A ideia para esse texto veio de Michael Pollan. Na verdade, só a expressão “cozinhar como um ato político” foi suficiente para me motivar a escrever, e confesso não ter lido nada dele além dessa reportagem da folha linkada. Nem cheguei a assistir esse vídeo até o fim, mas creio que pode ser útil para quem se interessa pelo assunto.
Para mim, começou com a ideia de conquistar algum controle sobre o que como. Sempre comi na rua e sempre preferi a comida da rua à comida da minha mãe ou da minha vó -- o que não é tão comum entre a maioria das pessoas, pelo que entendo.
A comida em casa vem atrelada de emoções, a maioria positivas, mas também de hábitos pouco saudáveis e que em grupo se vai carregando, sem muita chance de escapar. Embora o que eu escolhesse comer fora de casa também não fosse exatamente saudável. Para mim, a liberdade era comer da melhor forma (a mais gostosa) que meu dinheiro pudesse pagar.
Com as considerações inevitáveis da idade e da saúde, com que a gente até flerta quando é jovem, mas que só depois se tornam imperativas, passei a investigar bem o que me fazia bem e o que me faz mal. Algumas coisas, como o açúcar, a gente sabe que não fazem bem, e não trazem nada ou quase nada positivo, claro. Mas há elementos talvez mais pessoais, que é o que talvez se estuda em alimentação funcional, mas também se lida em medicinas tradicionais como o ayurveda, que não são ruins de forma geral, mas são ruins para você, nesse momento do tempo e nessas condições ou até por toda vida para uma pessoa com seu biótipo.
Por exemplo, eu adoro alho. Bastante mesmo.
Pelo meu paladar, eu enchia molhos, feijão ou lentilhas, de alho. Porém, o alho em excesso produz um efeito claro sobre minha mente: se for demais até fico nauseado, mas um pouco acima de determinado limite e já sinto certo torpor mental que se estende por algumas horas após a refeição.
Também o café, a maioria das pessoas relata não ser tão sensível à cafeína, mas se eu tomo um café depois de certa hora da tarde, não durmo mais até a manhã. Por outro lado, o café no início do dia, embora me deixe um pouco agitado, é ótimo para meu peristaltismo, e então eu peso as coisas e na maior parte dos dias tomo um café antes do meio-dia.
Essas são coisas que descobri depois dos 20 e tantos anos de idade, e não é como se minha alimentação esteja totalmente sobre meu controle, ou seja ideal, longe disso. Todo dia é uma luta para comer melhor, evitar guloseimas e comer menos. E eu fracasso muitas e muitas
vezes, mas aos poucos eu estou comendo melhor.
Ainda assim, percebo em muitas conversas que as pessoas muitas vezes não costumam examinar os efeitos do que comem, nem da forma superficial que eu faço. Simplesmente comem, ou, no máximo seguem alguns ditames da moda – como comer quinoa (agora a onda californiana que já vai chegar aqui é a couve-de-folhas), ou evitar glúten (não que a pessoa não deva examinar se o glúten lhe causa algo: eu mesmo não como mais glúten. Não acho que sou celíaco, mas quando o reintroduzo, mesmo em pequenas quantidades, sofro de dores no corpo e outros sintomas).
Quando a pessoa come fora, ela não sabe com que óleo as coisas são preparadas. Isso parece irrelevante, mas em todos os casos tem impactos graves. Frituras com óleo velho são o extremo, mas o uso de óleos de baixa qualidade no preparo do resto dos alimentos também pode ter seu impacto de longo prazo.
É difícil ou impossível examinar em si mesmo o impacto dos melhores óleos, é claro. Mas a culinária tradicional vai resolver esse problema para nós: azeite de oliva (preferencialmente extra virgem) ou ghee, que é manteiga clarificada, são bastante tradicionais. Outros óleos podem ser bons, mas não vou me meter a indicar esse ou aquele, cada um precisa assumir responsabilidade pelo que come, e este é o ponto do artigo.
Quando se come fora, se perde, pelo menos em grande medida, esse direito. Sem falar que a disponibilidade de alimentos saudáveis e de boa qualidade é pequena, e eles são soterrados por anúncios chamativos. Chegamos lá podendo pedir qualquer coisa, e esse imediatismo nos leva a pedir “o que dá na telha”, e que geralmente é a opção sem liberdade ou deliberação dos famintos: gordura e açúcar, e carnes processadas ou defumadas.
Esse é nosso momento mentalmente mais frágil, em que estamos sofrendo de hipoglicemia e com o estômago roncando: em cima disso, vem um cardápio com fotos maquiadas e descrições estudadas para nos fazer ir pela opção com a aparência momentânea de mais deliciosa.
Quando se cozinha, todo outro mundo de considerações existe. Normalmente, se preciso ter esboços dos cardápios das próximas refeições. Se vamos preparar feijão ou lentilha, preciso deixar de molho. A maioria das receitas vai requerer uma ida à feira. Também, com o tempo, tendemos a não vincular à refeição aquela expectativa de alta glicemia que temos ao sair e encomendar algo de um chapista. Se compramos meia cabeça de repolho, para duas pessoas, vamos comer repolho por 3, 4 ou 5 refeições consecutivas. E, em certo sentido, essa banalização do comer como um ato de se alimentar, e não de satisfazer algum monstro interno, é muito mais fácil quando as coisas tendem a isso.
Não que a delícia não esteja presente. De fato, é muito difícil achar comida de bom gosto nos restaurantes na rua – e nos shoppings é simplesmente impossível. Algumas vezes o gosto é excitante, intenso, quase como uma droga -- mas não é exatamente bom gosto. No mais das vezes, a comida é seca, insossa, cheia de temperos incertos (temperos prontos, molhos de salada em garrafinhas de plástico) e cara. Mesmo a comida pronta mais barata é cara, comparado a prepará-la para duas pessoas. Talvez para uma só.
Além disso, ao decidir exatamente o que se prepara e como, todas as considerações sobre a cadeia de produção começam a ficar mais vívidas.
Começamos a nos relacionar com os alimentos e querer saber de onde eles vêm. Quanto maior essa conexão, maior o ativismo político, uma vez que o algoritmo das grandes corporações tende a nos alienar do processo produtivo, de forma que não interfiramos em seus negócios.
E isso qualquer Jamie Oliver ou Nigella Lawson estão cansados de ensinar, em programas de food porn de qualidade cinematográfica. Parece haver mais programas desse tipo do que gente cozinhando. E, ao mesmo tempo, isso leva à temida gourmetização de tudo, por mais que os apresentadores tentem ser frugais e parecer despojados, “apenas fazendo qualquer coisa” para um grupo de amigos.
Normalmente a pessoa não vai para a cozinha após ver um programa desses: ela pede uma tele-entrega que sacie o mais rápido possível os monstros atiçados por toda aquela visualização em foco profundo de frigideiras esvoaçantes.
Mas e o tempo para cozinhar? Bom, de fato faz parte da infelicidade de nosso tempo que não tenhamos a liberdade de preparar o próprio alimento. É-nos vendido como liberdade comprar comida pronta, do jeito que queremos, e o mais rápido possível. Além disso, quem quer picar cebolas ou bater bifes? Cuidar timers, acertar receitas? E, no mais das vezes, sei por experiência própria, o tempo existe, mas a preguiça é grande.
Algumas pessoas vão dizer “prepare e congele”, mas eu diria que, se possível, o relacionamento com o preparo da comida deve ser diário. Também com as compras, e com as considerações de consumo consciente associadas.
De todo modo, em certo sentido, hoje todo mundo está de fato preocupado com o que come.
Não há quem chegue numa idade de esclarecimento sem decidir que não pode sair por aí comendo qualquer coisa. Vemos em nós mesmos ou nos familiares grandes dificuldades na forma de doenças associadas a estilos de vida insalubres e isso em grande parte é consequência da alimentação.
E comer direito, quando toda a sociedade e as corporações nos pressionam a comer errado, e nossa própria mente em estado de descontrole químico faz o mesmo, é natural e fácil para muito pouca gente. A maioria de nós é vítima de si mesmo e do estado de coisas, e não adianta sair para a rua e fazer passeata.
Tem que abrir tempo, fazer feira, e usar o fogão de casa.
publicado em 11 de Dezembro de 2014, 05:00