Crispin Glover e a Via Negativa | WTF #78

A via negativa, ou teologia apofática, é uma perspectiva que tenta aproximar a ideia de Deus pelo que ele não é

A via negativa, ou teologia apofática, é uma perspectiva que tenta aproximar a ideia de Deus pelo que ele não é. João Escoto Erígena coloca da seguinte forma: “Não sabemos o que é Deus. Nem mesmo Deus sabe o que é, porque ele não é coisa alguma. Deus literalmente não é, uma vez que transcende o ser”. E veja bem, essa não é uma posição ateísta de modo algum, mas apofática.

Deus, é claro, foi a ideia central do pensamento humano por vastos períodos de tempo, em vários locais do mundo. O que proponho neste artigo não é uma reflexão sobre a ideia de Deus, ou porque ela pode ter perdido valor, mas examinar os vários deuses idolatrados hoje em lugar de Deus sob uma perspectiva apofática.

Também não estou aqui afirmando que Deus tenha se tornado essas coisas, ou que deva ou não ser substituído por elas. A afirmação aqui é bem menos forte: o tipo de dedicação uma vez empreendida sob a perspectiva da existência de Deus hoje tem seu foco muitas vezes colocado sobre outras ideias abstratas. Essas ideias não são Deus, nem um substituto verdadeiro da ideia de Deus, senão pela dedicação, ênfase, atenção ou tempo aplicado nelas. Talvez possa até ser adequado clarificar isso com a ideia de necessidade: não é necessário que essas coisas sejam o equivalente de Deus em vários aspectos, embora também até possam ser.

A via negativa não está preocupada com o que Deus é, de todo modo.

Poderia ser útil usar a palavra “fé”, mas não é fato que dediquemos a uma celebridade, por exemplo, David Bowie, o exato mesmo tipo de engajamento cognitivo que muitas vezes se dedicou a um criador. Em alguns sentidos, a conexão pode se aproximar, em outros é distante. No entanto, digamos que um fã de David Bowie pode ter dedicado mais tempo, consideração e pensamento a seu artista favorito do que muitos sacerdotes ou pessoas supostamente piedosas empregaram para com Deus ou Jesus Cristo. Da perspectiva de um religioso isso pode soar uma idolatria blasfema, ou no mínimo uma falta de perspectiva; da perspectiva de um cético, pode ser indiferente; da perspectiva de alguém que é cético e sustenta o fetiche pela arte, quem perde tempo é quem foca em Deus. Estes três juízos de valor são irrelevantes para o presente artigo.

Bowie

No entanto, não estou com isso prometendo um texto distanciado de quaisquer juízos de valores. O ponto aqui é pegar emprestada a via negativa da teologia e a aplicar a outros conceitos abstratos.

O que vale neste contexto não é a qualidade, intensidade ou juízo subjetivo, mas a pura medida de tempo de envolvimento com a ideia. É um critério relativamente objetivo quanto a um único vetor: tempo de atenção.

A própria celebridade pode muito bem ser um desses focos de adoração a que podemos submeter uma perspectiva apofática. Mas a perspectiva apofática pode dizer respeito a existência de celebridades? É claro que não. Elas existem, podemos duvidar dos méritos de alguma celebridade B sem atributos quaisquer senão surgir num reality show, mas ela é assunto, e isso é critério suficiente.

A perspectiva apofática também não é meramente um ceticismo quanto ao valor relativo das celebridades como uma ideia geral – que invariavelmente penetram nossos sonhos e nossa vida, se vivemos no mundo globalizado. Podemos não ser fãs de nenhum famoso, mas isso é extremamente raro. E mesmo sem sermos grandes admiradores, indubitavelmente ocupamos nem que uma pequena parcela de nosso tempo com centenas ou milhares de nomes e leves e intermitentes impulsos de aproximação, indiferença e repulsa.

Celebridades existem como uma ideia abstrata, bem como entidades que povoam os requisitos das definições ou características definidoras de “celebridade” (a saber, fama), assim como também a uma entidade específica a que porventura o conceito se aplique adequadamente. Todas essas três coisas existem: o conceito abstrato, as entidades caracterizadas sob esse conceito, e a entidade individual que pertence a esse conjunto. Não é aí que se apresenta a via negativa.

Se não duvidamos de existência, status ou valor, quais características conectadas com a ideia são passíveis de um exame não afirmativo, de uma via negativa? A perspectiva apofática é o reconhecimento de que qualquer valor ou status, ou qualidade, de um objeto adorado é interdependente. O que afirmamos quando dizemos que alguém é célebre é que todas as definições que contradizem este vínculo entre sentido e referente não estão presentes. Nada além disso.

É claro, não estou afirmando que a via normal da linguagem, positiva – afirmativa –, é naturalmente negativa. Ela só é naturalmente negativa na medida em que a afirmação é subentendida ou desafiada. Podemos discutir a celebridade de alguém, mas nossa atenção a celebridades não se dá porque definimos o que é uma celebridade e averiguamos que preenche os pré-requisitos do uso comum da linguagem. Nosso foco mental em celebridades se dá, no mais das vezes, sem que sequer a palavra ou conceito “celebridade” surja. Estamos, no mais das vezes, fazendo um uso não apofático para explicitar o tema, exatamente como João Escoto ou Meister Eckart falam em Deus para negar Deus, e assim revelar Deus.

Quando refletimos sobre o conceito “celebridade” isso em si já desafia as prerrogativas naturais do conceito espontaneamente usado – ou nem usado, sequer subentendido. Usamos o rótulo para fazer algo com a ideia, mas a celebridade em nossa mente muito frequentemente está ali independente de nosso conceito de celebridade.

Deus é mais comum do que nossas ideias e expectativas sobre Deus, e esse é um tema da via negativa.

Na perspectiva apofática, a própria presença de um conceito de Deus é o que nos impede de reconhecer a divindade. Ao “saber” o que Ele é, perdemos o que ele é. Quanto menos sabemos o que é Deus, com mais claridade Deus se apresenta. É a “douta ignorância”, quando não é a “ignorância douta”. Não é tanto não saber algo que nos leva a Deus, mas saber algo que nos distancia Dele. Deus é tudo aquilo que não é afirmado pelas ideias e pelos conceitos de “Deus”.

Digamos que eu seja fã de Crispin Glover, e de fato sou. Provavelmente dediquei mais tempo nessa minha vida a Glover do que a considerações sobre Deus. Afinal, ouvi falar nele antes de ouvir falar em João Escoto ou Meister Eckart.

Glover é, para mim, uma celebridade. Aos 10 anos de idade vi De Volta Para o Futuro, mas o ator só começou a preencher o espaço total da mente quando boatos sobre sua não participação nas sequências começaram a surgir.

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Antes de continuar com a discussão sobre Glover, um breve interlúdio.

É bom apontar que o próprio conceito de “futuro” é outro candidato forte para a via negativa. Normalmente ele é tomado de forma catafática (o oposto de apofática): o futuro vai ser melhor, vai ser pior, vai ter mais ou menos carros e ser pior, ou melhor, por isso, carros que voam, ou trenós termonucleares, ressurgimento de Jesus na Terra, cataclisma atômico, mais guerras, menos guerra, mais desigualdade, mais igualdade. Boa parte do discurso político consiste em não tomar a via negativa quanto ao futuro. (E o que dizer então do passado!)

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Retomando Glover, dois aspectos sobre sua relação com De Volta para o Futuro (e o ator, pensador, realidade básica dos fenômenos, músico e comediante não se resume a esse filme, absolutamente!) são importantes:

1. Ele não gostou do final de seu personagem no primeiro filme; considerou o fato de George McFly ter ficado rico, e riqueza ser tão naturalmente ligada à felicidade, como pura propaganda materialista das corporações por trás dos estúdios. Como ator se sentiu no dever de levar seu entendimento ao diretor e roteirista, que o consideraram um lunático.

2. Após isso, por acreditar estar promovendo como ator valores em que não acreditava, decidiu não participar das sequências. Os produtores destes filmes utilizaram outro ator com uma máscara prostética com a face de Crispin. Glover processou o estúdio, fez um acordo com os produtores, e com isso se formou o precedente de que a face de alguém pertence a própria pessoa, e não a um personagem que ela porventura possa representar.

Glover é considerado excêntrico, quando não mais do que isso, por levar sua posição política às últimas consequências, e não aceitar o negócio fácil de fazer dois filmes extremamente populares para apenas encher o cu de dinheiro. A ideia de que o fim de George McFly vendia (não apofaticamente) o Deus Materialismo, e se curvava perante as corporações, é tida como pura teoria da conspiração pregada por um ator esquisito.

Porém, o fato é que Glover precisava entender George McFly. A gênesis de De Volta para o Futuro é um roteiro muito mais subversivo, onde Marty é um pirata de filmes de Hollywood. (Agora, se esse passado Marty viesse a existir numa película alternativa, imagine só como a profecia autorrealizada do torrent não iria bombar.)

 Assim, Zemeckis negocia o roteiro com os produtores, e o futuro de George acaba como a asserção e o sucesso comercial como escritor de ficção científica. Glover não aceitou os futuros promissores (no filme e... no cinema?!), e se tornou um pária tido como esquisitão.

Mas Glover só pode ser entendido por aquilo que não é, nunca foi, nem poderia ter sido. O ator cujo rosto seguiu atuando sem ninguém dentro, o George McFly que não aceitou seu futuro “bem-sucedido”. Glover “expulsou os vendilhões do templo”, acabou com Deus futuro, Deus grana, Deus eu. E o que sobrou ninguém conhece, nem pode conhecer. Está aí, ou nem isso.

“Eu sempre gostei das coisas pouco usuais”, disse em entrevista recente ao WTF. Amém.


publicado em 21 de Janeiro de 2016, 00:00
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Eduardo Pinheiro

Diletante extraordinário, ganha a vida como tradutor e professor de inglês. É, quando possível, músico, programador e praticante budista. Amante do debate, se interessa especialmente por linguística, filosofia da mente, teoria do humor, economia da atenção, linguagem indireta, ficção científica e cripto-anarquia. Parte de sua produção pode ser encontrada em tzal.org.


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