Corações de gaveta: as polaroids de uma geração sem romantismo

Alguém mais aqui se sente deslocado ou só eu? As fotos estilosas de rostos sorridentes em encontros, amores e amizades intensas são uma praga espalhada nos murais digitais das solitárias telas da vida. Programas de qualquer natureza passados a limpo nos filtros do Instagram, e eu, volta e meia, me pego na cilada: por que raios minha vida não tem tanta graça como a deles?

Cá entre nós, as relações extra pixels estilizados são tão reais quanto parecem ou são só mais um efeito fabricado por aplicativos em instantâneos digitais? Estariam todos saudosos, desesperadamente tentando forjar o romantismo de uma velha Polaroid?

Fatos

No último domingo, assisti ao show d’Os Últimos Românticos da Rua Augusta na Casa de Francisca, uma antiga moradia dos anos 1930 transformada aos moldes de um pequeno cabaré, espremida entre prédios numa travessa da Brigadeiro Luis Antônio, em São Paulo. No meio do caos, um lugar verdadeiramente romântico.

Dia desses, soube por vias indiretas que um amigo esconde por trás da postura blasé um coração interessado em ter sua menina. “Tiro sarro de você, mas tenho um pouco de inveja”, teria dito para um terceiro amigo, este sim, confortável em seu papel de homem à moda antiga.

Noite de domingo, escutei de uma mulher madura e moderna sobre as moças e senhoras de Berlim: “As mulheres lá são casca grossa. Piores que nós. Se chegar com um papinho que beire o estilo casa, comida e roupa lavada, elas vão gritar na tua cara que não precisam e nem querem alguém invadindo seu espaço.”

Semanas atrás me comovi com o que interpretei como uma moderna declaração de paixonite, outrora platônica:

— Penso em você às vezes.

— É mesmo? Pensa o quê?

— Você sabe, quando toco uma... – respondeu, com cara de encabulado. Achei fofo.

Duas vezes na mesma semana, em locais diferentes na companhia de amigos que não se conhecem, fiquei constrangida ao ser interpelada na hora de dividir a conta. Nenhum deles é meu pretendente. Apenas dois amigos de círculos sociais completamente distantes sendo cavalheiros.

Outra vez, sujeito que passou à categoria ex-namorado, numa amigável conversa sobre seu retorno após alguns anos fora do mercado, soltou: não sei se sempre foi assim, mas tá parecendo a fila do McDonald’s.

Filtros

Ok, tudo isso poderia não ter nada a ver. Mas eu vejo tudo entrelaçado e minha conclusão é a seguinte: as últimas décadas desenrolaram-se de tal forma que a dinâmica das relações chegou a um desfecho curioso: o desencontro. De forma generalizada, as mulheres se libertaram gradativamente de amarras sociais e liberaram suas vontades, fantasias, expressões.

Acho ótimo, claro, desde que isso não signifique uma nova prisão a padrões que julgam modernos. Desde que, quando elas desejarem pedir colo, não sintam vergonha de precisar. Desde que, quando receberem um agrado na hora de pagar a conta, não se sintam constrangidas. Desde que saibam que brincar de ser frágil de vez em quando pode ser um regalo aos meninos com vontade de exercer o romantismo e, mais, um alívio depois de um dia de trabalho em cima do salto ou nos All Stars da vida.

Por sua vez, no meio dessa liberação toda da qual minha geração é herdeira, os homens, criados por mães destemidas, não souberam como proceder. E hoje é comum ouvir de diferentes exemplares do sexo masculino afirmações como “eu quero namorar, mas as mulheres que não querem”, ou “nunca fui pegador, mas não dá para negar que o mar está pra peixe”. Não é raro também vê-los cair em contradição, cheios de boas intenções, mas incapazes de valorizar adequação de um par para dançar em todas as festas só porque está chovendo na sua horta, sob a pena de perder a velocidade com que a fila corre.

O amor agora é hype

Aos mais místicos, basta crer que está perto de acabar a temporada de Netuno em Aquário, o que significaria dizer que o amor tem sido aquariano desde 1998. Traduzindo esse “papo de mulherzinha”, os relacionamentos teriam sido, desde então, influenciados pela moda do imediatismo – a mesma moda que fez chover redes sociais e apetrechos tecnológicos que mais funcionam como rastreadores. Graças a eles, hoje é possível monitorar a vida de qualquer um. Se antes o corno era o último a saber, hoje, graças a Netuno em Aquário, ele fica sabendo ao mesmo tempo que todo mundo, praticamente em tempo real.

Parece que, ao amor, basta celebrar a entrada de Netuno em Peixes no próximo fevereiro. Aqui convém lembrar que a última vez em que isso aconteceu, o período ficou conhecido como “Romantismo”. Supondo que tudo isso faça sentido de ser, eu tinha 13 anos quando começou, oficialmente no céu, a moda do ficar e enjoar, e em seu fim, estou com 27.  Parafraseando a composição d’Os Últimos Românticos da Rua Augusta, durante esses 14 anos, a maioria de nós tem feito de suas vidas “um disco do Roberto sem canção de amor”.

Juntando os fatos que descrevi acima e outros tantos que acontecem a todo momento em todos os lugares, fico pensando se a geração de homens e mulheres que, como eu, iniciaram suas aventuras amorosas e foram vivendo cada vez mais intensamente essa imensa festa do cabide saberiam como voltar a padrões mais “caretas” no que diz respeito à etiqueta amorosa. Especialmente porque, valha-me Dionísio, haja coragem para passar pelo vexame. Afinal, há tempos, romantismo é pra gente cafona.

Aos moderninhos mais desavisados, essa promete ser a mais nova tendência hipster.

Das letras de música e dos muros da cidade, frases como “Não existe amor em São Paulo” ou “Mais amor, por favor”, saltam aos murais digitais. Em tempos de Facebook, os filtros do Instagram são a nova Polaroid, e de repente, você é convidado a um novo evento: “Vâmo tudo se amá com romantismo, galere?”


publicado em 20 de Agosto de 2011, 05:08
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Carolina Bridi

Loira, 27a, a.nível, s/fresc, porém se reserva o direito de ser cantada. É jornalista, leonina, dramática e contraditória, mas boa moça do interior de Santa Catarina. Prefere a praia, mas trouxe seu piano para morar em São Paulo, onde nem céu consegue ver a olho nu.


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