Como usar quadrinhos para falar sobre gênero e masculinidades

Na educação ou em rodas de homens, quadrinhos são uma ferramenta poderosa para debater as transformações das masculinidades

Você já pensou em quantas coisas aprendeu nos quadrinhos? Eles têm o potencial de nos ensinar valores, lições sobre cooperação, amizade, respeito, coragem. Se pensarmos bem, muitos dos quadrinhos de super-herói falam sobre o que é ser homem e como ser esse “homem ideal”.

Num primeiro momento a gente pode até pensar que quadrinho faz parte da infância, mas eles vão muito além desta fase! O mercado de quadrinhos e graphic novels tem crescido e tem sido reconhecido cada dia mais como uma arte e  literatura para diferentes idades e tipos de histórias.

Bem, foi através da minha pesquisa de Iniciação Científica, ainda na faculdade, que eu descobri o potencial de usar quadrinhos para falar sobre gênero, e puxar discussões sobre essas caixas do que são coisas “de meninos” e “de meninas”.

Se você tem interesse em fazer discussões sobre gênero, ou masculinidades, seja numa roda de homens ou contando uma história para seus filhos, aqui vão algumas dicas:

Como usar os quadrinhos para falar sobre gênero, sexualidade e masculinidades e/ou machismo na educação? 

Na verdade, não existe um modelo fechado ou um só caminho definido sobre como usar os quadrinhos na educação. Mas já temos alguns caminhos percorridos que podem servir de diretrizes para trilhar novas possibilidades. 

Assim, trago aqui um pouco sobre o trabalho que já realizei desse tema e algumas referências e dicas, para serem adaptadas de acordo com cada espaço, aluno e demanda que forem elencadas. 

Mas antes disso, preciso te explicar o que é educomunicação.

A educomunicação é uma jeito de pensar a escola misturando educação com comunicação. Com isso, é possível usar filmes, músicas, e diversas mídias, entre elas os quadrinhos, na educação para formar as crianças a partir de um aprendizado mais interativo, em que a criança possa ser ouvida e possa participar das escolhas e da produção de conhecimento e produção de mídia. As mídias aparecem nessa história como uma ferramenta para trabalhar todas estas habilidades nas práticas educativas.

Mas por que usar os quadrinhos para falar sobre gênero? 

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As histórias em quadrinhos refletem o mundo em que a gente vive: a cultura, os valores, a forma de se relacionar… E elas fazem isso usando uma linguagem acessível e que já tem o interesse de boa parte dos estudantes. 

Apesar de serem fáceis de ler, os quadrinhos abrem espaço narrativas com diversas camadas de compreensão, usando, inclusive, muitas metáforas visuais que retratam conceitos que são abstratos, ou seja, invisíveis no nosso cotidiano

Estas representações e simbologias não estão só nos quadrinhos. Durante uma das oficinas que mediei, alguns alunos que fizeram comentários relacionando as questões de gênero que mostrei nos quadrinhos, com representações similares que eles viram na televisão, no jornal, na publicidade ou até mesmo num almoço de domingo com a família. Todo esse tipo de material também pode ser usado para mediar rodas de conversas, sobre masculinidades, por exemplo, mas hoje vamos focar nos quadrinhos.

Elenquei quatro “caminhos possíveis” para o usar os quadrinhos para abordar gênero, sexualidade, questões de masculinidades ou de machismo

1) O uso das HQs a partir da contra-narrativa 

O conceito de contranarrativa é de Yosso, autora que analisou a problemática da representação racial do sistema educacional estadunidense. A ideia é identificar quais são os estereótipos e exemplos que se repetem nas narrativas hegemônicas, para, justamente, questionar esses modelos e estimular a produção de contranarrativas. 

Trazendo esse conceito para os quadrinhos, em 2014 na minha pesquisa de iniciação científica, analisei como era a representação de Jean Grey na Saga da Fênix Negra, dos X-Men. 

Consegui perceber alguns estereótipos sexistas na representação da personagem, que começa como heroína e termina a história como vilã, em que o poder feminino é apresentado como algo negativo, e a representação da personagem vai de “virgem” a “vadia”, de um jeito bem dualista, igual vemos em algumas ideias da nossa sociedade. 

Trazer o debate sobre sexismo, masculinidades e machismo a partir de uma contranarrativa é trazer uma história com narrativa e/ou representação que seja o contrário do que você quer defender. 

Para falar de masculinidades, imagine esse exemplo: uma história em quadrinho em que o cara tem que ser forte, bruto, salvar o dia sozinho, sem pedir ajuda, sem demonstrar dor, nem derrubar uma lágrima. 

Refletindo sobre porque este personagem tem de ser assim — porque ele tem que ser bruto? Porque ele não pode chorar? Porque ele trata a mocinha como se ela fosse fraca? — você pode, junto com os alunos fazer a desconstrução dessa história, dando elementos para que o estudante consiga compreender o padrão narrativo, questioná-lo e reconhecer esse padrão em outras mídias posteriormente.

Esse tipo de abordagem contribui para mostrar o quanto esses conceitos são construções sociais e que são naturalizadas em diversos âmbitos, mas que não são naturais de fato.  

2) O uso das HQs como exemplo para debate 

Também é possível fomentar debates a partir de exemplos “positivos”. Que ajude a iniciar um debate sobre gênero — sobre o que é coisa de menino e o que é coisa de menina- de maneira que essa visão saia dessas caixinhas tão separadas e fechadas, questionando preconceitos e debatendo sobre estereótipos. 

Ilustração de Cara Unicórnio, de Adri A.

Um exemplo de HQ que traz uma narrativa interessante nessa perspectiva é Cara-Unicórnio, do artista Adri A. ( eu fiz uma resenha sobre essa HQ aqui). É uma narrativa de super-herói divertida e engraçada e que ao mesmo tempo dialoga com estereótipos de gênero e busca subvertê-los ao longo da história. 

Outro exemplo é Bendita Cura, de Mário César, que agora está também com o volume 02, é uma HQ que usa apenas as cores azul e rosa, relacionando cada uma ao que seriam “coisas de menino” e “coisas de menina”.

Ilustração de Bendida Cura, de Mário César.

O quadrinho traz trajetória de Acácio, criança que começa com ambas as cores em si e aos poucos, pela família, igreja e sociedade, vai ficando cada vez mais azul. A HQ tem cenas mais explícitas por tratar diretamente sobre a preconceituosa e falaciosa ideia de “cura gay”, com cenas que o autor trouxe a partir de pesquisas reais sobre esse tema, do protagonista sendo obrigado a assistir pornografia e se masturbar para reforçar sua suposta heterossexualidade, por exemplo, sendo assim uma produção mais indicada para alunos a partir do ensino médio, ou com uma seleção de trechos da história caso seja levada para alunos mais novos. 

Nem tudo tem apenas um lado, então podemos numa mesma história ou personagem encontrar elementos para rebater, em uma contranarrativa, e elementos para usar como exemplo construtivo, minha análise da trajetória do super-herói Thor no último filme dos Vingadores é um exemplo de como essa dupla abordagem pode ser feita. 

3) A produção das HQs pelos alunos 

Sempre me surpreendo com o quanto que é dito nos desenhos e histórias dos alunos, principalmente quando vamos abordar um tema considerado “tabu” como gênero e/ou masculinidades. É muito comum propor rodas de conversa e, nesses momentos, os alunos ficarem tímidos, falarem pouco e terem receio de compartilhar o que pensam sobre o tema.

Porém, quando pedimos pros alunos contarem uma história a partir de uma narrativa visual, vemos grande expressão das suas opiniões e considerações sobre o tema.

Muitas vezes também vemos seus discursos ocultos, ou seja, o aluno acha que está fazendo uma história em pró da igualdade ao criar uma narrativa, mas, sem se dar conta também está reproduzindo estereótipos de gênero.

Observei muito isso nas oficinas que ministrei durante meu trabalho de conclusão de curso da graduação, que foi para jovens do ensino médio de uma escola pública de Santo André. A proposta foi falar sobre gênero, sexismo e machismo a partir de exemplos de narrativas e representações de histórias em quadrinhos e no final pedi para os estudantes produzirem uma história em quadrinhos de super-herói que se passasse no ambiente escolar e analisei cada produção para ver como estavam colocadas as representações de gênero nas narrativas dos alunos.

Foi interessante pois o tema da narrativa era aberto, então em cada história as questões de gênero apareceram de formas distintas, mas algo que se repetiu em muitas produções foi termos desfechos voltados à violência na maioria das histórias com protagonista masculino e desfechos voltados ao diálogo na maioria das histórias com protagonismo feminino, ou seja, uma característica muito presente nos personagens masculinos foi o uso da força e a agressão física para lidar com os conflitos e problemas das narrativas, o que também é colocado como característica hegemônica do que é ser homem na nossa sociedade. 

O que essa formação me mostrou, foi que a produção de HQs dos alunos é sempre um começo de uma ação pedagógica nunca o final, pois a partir da produção deles, são levantadas perspectivas e questões que não estavam colocadas em pauta inicialmente e que podem emergir para serem debatidos e desconstruídos de forma coletiva. 

4) O debate a partir da produção dos alunos 

Assim, o debate a partir das próprias produções dos estudantes, em que cada aluno pode contar sobre sua HQ, explicar porque quis usar determinado enquadramento ou como quis construir determinado personagem, e ter essa troca em coletivo, com um estudante ouvindo sobre a produção do outro, acaba sendo uma abordagem que contribui para um debate mais aprofundado e com os alunos mais abertos e interessados a falar sobre essa temática. 

Sempre que falo sobre construção de narrativa, tento levar para os educandos o quanto nenhum discurso é neutro e o quanto as narrativas são escolhas e construções. Com isso a intenção é fazer os alunos refletirem sobre essas construções e se posicionarem ao criar suas próprias histórias, o que é  muito potente. Este tipo de ação contribui para os debates e reflexões também seguirem por esse caminho, afinal, ao falar sobre a história que criou, o aluno também fala sobre si e sobre sua visão de mundo, podendo, então repensar também como ela é construída. 

Pra quem gosta das referências: 

BOFF, Ediliane de Oliveira. De Maria a Madalena: representações femininas nas histórias em quadrinhos. Tese (Ciências da Comunicação). Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014. Disponível aqui!

BRAGA JR., Amaro X. (Org.). Questões de Sexualidade nas histórias em quadrinhos. Maceió: Edufal, 2015.

CHINEN, Allan B.. Além do Herói. Histórias clássicas de homens em busca da alma. São Paulo: Summus, 1998

CONSANI, M. A. ; SIERPINSKI, N. R. M. . Heróis e educadores: duas oficinas educomunicativas desconstruindo estereótipos. In: Rosa, Rosane; Viana, Claudemir Edson; Machado, Pereira, Sátira.. (Org.). Educomunicação e diversidade: integrando práticas. 01ed.São Paulo: ABPEducom Edições, 2016. Disponível aqui!

CRUZ, Dandara Palankof e. A outra ponte do arco-íris: discursos e representações LGBTT nas histórias em quadrinhos de super-heróis norte-americanas. Dissertação (Ciências da Comunicação). Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2017. 


publicado em 26 de Dezembro de 2019, 07:20
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Natália Sierpinski

Mestranda em Ciências da Comunicação e Licenciada em Educomunicação pela ECA-USP. Pesquisa histórias em quadrinhos, gênero e educomunicação desde 2014 e atua com formações sobre quadrinhos para jovens e adultos desde 2015. É editora do Minas Nerds e uma das autoras do livro Mulheres & Quadrinhos.


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