Era 2012 e eu tinha acabado de me formar na faculdade. Orgulho da família, independência financeira, emprego estável, vida adulta. Parecia que eu era uma daquelas pessoas de sucesso, mas logo a sensação mudou e a ficha começou a cair.
Agora, minha rotina se resumia a trabalhar para pagar contas. Um apartamento maior, um carro melhor, um celular novo. As ambições mais comuns não me motivavam. Queria algo mais.
Foi quando resolvi que precisava fazer uma mudança no curso das coisas.
De lá até estar vivendo em um carro e uma barraca de acampamento teve um processo. Resultado de um conjunto de experiências, atitudes e – admito – um pouco de sorte.
Revelações
Os dois primeiros anos pós-faculdade foram de grandes análises e reflexões. Virei sócia de um escritório de arquitetura que atuava com regularização de imóveis em Porto Alegre e alguns clientes achavam que eu era advogada, tamanha a burocracia e o conhecimento legislativo que o trabalho envolvia. Logo eu, que havia cursado um semestre de faculdade de direito e trocado para arquitetura por querer algo mais prático e criativo.
Em abril de 2014 resolvi fazer uma coisa que não fazia há quase quatro anos: tirar férias. Aproveitei para viajar um pouco e acabei fazendo logo duas de uma vez: a trilha Inca, com a companhia da minha mãe, e um mochilão de 20 dias, completamente sozinha.
No primeiro trecho da viagem, algumas coisas já começaram a borbulhar em mim. Foram quatro dias seguidos acordando às 4h da manhã e caminhando até o fim do dia: fazendo trilhas no meio da selva, costeando penhascos, subindo e descendo montanhas entre sol, chuva, frio e calor. Às vezes, tudo no mesmo dia.
Chegamos a 4.200 metros de altitude. Dava pra sentir a falta do ar. E as mudanças foram tantas que meu corpo começou a reagir. Tive febre. Tive medo. Tive conversas incríveis com minha mãe. E tive momentos de solitude, reflexão, dor, choro e superação inspirados por paisagens escandalosamente fantásticas, daquelas de – desculpe – tirar o fôlego.
Em momentos como aqueles nos quais você começa um trilha que te impõe dificuldades e que não te dá a alternativa de voltar atrás, você se vê numa situação muito particular. A cada superação, você se sente mais forte, capaz, vivo e aquilo serve para mostrar que seus limites talvez estejam um pouco além de onde você imaginava que estavam, o que te dá um impulso novo para seguir em frente.
Quando tudo que importa é chegar ao final daquela trilha, você se desapega do medo, do comodismo e dos julgamentos que poderiam estar ali ocupando espaço e pesando nas costas. Parece que você se livra de um monte de regras do dia a dia que vivem nos amarrando e redescobre suas vontades e impulsos mais pessoais. Ali – e no resto do mochilão – percebi o quanto a vida e as experiências proporcionadas por ela são só minhas, assim como a responsabilidade pela minha felicidade ou infelicidade.
Mas se livrar dos pesos desnecessários também é uma necessidade literal. No mochilão, principalmente, fui obrigada a aprender como a vida pode ser simples se tudo que você pode carregar deve caber dentro da sua mochila. O que me fez perceber como existem tantos outros caminhos para escolher que não percebemos quando simplesmente estamos tão mergulhados em nossas rotinas.
Reflexões
A volta pra casa foi chocante. Eu tinha entregado meu apartamento uma semana antes da viagem para me livrar das contas e voltei a morar com minha mãe. O curioso é que a maioria das pessoas quer sair da casa dos pais para ter mais liberdade e o meu movimento oposto também objetivava a mesma coisa. A partir dali comecei a buscar trabalhos autônomos e tracei um plano e viajar o mundo de mochila o mais rápido possível. Foi quando encontrei uma paixão antiga.
Ele surfava no Peru enquanto eu fazia minha viagem por lá e mandou uma mensagem quando viu minhas fotos. Não chegamos a nos encontrar, mas foi só voltarmos para Porto Alegre que começamos a namorar. No fim daquele mesmo ano, saí da sociedade do escritório e fui morar com ele em Florianópolis. Nosso reencontro tinha sido recheado de conexões e similaridades: desde coisas como pequenos hábitos cotidianos, até aquela sensação de desconexão com o sistema e a vontade de conhecer o mundo.
O Luciano, porém, já estava alguns estágios na minha frente. Ele havia abandonado a vida urbana de Porto Alegre e a estabilidade financeira que tinha lá desde 2008, quando decidiu ir morar em Floripa e recomeçar a vida quase do zero. Largou quase 20 anos de carreira como professor de inglês para virar representante comercial de uma editora multinacional e depois dono de uma imobiliária. Já tinha escolhido um lugar tranquilo para morar, ao lado da praia e das ondas, estava estável economicamente e tinha liberdade para ditar suas férias quando nos reencontramos. Ainda assim, tinha o sonho antigo de viajar por mais de 30 dias/ano há quase 10 anos quando convidou alguns amigos a vender tudo, comprar uma Kombi e sair pelas Américas atrás de ondas e aventuras. Sem sucesso. Até então.
Um ano e meio depois, tiramos o sonho do papel e compramos duas passagens só de ida para a Califórnia em agosto de 2016. Ao chegar, compramos um carro com a intenção de dirigir até o extremo sul das Américas, na Patagônia. Tudo isso acampando ou dormindo e cozinhando no próprio carro que equipamos nos cinco primeiros meses de viagem, enquanto cruzávamos os estados de Nevada, Arizona, Utah e a Califórnia, até que ele ficasse pronto para deixar as Freeways americanas e seguir por la carretera, México adentro, onde já completamos mais três meses de viagem.
Saímos da zona de conforto, no caminho vamos aprendendo a nos virar sem ter casa nem data pra voltar. Nos adaptamos a viver com o sol ditando as regras, com mais calma e contemplação da natureza e da vida, estamos evoluindo na prática da solidariedade a cada encontro com novos viajantes, aprendendo mais sobre respeito, simplicidade e desapego.
Cada vez mais queremos ter menos coisas, menos roupas, menos tralhas, menos pressa. Quando falamos sobre o futuro, sonhamos com uma vida simples, numa casa em que possamos ter horta, pomar e tempo. Não sabemos como ou se vamos conseguir, mas pra que se preocupar? Essa viagem também começou com um "e se..." e aqui estamos.
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Nota da edição: a Caína e o Luciano são leitores do PapodeHomem nos momentos em que a internet pega no celular ou quando eles encontram um Wi-Fi gratuito por aí e nos mandaram esse texto para a coleção Na Estrada. Se você também tem uma história de viagem pra contar, mande pra gente.
E se você gostou da história deles, acompanhe o blog Por la Carretera que eles criaram para contar os detalhes da viagem: as aventuras pelas cidades que conheceram, o roteiro que escolheram fazer e até como tem feito para pagar a coisa toda.
publicado em 14 de Abril de 2017, 00:05