"Como foi me assumir gay para os meus amigos" e "Como reagi quando meu amigo contou que era gay"

Um relato sobre amizade escrito a quatro mãos, um pedaço pelo Danilo e o outro pelo Rafael

Como foi me assumir gay para os meus amigos, por Danilo Gonçalves

Ninguém! Eu disse NINGUÉM merece viver na escuridão. Muito menos na escuridão de si mesmo. Quando criança, eu não conseguia entender direito isso que, hoje, já me é tão claro. Um amigo, gay também, sempre nos conta que não se lembra, na vida inteira, de já ter sentido alguma atração por meninas. Eu me “traí”, digamos assim, até os 18 anos. Namorei três garotas (de uma sou até padrinho de casamento) dos 15 até a maioridade. Não que eu não tenha gostado delas, gostei muito, como ainda acredito poder me apaixonar por uma mulher algum dia. Afinal, não sabemos absolutamente nada sobre o futuro.

Recordo-me claramente de sempre, desde as minhas primeiras lembranças, ter achado homens bonitos, gostado de “coisas de menina” (tidas ou impostas como, digo). Na pré-escola, eu sempre optava por ser o papai na brincadeira de casinha das minhas colegas. E de sofrer quando a professora me pedia para ir brincar um pouco com os meninos(?). Na adolescência, quando a cobrança pelo primeiro beijo é grande, vi-me coagido a ficar com uma menina então. Passa o tempo, e a gente não aguenta. Para uns a luz vem mais cedo, mas não é para todos.

Aqui um parêntese: o caso do jornalista (?) que achou o máximo tirar gays do armário na Vila Olímpica do Rio 2016 é absolutamente lamentável. As pessoas resolvem-se com sua sexualidade (e questões da vida particular em geral) no momento delas, na hora delas. É neste momento que elas contam com o apoio dos seus, sendo muito triste ter algum “segredo” revelado para o mundo sem prévia consulta!

Comigo aconteceu quando entrei na faculdade, essa grande divisora de águas na minha vida e de todos, penso eu. Naquele ambiente me senti mais aceito, minhas opiniões eram mais ouvidas. Um namoro durante o curso e, ao término do relacionamento de nove meses, a luz clareou dentro de mim. Ainda receoso, recorri à Internet (à época, discada) para grupos de bate-papo gay e até putaria, claro. Ah, esta última eu não me lembro de ter curtido com cenas hétero, mas isso é só um detalhe.

No mundo virtual, conheci um garoto, o primeiro com quem eu, com nome e sobrenome, me senti seguro a pôr a cara pra fora do armário. Esse relacionamento virtual durou mais de um ano, sempre na insistência de que nos víssemos pessoalmente. Meu medo era vê-lo, sair do armário em definitivo e ter que bancar isso para a sociedade. Chegamos a nos ver, mas nada rolou. Acho que ele nem vai ler tudo isso, mas de alguma forma sou grato a ele por ter me ajudado a vir ao mundo mais uma vez.

Empoderado e certo de quem eu realmente sou e com discurso afiado, comecei a contar para as pessoas próximas. Primeiro uma amiga (a que já namorei e sou padrinho de casamento). “Uau! Não esperava que você se abriria primeiro comigo. Chegou a me passar isso pela cabeça, mas não quis ser inconveniente”. Foi a primeira reação dela. Logo depois, lembrou algumas situações (que não vêm ao caso, claro) em que minha homossexualidade chegou a passar por sua cabeça, mas só viemos falar disso durante a conversa mesmo. Aquilo me causou certo constrangimento, mas não nos afastamos nem um dia sequer.   

Tendo contado para a primeira pessoa, saí em busca dos mais próximos. Ouvi “nossa, não esperava”, “ah, Dan, só você que não sabia [eu sabia, sim!]”, “Sempre quis te tirar do armário”, “Que bom, sempre quis ter um amigo gay (?)”. Até que chegou o (pra mim, tão esperado) dia de contar para minha mãe, minha melhor amiga (que é como nós nos definimos desde sempre). “Mãe, vem cá, quero levar um papo sério com você”, intimei-a. Ela não imaginava o que estava por vir. Sentados na minha cama, fiz questão de contar minha história em ordem cronológica. “Lembra ‘tal coisa’, mãe”, “Sabe quando eu fiz aquilo”, “Nunca passou pela sua cabeça que eu pudesse ser gay?”. Ela arregalou os olhos e não falou nada! Eu cheguei a ser enérgico questionando porque nunca me ajudaram a me descobrir. Ainda tenho dúvidas se isso é possível. Mais tarde entendi que ela quis me dar o espaço que eu pedia. Nessa altura, eu já namorava o Ti (sim, foi bem rápido até esse amor acontecer). A conversa com a minha mãe durou mais de 3 horas. Era praticamente um monólogo!

No dia seguinte, seguimos nossas vidas normalmente. Eu, um pouco encanado com o silêncio, esperava que ela falasse algo. Qualquer coisa que me garantisse que ela ainda me amava. Injustiça minha. Um belo dia, uma semana depois talvez, recebo um e-mail: “Dan, não pense que não estou dando importância para seus sentimentos, estou em silêncio apenas para reunir todas as forças necessárias para eu te proteger de qualquer coisa”. Eu não esperava menos! Nem respondi a esse e-mail, apenas me emocionei. Desde então minha vida, claro, tem muita importância para ela e o Ti é tratado há quase 9 anos como filho.

Uns dias depois, eu chamei minha irmã para conversar. Ela, que é 10 anos mais nova que eu, na época tinha apenas oito. Ela entendeu o que seria o papo. Fugiu. Mas numa terça-feira qualquer, ao chegar do trabalho e abrir a porta do meu guarda-roupas, me deparo com um bilhete curto: “Dan, eu já sei o que você quer conversar comigo! Não precisa. Não importa quem você seja, o que faz. Vou te amar para sempre”. Até hoje me emociono ao lembrar dessas palavras.  

Nessa época, já fazia uns três anos que meus pais tinham se separado. Meu pai se distanciou e, por isso, nunca tive oportunidade (ou talvez vontade) de me abrir com ele. Algo que veio acontecer quando eu já estava com meus 22 ou 23 anos. Na saída do shopping, prestar a nos despedirmos, era véspera de Natal (meu aniversário), eu apenas lancei: “Pai, eu tenho um namorado!”.  Ele também emudeceu, apenas se demonstrou bastante surpreso. Lembro de aquilo ter me causado certa angústia, mas minha mãe me confortava: “Cada um tem seu tempo, Dan!”. De fato. Anos mais tarde, ele veio à minha casa e, como bom conversador, contou naturalmente seus causos.

O Ti, hoje meu marido, era amigo de faculdade e contar para ele foi “fácil”, pois já tendo saído do armário também me ouviu balançando a cabeça que “sim, passei exatamente pelo mesmo processo”.

Cheguei a trabalhar junto com ele, quando já namorávamos, e aí vêm as surpresas maravilhosas que a vida nos dá. Os amigos que vão chegando. O Nardas (esse grande amigo irmão que assina esse artigo comigo) é um deles. Sempre me chamou a atenção por ser muito bonito, quando o que eu não sabia, até então, é que a beleza imensuravelmente maior ainda estava por vir. Era conhecê-lo e tê-lo como alguém com quem também posso contar. Sempre.

Entre uma cerveja e outra, eu ainda como agregado da equipe de trabalho deles (Ti e Nardas), nós nos aproximamos e nos aproximamos e nos aproximamos e continuamos nos aproximando sempre. É amizade verdadeira. De alma. Mas é claro que faltava alguma coisa. Até o dia que o Ti, sem mim, acabou “revelando” ao Nardas que nós formamos um casal. No dia seguinte, ao nos encontrarmos novamente, ele apenas me deu um abraço e disse que já tinha assumido o posto de padrinho, algo que foi concretizado efetivamente, cinco anos depois, há poucos meses.

Ao Ti, ao Nardas, aos meus amigos e a todos que resolvem não viver mais sozinhos na escuridão, dedico essa música que embala muitos dos encontros, regados a cerveja e bom papo, com essas pessoas que tenho o privilégio de viver em sol a pino.

PS: Sugiro que ouçam enquanto estão lendo o relato do Nardas a seguir.

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***

Como reagi quando meu amigo contou que era gay, por Rafael Nardini

Vamos lá: a amizade é a relação mais bem construída do ser humano. Talvez, até por isso, seja tão pouco retratada nas representações culturais. Ok, você vai lembrar de "With A Little Help From My Friends", de Sideways, e vai dizer que estou maluco. Mas ponha em perspectiva e vai ver que a proporção é sempre bem baixa. Pouca gente está disposta a discutir o indiscutível: a cumplicidade de uma boa amizade reina firme no panteão das necessidades humanas. Vai muito bem, obrigado.

Da mesma forma que você, também fui premiado com bons e confiáveis amigos. A sorte aumenta porque posso dizer que tenho um irmão que é um amigo e um punhado de amigos que são irmãos. Qualquer mudança brusca, medo, ansiedade, dificuldade mínima durante uma semana dura de trabalho e vão as mensagens trocadas para aquela cerveja de meio de semana com efeito psicológico libertador. Convites simples - deles ou meus - e lá está a patota toda reunida numa nuvem de fumaça, debates, dúvidas, queixas e aquela sensação como-foi-rápido-esta-noite-e-era-bem-melhor-que-isso-jamais-acabasse.

O Dan surgiu no meu caminho como um tradicional "amigo do amigo". O amigo original era o marido dele, o Ti. O Ti é um cara crítico, fino, discreto, de humor ácido, cérebro afiado, humor corrosivo e um coração gigante demais para não querer se aproximar dele. Adicione aí um tino maravilhoso para a música e para o cinema. A gente dividiu a cobertura das eleições em 2010 de segunda à sexta e uma porção de mesas com garrafas vazias sempre que o horário permitisse.

O Dan é como se fosse um complemento perfeito para o Ti. Solar, florido, risonho, provocador, militante, engraçado e uma das melhores presenças de palco que já vi. O palco pode não existir, mas tudo passa a girar em torno dele. É a Beyoncé que o mundo ainda não descobriu, mas sempre há tempo para isso.

A aproximação veio também porque nós três morávamos perto um dos outros e longe demais do trabalho. O pacto era o seguinte: Vocês suportam a minha direção e eu dou uma carona marota para vocês. Sempre estavam eles, eu e uma amiga que o mundo decidiu tirar da nossa vida de maneira trágica. Pri, você é absolutamente culpada por isso tudo, tá?

O tempo passa, trabalhos mudam, pessoas mudam, o mundo muda (ainda bem) e ficam os amigos. É a amizade, lembra? Num desses encontros semanais, já distantes do dia a dia - quando já não trabalhávamos juntos -, o Ti simulou algo como o diálogo a seguir:

— Nardas, você sabe do Dan, né?

— Eu só quero ser o padrinho, respondi.

Foi isso e um apertado abraço. Eu marejei os olhos, como é bastante comum. Certamente vieram outras cervejas. Se fiquei mais leve, não consigo imaginar o que foi aquilo para ele. E para eles. 

Mecenas: Renault - Renografias

A Renault apoia a diversidade e acredita que amizades verdadeiras prevalecem independente da orientação sexual de cada um.

Esse curta-metragem da série Renaut Renografias, não foi feito para falar de um novo carro, mas para mostrar para todo mundo que parcerias e elos significativos prevalecem independem de quem o coração dos nossos amigos escolhe gostar. 

Conheça mais histórias e narrativas lindíssimas como essa lá no site da Renault.

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publicado em 25 de Agosto de 2016, 00:30
Bio

Danilo Gonçalves e Rafael Nardini

O Danilo é jornalista e o Rafael também. Juntos, são grandes amigos, um padrinho de casamento do outro.


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