Como é ser homem em uma profissão historicamente feminina?

Minha experiência atuando na enfermagem

Quando eu estava no último ano da faculdade de enfermagem fiz os estágios em obstetrícia e neonatologia. Foi quando eu tive o primeiro contato com as gestantes, desde o acolhimento nas unidades básicas, passando pelo parto, o período do puerpério até a alta e passando pela UTI Neonatal, onde estavam internados aqueles pequenos seres humanos. Apesar deu sempre pender para o lado da emergência, surpreendentemente me saí muito bem nessas disciplinas. Foi por isso que achei estranho quando minha professora me chamou de canto:

“Edson, eu vi que você foi bem nestes estágios, algumas pessoas até vieram falar comigo. Mas eu vou te dar um conselho: escolha qualquer área para se especializar, exceto obstetrícia e neonatologia”.

“Mas por quê?” perguntei eu, confuso.

“Porque você vai encontrar dificuldades na área por ser homem. Mesmo sendo um bom profissional vai enfrentar resistência, tanto por parte dos profissionais como das mães e familiares”.

Eu guardei aquilo comigo. Hoje, mais de dez anos depois eu sem ter  seguido a área de obstetrícia, vejo que por trás daquelas palavras haviam muitas verdades.

Um pouco de história

A enfermagem é uma profissão predominantemente feminina. Teve início no ato de cuidar, tendo a mãe como o principal expoente, e depois transferido para a mulher de maneira geral. Quando se pensa em “cuidar”, geralmente se evoca uma imagem da mãe cuidando do filho. A profissão seguiu com uma visão religiosa baseada na caridade e na devoção até 1860 quando Florence Nightingale fundou as bases da enfermagem moderna. Ao longo do século XIX e XX, o modelo de Nightingale se espalhou pelo mundo tendo seus fortes preceitos morais como base, especialmente a ideia de “vocação feminina para o cuidar”.

É interessante notar que não havia a denominação “enfermeiro”. Aos homens não cabiam realizar tais funções; na verdade, durante as guerras, eles só ocupavam o posto de enfermeiros quando eram considerados “inaptos” para desenvolverem outra função, tornando essa uma espécie de castigo.

Um exemplo foi o filósofo alemão Friedrich Nietzsche que atuou como enfermeiro na Guerra Franco-Prussiana em 1870, mas não pode continuar devido a problemas de saúde.

No Brasil a inserção do homem na enfermagem teve início com a criação dos hospitais psiquiátricos, onde a presença do homem era importante mais em razão da força física do que pelo ato de cuidar. Em 1890 foi aprovada a criação da Assistência Médico Legal a Alienados, que retirou as irmãs de caridade e impôs a presença e a “vigilância de guardas de enfermeiros”. A presença masculina deveria inibir os comportamentos sexuais dos internos masculinos.

Em 1905 entrou em atividade a Escola Profissional de enfermeiros e enfermeiras, hoje Escola de Enfermagem Alfredo Pinto, UniRio, no Rio de Janeiro, cuja primeira turma tinha 27 homens. Em 1949, devido à falta de profissionais, houve a criação de diversas escolas pelo país, tendo início uma nova era de enfermeiros. O exército brasileiro também teve importante papel nesse contexto, impondo regulamentos nos quais apenas os militares homens poderiam exercer a função técnica em saúde.

Homens na enfermagem

Na minha turma de faculdade éramos dois homens em um total de 30 alunos. Dos meus veteranos, quatro. Não havia outros nos anos anteriores. No ano seguinte entraram três homens e depois mais dois. Além disso, só tive um professor que era enfermeiro em um departamento com 30 professoras. Dos outros enfermeiros que conheci nesses anos, todos relatam cenários semelhantes. Ou seja, existem poucos homens na enfermagem.

Em 2015 foi realizada uma Pesquisa do Perfil da Enfermagem no Brasil, pelo Conselho Federal de Enfermagem – Cofen. Entre os muitos resultados concluiu-se que a profissão é composta por 84,6% de mulheres. Ou seja, de cada 100 profissionais da enfermagem, 15 são homens. Aparentemente, a partir da década de 1990 iniciou-se uma “masculinização” da categoria, com um aumento do contingente masculino, contudo ainda há um predomínio feminino na profissão.

Mas o que isso acarreta?

Preconceitos de todos os dias

A enfermagem é uma profissão que carrega preconceitos estereotipados, tanto para as mulheres como para os homens. Além do que é enfrentado no contexto social, tendo muitas vezes questionada a própria orientação sexual, os homens também encontram obstáculos na relação profissional – paciente. Um exemplo é a realização de um exame citopatológico, o famoso Papanicolau, na qual muitas mulheres se recusam a serem atendidas por um enfermeiro.

Nós muitas vezes não somos bem vistos em relação ao cuidar. Geralmente somos treinados para sermos racionais, objetivos, práticos e duros, características que não parecem muitos ligadas à enfermagem. Por isso, muitas vezes o homem vai ser questionado e terá seus conhecimentos testados. Ainda há, por exemplo, casos de enfermeiras que não aceitam bem a presença masculina na área, considerando o homem estranho, preguiçoso, desajeitado ou menos capacitado para desenvolver suas funções. É necessário provar competência e sensibilidade diariamente. Já fui criticado por uma professora justamente por “não ter a devida sensibilidade necessária”.

Em algumas situações as próprias docentes reproduzem as divisões sexistas, em virtude de suas experiências pessoais​. Esses comportamentos são internalizados e levados para a vida profissional, mas acredito que tal posicionamento esteja ligado​ às professoras mais antigas.

Felizmente, entretanto, algumas amigas enfermeiras docentes me relataram justamente o contrário, que atualmente os homens são bem vistos e até incentivados a entrar em áreas tidas como femininas, como pediatria ou neonatologia.

Vivemos em um contexto no qual a ideia do homem costuma ser associada à características como liderança, força, visão e determinação. Isso faz com que muitos enfermeiros ascendam a cargos de chefia e progridam na carreira muito mais rápido do que as mulheres com o mesmo preparo profissional. Por um lado isso pode ser visto como reflexo de uma sociedade preconceituosa, onde, mesmo em uma profissão predominantemente feminina, mulheres em cargos mais altos são alvo de crítica e preconceito. Por outro lado, porém, encaminhar os homens para cargos de chefia tira-os de um cuidado direto com o paciente, reforçando o estereótipo da “inaptidão masculina para o cuidado”.

Além disso, cuidar das pessoas envolve alegrias e sofrimentos. Enfermeiros vivenciam muitas situações de estresse, sendo que a classe apresenta uma grande incidência da Síndrome de Burnout, um tipo de esgotamento físico e mental. Isso porque ser enfermeiro é resolver problemas. Seus problemas e de outras pessoas. E nesse mar de emoções​ conflitantes,​ espera-se que os homens sejam “duros” e não deixem que isso interfira em seu trabalho e desempenho. Isso cria questionamentos sobre o que está sendo feito e por quê.

O futuro

Lentamente nós estamos ganhando espaço na área da enfermagem. Ainda não há um número expressivo, mas seu contingente vem aumentando ao longo dos anos. Os homens estão presentes não só nas atividades administrativas, mas também no cuidado direto. É importante lembrar que o cuidar é uma atividade inerente ao ser humano, independente do sexo. Todos precisamos ser cuidados em algum momento da vida e, na maioria deles, os enfermeiros estão lá.

Não me sinto mal com a minha profissão, só penso que os homens enfrentam alguns problemas e dificuldades para desenvolver suas atividades. Estamos tentando vencer estes desafios todos os dias, assim como diversas outras profissões.

Sou grato pela enfermagem, ela me deu tudo o que tenho e o que sou hoje. Sei que já fiz um pouco pelas pessoas e posso continuar fazendo. Na maioria das vezes esse fazer, esse bem, esse cuidar, não precisa ser algo extraordinário, como salvar uma vida em uma situação de emergência ou fazer um parto dentro de um elevador. Muitas vezes a diferença está nos pequenos gestos.

Em meu último dia de estágio no hospital estávamos nos preparando para passar o plantão e ir para as provas finais.

Eu estava orientando um paciente para a alta hospitalar e retirei um cateter que estava no seu braço. Era um senhor de idade, muito simples, e seus olhos brilhavam pois ele ia para casa depois de um longo período de internação. Enquanto estava fazendo o curativo ele disse:

“Obrigado. Obrigado a todos vocês por tudo que fizeram. Mas vocês homens são poucos não? Acho que só vi você e mais um, todas as outras eram mulheres...”.

Terminei o curativo e disse: “Somos poucos mas somos igualmente bons”. Ele sorriu, me cumprimentou e se despediu.


publicado em 21 de Abril de 2017, 00:10
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Edson Diniz

Edson é enfermeiro, aikidoca, aspirante a maratonista e dá seus pitacos como filósofo amador. Possui o poder de fazer comentários inadequados e sarcásticos em situações inapropriadas. Viciado em quadrinhos, às vezes se arrisca como escritor.


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