Como me tornei parte de uma ONG... no Marrocos

Quatro meses haviam se passado desde o início da minha estada em terras estrangeiras. Visitas a algumas cidades européias já haviam calejado minha visão. O grande museu já havia se tornado mais um e o choque cultural estava mais ameno. Faltava mais uma parada antes de começar a planejar a voltar ao Brasil. Era um sonho de pequeno. Inglaterra é o cacete. Vou pra África.

O percurso climatizado até o aeroporto de Barajas (Madrid) não serviu de prenúncio do que viria. Embarquei com destino a Fes, Marrocos. Em terra firme, procurei por um taxi ou ônibus que me levasse ao centro da cidade, onde localizava-se o albergue. Com uma ponta de sarcasmo, o semblante indignado do taxista me advertia, dizendo algo como "Seu inglês não serve pra nada aqui, meu amigo".

Dá-se um jeito, faz-se mímica, mostra-se o mapa. O McDonald's na beira da rodovia fez meu comodismo dar sinal de vida. Foi como se o Tio Sam acenasse feliz para um filho pródigo. No meio do trajeto o taxista desligou o taxímetro. Tentei argumentar em inglês, que ele pouco entendia. Ele me respondeu em francês. Foi a minha vez de não entender. Eu tinha duas opções. Podia falar francês, segunda língua do país, da qual conheço aproximadamente 7 palavras, ou poderia falar árabe. A única coisa árabe que eu tinha ali era o nariz. Acabei pagando a corrida.

Larguei as coisas no albergue, bem organizado e habituado aos turistas. A medina de Fes, parte antiga da cidade, ficava há menos de 10 minutos do local. O Sol garantia que os 28 graus do inverno marroquino não cessariam. “Volte antes de anoitecer”, aconselhou a recepcionista do local. Com um mapa feito a caneta hidrográfica, fui.

Carona?

Separando meninos de homens

Agora sim, Marrocos. O transporte público muitas vezes anda de burro, a galinha que você compra nesse mercado é express. Devidamente “matada” e preparada na hora, na sua frente, com a mão. A cabeça de camelo, iguaria valorizada por lá, fica apoiada numa prateleira, com algumas moscas completando a decoração.

Não faltavam abordagens insistentes, oferecendo todos os tipos de produtos, de sandálias feitas a mão até artigos não muito lícitos. Estes últimos eram anunciados entre dentes. Muitas lojas familiares amontoadas garantiam a continuidade da bagunça. O marido batia palma ou gritava, sem delicadeza, e alguma das mulheres rapidamente se apresentava. Lá o mundo é poligâmico.

Mendigos, pedintes, caroneiros (pessoas que tentam levar turistas aos lugares, em troca de comissão), doentes, vendedores. Todos juntos, num caos fascinante, daqueles que enchem os olhos.

Fique à vontade para ir ao banheiro. Custa 25 dirham.

O balde é cortesia da casa

Não costumo visitar lugares acompanhado de guia turístico. Nesse caso, porém, após algumas tentativas frustradas, me rendi. Paguei alguns poucos euros para um dos muitos que me abordaram no meio do caminho e falei os pontos que gostaria de conhecer.

Universidades, locais de oração, templos, igrejas, montanhas. Os 3 dias seguintes foram, certamente, os dias mais interessantes da minha vida. Mas iria melhorar. Ou piorar, depende do ponto de vista.

O deserto

Saindo de Fes, o plano era ir para Marrakech, mas com 10 ou 15 minutos de pesquisa no Google, a possibilidade de conhecer o deserto do Saara falou mais alto. Foi uma das melhores decisões que eu já tomei.

Acampar com uma família nativa, andar de camelo, apreciar o pôr e o nascer do Sol sentado no topo de uma duna, deitar sob o céu mais estrelado que já vi na vida e ter contato com pessoas totalmente diferentes de mim. Experiências inesquecíveis. Longe de qualquer conforto, sem banheiro, cama ou qualquer outro luxo que possa estragar uma viagem, fazendo com que foquemos no desnecessário, no que passa.

Não precisa se preocupar com vizinhos

Difícil uma viagem assim ser algo comum e normal. O lugar está longe de ser comum e normal, mas não é sobre isso que eu estou escrevendo. Aliás, a introdução falando da viagem em si é quase insignificante. Ela, em sua maior parte, só afeta a minha própria vida. Tudo permaneceu igual, tendo eu passado por lá ou não. Fui insignificante. Os Abduls, Sahids e tantos outros “Joãos” marroquinos continuaram exatamente com a mesma rotina de sempre.

A ideia aqui é falar sobre pessoas. Essa é a maior “atração” de uma viagem, é o ponto turístico que mais se renova. As pessoas que você conhece durante uma viagem são responsáveis por grande parte da imagem que você leva do local.

Durante o percurso de volta, o ônibus fez uma parada em alguma cidade no meio de lugar nenhum. Uma barraquinha de churrasco de coelho atraía os famintos e eu resolvi descer. Obviamente não consegui fazer o pedido em francês. Não entendia o preço, nem tampouco do que se tratava o tal churrasco. Um marroquino meio franzino falou meia duzia de palavras estranhas e resolveu me ajudar, servindo de intérprete ao meu pedido. Começamos a conversar em frente ao boteco. Voltamos para o ônibus e nas 2 ou 3 horas restantes a conversa girou em torno de turismo, cidades interessantes, a vida no Marrocos e nossas ocupações. O inglês desenvolto e os argumentos bem sustentados me mantinham entretido.

Descobri que ele era médico e costumava trabalhar em algumas cidades vizinhas, menores e sem infra-estrutura. Claramente ele era muito diferente de 99% da população. Era estudado, tinha uma visão ampla da política e dos problemas do país, exercia um cargo de responsabilidade, especialmente em um lugar tão carente. Entretanto, falava com uma humildade impressionante das suas atividades. Contei o que eu faço no Brasil, falei das minhas aventuras pelo deserto e o assunto passou de nossas obrigações aos nossos hobbies.

Nem com trânsito.

O soco no estômago

Era uma conversa superficial, sem grandes destaques, até que ele começou a me falar sobre sua ONG. Foi o último capítulo de novela, o clímax. Era fácil notar que ele estava ansioso para falar sobre aquilo. Com brilho no olho, ele me contou das várias propostas que ele tenta administrar.

Basicamente, ele procura ser um facilitador de tudo que diz respeito às iniciativas rurais de seu país. O pequeno agricultor que não sabe onde buscar semente, que não sabe como obter financiamento para comprar as máquinas, o cara que teve as terras invadidas, o estudante de agronomia. Enfim, o empreendedor que sabe onde quer chegar, mas não sabe o caminho a percorrer.

Ele oferece um espaço para que todos esses caras perguntem e exponham problemas, e tenta, de algum jeito, dar alguma orientação e reunir informações relevantes que facilitem a vida desses cidadãos. É uma espécie de consultoria. Ao mesmo tempo, foca em divulgar a situação desses “pequeníssimos empresários”, indo à universidades da Europa, palestrando, e tentando fazer com que gente importante e com grana e disposta coloque os olhos sobre a situação de seu país.

Porra! Ele não tem obrigação de fazer nada disso. Ele é médico, já alcançou um status privilegiado. A avó dele deve encher a boca para falar isso às amigas do tricô. Mesmo assim, procura fazer algo que agregue.

Tendo me apresentado a empresa, ele continuou falando sobre os problemas que a iniciativa enfrenta. Naquele momento, ele contava com um programador, de 16 anos, voluntário, que tentava desenvolver uma solução para interligar as ONGs e as iniciativas que aparecem por lá. Sabe que é parte de um todo, que iniciativas esparsas e sem força não convencem, mas que oferecendo uma plataforma para que essas pequenas iniciativas divulguem seus trabalhos as coisas podem chegar mais longe.

Continuou falando sobre os problema técnicos e foi nesse momento que eu me senti um merda. Ele é médico, tem pouco conhecimento sobre tecnologia, reconhece a importância disso, mas sabe que, nesse tocante, ele não tem muito o que fazer. Eu era capaz de pensar diversas soluções para o problema dele, sem muito esforço. Em um final de semana eu provavelmente teria condições de fazer algo parecido com o que ele precisa. Mas eu nunca me preocupei em fazer algo a mais.

Acho que nunca usei meu trabalho e meu conhecimento para algo que não seja ganhar meu salário no fim do mês e talvez consertar o computador de meia dúzia de amigos.

Essa é a placa que muitos de nós seguramos

Trocamos emails e a amizade continuou nos meses seguintes. Há pouco mais de um mês, assumi a parte técnica do projeto. A plataforma de desenvolvimento escolhida é africana, opensource e bastante flexível. Para exemplificar sua robustez, ela foi usada no monitoramento dos incidentes relacionados ao terremoto do Haiti. Não foram poucos.

A ideia é implementar um pequeno portal, que dê visibilidade às iniciativas e sirva como base de conhecimento aos que estão iniciando seus projetos. Recentemente, ele foi convidado por um canal de TV marroquino, para divulgar o projeto em rede nacional.

Outra surpresa, para finalizar

Nos últimos minutos de conversa, já chegando em Fes, de onde partiria meu vôo, ele perguntou se eu conhecia o TED.com. Respondi com o slogan do site: "Ideas worth spreading". Ele exclamou algo em árabe, talvez o equivalente a "Puta que o pariu!".

Por aqui, como a maioria sabe, é algo bem maior, conta com o patrocínio de grandes empresas, portais de internet etc. Ele está organizando um TEDx no Marrocos. De novo, sem recursos, a parte das obrigações que ele tem. Por lá é algo rudimentar. Sem patrocínio, sem Oi!, Santander ou Natura, nem tampouco com apoio de uma parcela da população, mas está indo em frente graças à iniciativa de gente como ele.

Atualmente, ele está tentando angariar recursos e patrocinadores para viabilizar o projeto. Ainda não está decidido a localização exata, mas a disputa final está entre Casablanca e Fes. O evento deve ocorrer no começo do segundo semestre.

E eu, que muitas vezes me contento em ficar assistindo algumas palestras e pensando em como tem gente foda por ai?


publicado em 28 de Março de 2011, 09:51
Eduardoamuri

Eduardo Amuri

Autor do livro Dinheiro Sem Medo. Se interessa por nossa relação com o dinheiro e busca entender como a inteligência financeira pode ser utilizada para transformar nossas vidas. Além dos projetos relacionados à finanças, cuida também da gestão dO lugar.


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