O iPhone foi apresentado ao mundo em 2007, iniciando uma contumaz revolução na maneira como as pessoas passariam a se comunicar no planeta. Somente no Brasil, já atingimos a marca de mais de um smartphone por habitante em 2018 e 230 milhões de aparelhos em uso em 2019.
Os números desse mercado impressionam, mas é a paixão dos usuários por esses eletrônicos e as consequências desencadeadas dessa relação humano-máquina que têm produzido inquietações como as seguintes nas rodas de conversa em nosso dia a dia:
“Está difícil controlar os celulares das crianças”, “Meu parceiro só tem tempo para o celular”, “Horrível isso de tentar conversar com alguém e a pessoa olhando para a tela do celular”, “Não consigo mais tempo para ler um livro” etc.
Um pré-adolescente de 12 anos mais esperto do que nunca
Os smartphones, que em 2019 completam 12 anos, são como pré-adolescentes que vem ganhando musculatura e inteligência ano após ano. São altíssimos os investimentos em desenvolvimento, tecnologia de ponta e contratação de especialistas. Tudo que reluz na tela do seu celular tem uma razão importante de existir: promover a melhor experiência de uso, aliando performance e design do equipamento (hardware) a um ecossistema de aplicativos continuamente atualizados.
Foi juntando a fome (de crescimento) com a vontade de comer (dos usuários por novidades) que a indústria de smartphones amadureceu e rapidamente se consolidou muito bem alinhada às necessidades e desejos de exigentes consumidores finais. Que os celulares estão mais sagazes e sedutores todos sabemos, mas o quanto nós estamos preparados para assimilar o avanço dessas tecnologias?
Pelo que podemos acompanhar até agora, as aventuras desses ‘pré-adolescentes’ estão apenas começando. Não sabemos muito bem como vão se comportar daqui a alguns anos, mas é certo que alcançaram avassaladoramente as mãos desinquietas dos pré-adolescentes de carne e osso, criando necessidades e possibilidades antes nunca vistas em nossos lares e escolas.
Com afetos não se brinca
Como nós, adultos, temos digerido o caldeirão de novidades tecnológicas que fervilha em nossas mãos a todo instante? Como este relacionamento humano-máquina tem sido construído? Será que amadurecemos consideravelmente nesses 12 anos de convivência?
Difícil saber, mas é de consentimento geral que os smartphones vêm alterando profundamente nosso jeito de enxergar a vida e de viver. Deixando de lado o romantismo que talvez emoldure muito bem esse laço (ou nó?) que nos une a estes aparelhos, esta conexão configura uma clara relação de afeto. Segundo a filosofia de Espinosa:
“Por afeto compreendo as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída”
As afecções podem ser entendidas como o corpo sendo afetado pelo mundo. Apesar de somente em um dos lados dessa relação palpitar um coração e correr sangue nas veias, fato é que, do outro lado, os frios dispositivos eletrônicos vêm provocando em nós afetos de alegria (quando uma afecção nos leva para uma potência maior de ser e agir no mundo) e de tristeza (quando uma afecção nos leva para uma condição menor de potência) e influenciando diretamente em nossa potência de existir.
Essa relação têm nos servido para aquecer a alma e também fundar solidões, despertar desejos e, até mesmo, tomar o lugar cativo antes ocupado pelas amizades , afinal os celulares têm se tornado confidentes ‘fiéis’ e verdadeiros cúmplices de nossas vidas.
Deste modo, afastar-se completamente e de uma hora para outra do celular, poderá reduzir ainda mais nossa potência de existir, eventualmente já comprometida.
Nestes últimos anos, o avanço das tecnologias se deu mais aceleradamente que a nossa capacidade de assimilar e refletir sobre os recursos trazidos por esses aparelhos: fomos engolidos por eles. Não é de se estranhar o fato de ainda não estarmos amadurados frente às consequências da nossa interação com os smartphones.
Pensando na necessidade de atuar enquanto pais e educadores, estaríamos tentando ensinar o que ainda estamos a aprender.
José Saramago, célebre escritor português, em seu livro “A maior flor do mundo”, convida-nos a pensar: “E se as histórias para crianças passassem a ser de leitura obrigatória para os adultos? Seriam eles capazes de aprender realmente o que há tanto tempo têm andado a ensinar?”
Transpondo a proposta de reflexão acima para o universo das ‘orientações de uso dos smartphones’, será que nós, pais e educadores, somos capazes de aprender de fato que estamos ensinando aos nossos filhos?
Importante que pensemos sobre isto com atenção redobrada, posto que estamos todos ingressando na ‘escola da conscientização tecnológica’ e temos muito a aprender com nossos filhos.
Em A Maior Flor do Mundo (2001), Saramago desenvolve uma crítica ao desenfreado crescimento das cidades e à devastação das vidas. Enxergo uma possível analogia de sua mensagem com a assolação de muitas mentes pela ascensão tecnológica dos tempos atuais.
Curta-metragem A Maior Flor do Mundo (2006)
Temos portanto uma questão que nos pede profunda reflexão: como orientar filhos pré-adolescentes na relação com smartphones, se ainda estamos aprendendo o que esses dispositivos significam para nós?
Como criar um nativo digital?
Jovens que nasceram na era da conexão são os chamados nativos digitais e, diferente de seus pais, é quase orgânico para eles observar o mundo através das lentes desse binóculo. Nenhuma adaptação se fez necessária, dado que não se sabe ao certo quem está mais conectado a quem.
Esses ditos “prodígios do mundo digital”, como costumam bradar orgulhosos os pais de muitos deles, costumam impressionar todos quando habilmente “desenrolam” e resolvem todo tipo de problema nesses aparelhinhos.
Esse orgulho bobo, no entanto, logo se transmuta em preocupação. Quando aquela criança recém-chegada à pré-adolescência prefere ficar jogando no celular ao invés de brincar com amigos, ou seus pais percebem que o hábito da leitura tem sido negligenciado em troca de mais tempo dedicado às redes sociais ou notam um claro desinteresse pela matemática e não ouvem mais as vozes agudas daquelas pestinhas nos encontros familiares.
Pais mais atentos às mudanças no comportamento dos filhos, aos primeiros sinais desse apego ao celular, costumam reagir, por padrão, usando a temida voz da autoridade. Utilizam-se então da repressão e não pensam duas vezes antes de punir seus “pequenos”, colocando os celulares de castigo.
Isto funciona? Alguns pais se satisfazem com a obediência dos filhos enquanto seus celulares estão retidos e acreditam que essa atitude é eficiente. Outros, porém, suspeitam que afastar os apaixonados vai intensificar ainda mais a dependência mútua entre eles e optam por outras estratégias de controle, vigiando e cercando a vida digital de seus filhos.
A verdade é que estas duas abordagens (reter o celular ou controlar seu uso) têm uma característica em comum: ambas são fortemente opressoras. Tais abordagens fogem daquilo que talvez pudesse ser o mais enriquecedor na relação entre pais e filhos, isto é, a construção de uma intimidade mais profunda. Por que deixamos isso acontecer?
Quando falta disponibilidade dos pais para manter uma agenda positiva de diálogo com seus filhos, a busca por atalhos e esquemas que “resolvem” tem sido uma prática habitual.
Entretanto o problema é que esses “caminhos mínimos” nem sempre alcançam o núcleo das questões ou sequer as tangenciam. Em muitos casos, atendem meramente à ansiedade dos pais por se sentirem seguros e confiantes de que estão acompanhando seus filhos com mais proximidade.
A dádiva de poder duvidar de si mesmo
Desconfio que o gosto pelas certezas, em detrimento do acolhimento das dúvidas, possa explicar a correria de muitos pais em encontrar soluções mágicas na resolução de conflitos com filhos. Vivemos em uma sociedade que valoriza o acerto e abomina o erro e temos sido constantemente educados para a vitória.
O brilhante ator argentino Ricardo Darín, quando se refere à permanente pressão sofrida pelos jovens na atualidade para serem bem-sucedidos em tudo que fazem, demonstra sua indignação com a seguinte fala:
“Eu detesto essa visão. Detesto a visão de não poder equivocar-se, de não poder aprender com os erros, de não poder falhar, levantar-se, recuperar-se e seguir em frente, porque isto é um dos motores do templo humano: errar.”
Também sofrem os pais dessa geração de jovens um outro tipo de pressão não menos importante: servir de exemplo aos filhos. Quando isto é levado ao extremo, tornam-se crentes de que são o “caminho, a verdade e a vida” para seus filhos. Sem as devidas ponderações, essa ideia é inútil e pode adiar a necessária revisão de posturas e hábitos que os pais tendem a seguir, assim como limitar as ricas possibilidades de troca na relação com seus filhos.
A sede de certezas dos pais vem a se tornar um complicador ainda maior, uma vez que, quando o tema é tecnologia, não poderão contar com lições aprendidas de gerações anteriores.
Os avós de seus filhos, quando ainda vivos, estarão no máximo engatinhando na descoberta de seus próprios smartphones e não terão muito a ensinar sobre isso. Esse vazio na experiência geracional anterior (que normalmente ainda serve como referência “segura” na escolha de caminhos para muitos pais de hoje) produz um vácuo que aterroriza muitas famílias.
Não existem receitas prontas e muito menos certezas de qualquer espécie: os pais de hoje devem pensar pela primeira vez sobre tudo isso. Talvez o que possa servir de alimento na desafiadora trilha de descobertas a ser seguida pelos pais é a dúvida, o questionar-se. Duvidar de si mesmo é um bom exercício para começar.
Você poderia chegar à conclusão que nossos filhos precisam de nós e que (re)agir a essas questões todas postas se faz urgente. É claro que precisamos agir, mas ação, neste caso, precisa caminhar de mãos dadas com reflexão.
- Será que de fato estou elaborando bem a relação que tenho com meu celular? Será que posso justificar a mim mesmo o tempo médio diário gasto olhando a tela do celular?
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Estou viciado?
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O uso que faço do celular tem afetado meu rendimento profissional?
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Estou conseguindo ter foco quando preciso?
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Estou me relacionando bem com minha família e as pessoas ao meu redor?
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Precisaria de fato participar desse ou daquele outro grupo no meu WhatsApp?
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Tenho acompanhado com regularidade e atenção o estudo dos meus filhos?
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Será que o X da questão está mesmo no smartphone?
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Será ele tão esperto assim e que por isto devemos direcionar todos os esforços para afastá-los de nossos filhos?
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Estariam os smartphones se aproximando da categoria de lícitos danosos como o álcool?
Quando os pais se decidem a pensar seriamente sobre a relação que estão mantendo com seus próprios smartphones, estão automaticamente se iniciando em um processo de conscientização tecnológica. Estão investigando melhor como se locomovem nessa infinita teia digital e para onde estão sendo levados por ela nas escolhas que fazem diariamente.
A elaboração dessa consciência possibilita, em primeiro lugar, reconhecer que mais essencial do que agir instintivamente com seus filhos sobre essa questão, é compreender que estamos todos lidando com um problema complexo e de elevado potencial de crescimento.
Nesse caminho, entenderemos de uma vez por todas que atalhos, dicas, truques e receitas prontas não poderão, isoladamente, compor uma base segura de suporte para planejar ações a serem trabalhadas com nossos filhos. Todos os envolvidos nessa história merecem muito mais.
Tecnologia ‘desumanizada’
Apesar de nativos digitais, nossos pré-adolescentes podem enfrentar dificuldades para driblar os diversos obstáculos e escapar das sutis emboscadas na relação com seus smartphones. Para orientar os filhos, os próprios pais precisam pensar com mais seriedade sobre o impacto desses dispositivos em suas vidas.
Assim pensando, parece que estamos em um “mato sem cachorro”, mas os caminhos para a resolução desse impasse podem surgir de uma reflexão sobre “quem manda em quem” na nossa relação com as tecnologias.
Após leitura do artigo Como a tecnologia sequestra a mente das pessoas, publicado no PdH, tomei conhecimento do movimento Time Well Spent, criado pelo ex-especialista em ética de design do Google, Tristan Harris.
Harris descortina com clareza como as empresas de aplicativos para smartphones operam práticas de design de suas soluções, objetivando primordialmente o sequestro da atenção dos usuários, mantendo-os grudados à tela para a geração ininterrupta de lucro.
Maravilhando com o trabalho do Tristan, interessei-me no aprofundamento das proposições por ele apresentadas. Analisando o que ele chamou de “catálogo de prejuízos”, mais especificamente no seu caderno para crianças, um sonoro e ruidoso alarme começou a soar em minha mente e tornou-se impossível deixar o assunto de lado desde então. Os prejuízos afetariam as seguintes às seguintes áreas sociais
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Atenção (perda da habilidade em focar sem distração);
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Saúde mental;
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Relacionamentos;
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Democracia;
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Crianças;
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"Só pros outros” ( em referência ao fato de muitas pessoas que trabalham em empresas de tecnologia limitarem o uso de tecnologia em suas próprias casas).
O que o movimento liderado pelo Tristan deseja, fundamentalmente, não é a interrupção desse trabalho, mas a conscientização dos players desta indústria sobre a necessidade de se associar mais concretamente uma visão humanizada ao desenvolvimento tecnológico.
O objetivo é que as empresas considerem os graves e silenciosos problemas que afetam a população global tais como: vício digital, bullying e comparação social (que comprometem seriamente nossa saúde mental), a dificuldade crescente de separar fato de ficção (fake news), rachas ideológicos (polarização), entre outros.
Desde que deixou a Google, em 2018, Tristan vem evoluindo esse debate, que hoje se consolida com a criação do Center for Humane Technology – um centro de pesquisas para à construção de tecnologias mais humanizadas. Estampada em sua página inicial, está a profética missão: “Reverter o rebaixamento humano, inspirando uma nova corrida ao topo e realinhando tecnologia com humanidade”.
Como um grupo de empresas de tecnologia controla bilhões de mentes todos os dias.
Harris tem corrido o mundo defendendo suas ideias e aprofundando as discussões em torno do tema. O vídeo acima é um TED de 2017 em que ele detalha como companhias de tecnologia operam na indústria da atenção visando a manipulação de bilhões de pessoas.
Reunindo os Dados
Quando focamos o olhar sobre os estudos do Center for Humane Technology, os dados relativos à questão das crianças em face aos novos desafios de aprendizagem e socialização e a preocupação com o desenho do futuro de nossa sociedade chamam atenção.
- Cyberbullying: Crianças vítimas de cyberbullying têm 3 vezes mais chances de se envolver em ideação suicida do que crianças que não sofrem bullying, enquanto aquelas que experimentam bullying “tradicional” têm 2 vezes mais chances. (Relationship Between Peer Victimization, Cyberbullying, and Suicide in Children and Adolescents)
- Vício digital: 78% dos adolescentes checam seus smartphones pelo menos de hora em hora e 50% relatam sentir-se “viciados” em seus telefones, enquanto isso, 69% dos pais checam seus aparelhos pelo menos a cada hora, e 27% dos pais se sentem “viciados” (Technology Addiction: Concern, Controversy, and Finding Balance).
- Desafios de aprendizagem e socialização: 86% de mais de 2.200 professores disseram que o número de alunos com desafios sociais aumentou nos 3–5 anos anteriores a 2015; 90% disseram que viram desafios emocionais aumentados e 77% desafios cognitivos (Growing Up Digital Alberta Enhancing/Distracting – 2016).
Pensando agora mais especificamente em nossos pré-adolescentes (pois com as crianças menores ainda temos o benefício de postergar o uso de smartphones com mais tranquilidade), antes de buscarmos soluções para “resgatá-los”, por assim dizer, de dificuldades aparentes que estejam enfrentando sozinhos na relações com seus smartphones, faz-se mais importante que procuremos observar com mais cuidado e amiúde o que tem permeado tais relações.
Essa busca e compreensão leva a um ganho inevitável de intimidade no relacionamento entre pais (ou educadores) e filhos, resultando em mais generosidade e respeito com os universos de afetos envolvidos e nos quais estamos todos mergulhados.
Se existem fortes indícios de “desumanidade” no projeto de aplicativos que rodam nos smartphones e que seduzem e aprisionam nossos pré-adolescentes, estes não podem ser culpados de nada. E identificar culpados não seria o mais importante a ser feito, mas sim racionalizar melhor as situações para que os enfrentamentos necessários possam lograr mais êxito.
O que sabemos até aqui é que o que nossos adolescentes têm experimentado não é um jogo, em que os smartphones seriam os adversários a serem batidos. E que simplesmente afastá-los de seus celulares é ação inócua, uma vez que esses eletrônicos em si e isoladamente não representam causa de nenhum problema que eles possam estar vivenciando. Os celulares, apesar de muito espertos, não têm consciência alguma sobre nada e sequer conhecem seus usuários. Nossos pré-adolescentes, ao contrário, além de muito espertos também, são conscientes e podem conhecer melhor seus celulares. É essa consciência que precisa ser lapidada.
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Nota do Editor: Por tratar-se de uma análise extensa e detalhada, decidimos dividir em duas partes. Essa é a primeira. A segunda publicaremos no próximo sábado.
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