O dia depois da crise

Uma coisa é mudar o governo, outra é mudar a política

Nota do editor: considerando ser hoje, 17/04, a votação do impeachment de Dilma na Câmara, resolvemos recolocar esse artigo em destaque na capa.

Sugerimos ainda escutar a opinião recém colhida de 17 intelectuais brasileiros sobre o atual estado de nossa democracia.

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Suponha que seu lado tenha vencido, seja ele qual for. Eu te pergunto: seria esse o fim da crise?

A velocidade da informação, a sequência hipnótica dos eventos, o enredo complexo e a sobreposição de tramas nos deixaram atordoados demais.

Mas e se o filme sempre foi esse? E se o que mudou dessa vez foi o quanto o desenrolar da história se passou diante dos nossos olhos?

“Onde há muita luz, há muita sombra”, diria Goethe.

Minha impressão é de que, em maior ou menor grau, não há nada de diferente no jogo político. A nomeação de ministros, a compra de votos, o desvio de recursos, as trocas de favores, a transparência seletiva, as decisões da corte, as rixas da imprensa: é tudo mais do mesmo. Os verbos se mantêm, mudam os nomes. Os escândalos de hoje são mais um exemplo de colapso cíclico de um sistema político anacrônico, cujas principais instituições não passam por nenhuma mudança significativa desde o século XVIII. Sistema político que insiste em se levantar apenas porque não encontramos nenhum novo modelo que possa substituí-lo.

Em um país em que a cada duas horas 7 jovens negros são assassinados, em que as famílias mais pobres suportam uma carga tributária 86% superior à das mais ricas e em que apenas 8% das população têm plenas condições de compreender e de se expressar, não me parece que a continuidade ou a ruptura de um governo sejam suficientes para o fim da crise.

A descrença central da população mundial quanto à democracia está fundada no sentimento de que as pessoas conseguem mudar o governo, mas não conseguem mudar a política. Existe uma lógica subjacente a qualquer governo que não está sob escrutínio, um paradigma que, por mais falho que seja, permanece imune às preferências e vontades da população.

Thomas Kuhn, filósofo da ciência, dizia que paradigmas não caem porque suas falhas foram expostas; paradigmas só caem quando há um novo modelo no horizonte que dê conta de solucionar os problemas que o antigo já não era capaz de resolver. Visões de mundo não rompem enquanto não puderem ser substituídas. Tenho certeza que o fim da crise não virá de mais uma temporada do velho castelo de cartas da politicagem brasileira.

Mas eu tenho uma suspeita.

Suspeito que a velha ideia de representação política esteja derretendo. Acredito que as gerações mais jovens e aquelas que estão por vir não verão sentido algum no conceito de delegar a alguém a função de representar. Essa crise de confiança que se verifica nas crescentes abstenções eleitorais pelo mundo tem gerado também uma resposta positiva, principalmente nos mais jovens.

Um novo paradigma de atuação política está nascendo

Percebendo as limitações do voto e as deficiências da representação, muitos jovens começam a se dedicar a um novo tipo de ação política. O ativismo que está nascendo - aquele que foi às ruas em junho de 2013, mas não esteve presente nas últimas manifestações contra e a favor do governo - está se pautando por causas específicas, e não mais por meio de grandes organizações de classe ou partidos.

Nada é puro e ainda estamos em um período de transição, mas antes eu achava tudo isso sem ter muito em quê me apegar. Até surgir a pesquisa o Sonho Brasileiro da Política, a cujo vídeo você assiste logo abaixo.

45% dos jovens se aproximariam da política se o processo fosse mais transparente e confiável

De todos os achados da pesquisa, o que mais me chamou a atenção são os hackers da política.

O nome hacker não se dá à toa. Hackear é entender os códigos do sistema e construir novas lógicas para transformar o próprio sistema, por dentro. Como um dos entrevistados da pesquisa definiu, “você pode hackear qualquer coisa. Mesmo. Não é algo que tem a ver só com computador.”

Os hackers da política, ainda que em minoria no universo jovem, são aqueles que modificam, transformam, criam e desenvolvem alternativas para a participação política. Em cada uma das causas em que atuam, eles estão debruçados sobre a raiz das questões, gerando soluções inovadoras para problemas públicos - desde as taxas de homicídios de jovens negros em comunidades locais até a Reforma Política, em escala nacional.

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Mais do que interessados em política, os hackers têm uma visão pragmática sobre ela, eles tomam a responsabilidade para si mesmos e se organizam para incidir sobre os processos.

Os hackers criam em torno de suas causas um espaço vivo de experimentação política, um tipo de organismo mais horizontal com decisões coletivas e descentralizadas. A isso a  pesquisa dá o nome de célula democrática. O seu poder é renovar a política e seus processos. Diante de obstáculos, essa célula resiste. E quando encontra um ambiente favorável, ela se multiplica, promovendo a transformação de um sistema que está paralisado. O diálogo das células democráticas com a política tradicional é o que permite que o jovem se aproxime das tomadas de decisão sem perder sua identidade.

Essa nova mentalidade reconstrói por completo a ideia de representação política. Para o hacker, ninguém seria capaz de fazer o que ele faz em seu nome. Em vez de buscar políticos que terceirizem sua participação na vida pública, os hackers querem um representante com quem mantenham uma interação fluída e viva. O protagonismo desses jovens coloca o mandato político em uma nova posição. O representante político para eles é mais um agente a mediar, mobilizar, persuadir, e - na maior parte das vezes - a pressionar para que as mudanças necessárias aconteçam.

Embora ainda não seja possível prever onde tudo isso vai desaguar, esses novos fazeres políticos vêm à tona carregados de esperança. E levantam minha principal suspeita: o dia depois da crise só amanhecerá quando reinventarmos nossa democracia.

E essa reinvenção se dá, sim, no macro, no desenho de novas regras para o sistema político mas também se dá no micro, dia após dia, com a participação da sociedade civil abraçando suas causas e consequentemente transformando a política, num envolvimento cotidiano.

Para aprofundar a leitura


publicado em 05 de Abril de 2016, 15:20
File

Ricardo Borges Martins

Cientista Político e ativista apostando em construções coletivas em lugares como o Pacto pela Democracia, a Virada Política e o Advocacy Hub. Pode ser encontrado no Facebook.


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