso aparecer.

Pokhara

Muitos dos turistas que passam por Pokhara fazem mais do que relaxar em bons restaurantes e tomar uma e outra cerveja na beira do lado: eles vão em busca do acampamento base para escalar o Annapurna, uma expedição que pode levar dias. Outros, alpinistas experientes e mais corajosos, estão lá para vencer a montanha.

Coisas semelhantes acontecem em McLeod Ganj, em Manali e em outras cidades do Himalaia, como as expedições até a base do Everest. O trekking é uma das atividades mais praticadas por ali. Por conta da falta de tempo, de dinheiro e do excesso de sedentarismo (não necessariamente nessa ordem), eu não fui um desses turistas.

Assim como no caso de McLeod, jurei que voltaria ao Himalaia para encarar um programa mais, digamos, atlético. No entanto, valeu a pena conhecer a face mais tranquila e relaxante da maior cadeia de montanhas do mundo, uma área que passa por Índia, China (e o território surrupiado do Tibete), Butão, Nepal e Paquistão. 

Ali estão as duas maiores montanhas do mundo, além de quase 100 picos com mais de 7 mil metros. A maior montanha fora do Himalaia tem menos que isso: é o sul-americano Aconcágua, com  6962 metros.

Mas pensar no Himalaia como o teto do mundo é fácil. O que eu aprendi viajando por lá é que tem muita gente vivendo no teto do mundo. Gente que bebe das águas do Ganges e do Indo, que nascem ali. Gente que vive em vilas perdidas no meio das montanhas. Gente que que vive perdida numa confusão política que as fronteiras atuais não dão conta de resolver, como mostram  os casos do Tibete e da Caxemira.

Deixei o Himalaia com pressa. Em meio a manifestações violentas no Nepal, fomos aconselhados pela simpática família que nos recebeu em Pokhara a deixar a cidade durante a madrugada. De lá, seguimos para Katmandu, onde pegamos o voo para Hong Kong. Ainda bem que não faltam razões para voltar.  


publicado em 11 de Janeiro de 2015, 00:00
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Rafael Sette Câmara

Virou mochileiro ao mesmo tempo em que se tornou jornalista. Desde então, se acostumou a largar tudo para trás - inclusive empregos - e cair na estrada. Ele escreve sobre viagens no 360meridianos, mas pode ser encontrado também no Facebook e no Instagram.


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