Como a linguagem molda o significado do mundo

“Mas você não me entende!”

Nos últimos meses estive fascinado por um conto chamado “Pierre Menard, Autor do Quixote”. O texto é de autoria do brilhante escritor argentino Jorge Luis Borges, ou Borges para os mais íntimos.

O curto conto de apenas 6 páginas traz um formato curioso, narrado por um crítico literário que, além de citar os grandes feitos do personagem central, um escritor chamado Pierre Menard, também analisa o que define como sua principal obra, o Dom Quixote.

Mas sabemos que o Quijote foi escrito por Miguel de Cervantes, então como esta pode ser a maior obra do personagem? A proposta de Pierre Menard, o personagem, foi reescrever alguns capítulos do livro de Cervantes, mas com um detalhe: Sua intenção não era copiar, nem mesmo reinterpretar o que Cervantes escreveu. Menard queria viver as experiências de Cervantes e escrever, linha por linha, ponto por ponto, as mesmas palavras de Don Quijote de la Mancha.

“O método inicial que imaginou era relativamente simples. Conhecer bem o espanhol, recuperar a fé católica, guerrear contra os mouros ou contra o turco, esquecer a história da Europa entre os anos de 16O2 e de 1918, ser Miguel de Cervantes.”

Jorge Luis Borges

Jorge Luis Borges é bastante detalhista na construção desta ousada empreitada, mas também levanta uma outra questão. O narrador do conto, em dado momento, passa a comparar o significado dos escritos de Cervantes e de Menard:

Constitui uma revelação cotejar o Dom Quixote de Menard com o de Cervantes. Este, por exemplo, escreveu (Dom Quixote, primeira parte, nono capítulo):

…a verdade, cuja mãe é a história, êmula do tempo, depósito das ações, testemunha do passado, exemplo e aviso do presente, advertência do futuro.

Redigida no século XVII, redigida pelo “engenho leigo” Cervantes, essa enumeração é mero elogio retórico da história. Menard, em compensação, escreve:

…a verdade, cuja mãe é a história, êmula do tempo, depósito das ações, testemunha do passado, exemplo e aviso do presente, advertência do futuro.

A história, mãe da verdade; a ideia é assombrosa. Menard, contemporâneo de William James, não define a história como indagação da realidade, mas como sua origem. A verdade histórica, para ele, não é o que aconteceu; é o que julgamos que aconteceu. As cláusulas finais — exemplo e aviso do presente, advertência do futuro — são descaradamente pragmáticas.

Vemos com clareza que o Narrador aborda trechos literalmente idênticos, mas atribui significados muito diferentes às mesmas palavras; escritas na mesma ordem e com a mesma pontuação. O que Borges — o autor real, não o personagem — sugere, com tamanha sutileza, é que o simples ato de ler também adiciona significado à obra do autor.

Apesar da discussão central do conto ser a questão da autoria, plágio e criação, a noção de que a ação de interpretar uma obra modifica seu sentido é um princípio muito importante e nos faz pensar sobre os diferentes pesos que atribuímos às informações que recebemos.

Observe a seguinte imagem:

O que você vê? Um pato ou um coelho?

A imagem do “patoelho”, é um popular exemplo para demonstrar o conceito das diferenças de percepção. Na imagem, uma pessoa poderia facilmente argumentar que enxerga um pato, assim como outra diria que trata-se de um coelho.

Dica: se esconder a ponta do bico do pato, fica mais fácil de visualizar o coelho, se tampar a ponta do nariz do coelho, é mais fácil de visualizar o pato.

Ludwig Wittgenstein, o filosofo austríaco que propôs o exemplo do patoelho, introduz um conceito que nos ajuda a entender melhor o papel da interpretação na linguagem, o que chama de “Jogos de Linguagem”. Para ele, palavras são ferramentas que utilizamos para desempenhar diferentes “jogos”, sendo esses jogos “tratados de intenção”.

Ao dizermos “Não se preocupe, vai ficar tudo bem”, por exemplo, não estamos jogando “projeções racionais de acordo com os fatos disponíveis”, mas o jogo “palavras como instrumento de conforto e segurança”.

Para Wittgenstein, todo desentendimento acontece quando não entendemos o jogo que a outra pessoa está participando.

Em outro exemplo, quando um pai há 20 anos repete a mesma frase — “Volta logo!” — sempre que a filha sai de casa, não está dizendo que espera que ela volte o mais rápido possível, ele está atuando noutro jogo, o “estou demonstrando minha preocupação e quero que você fique bem”.

Através das palavras é que moldamos nossa percepção do mundo, mas como muitas vezes a interpretação é diferente para cada uma das pessoas, é fácil que surjam conflitos e desentendimentos.

Se não sabemos, por exemplo, o que significam as palavras angústia, nostalgia, saudade ou melancolia, como podemos explicar com clareza a forma que nos sentimos?

Quando dizemos — em português — que sentimos saudade, não estamos simplesmente dizendo “i miss you”, mas tentando descrever um profundo sentimento de melancolia atrelado ao afastamento de uma pessoa, objeto ou lugar; não é apenas “sentir falta”, vai muito além disso.

Esquimós possuem mais de 180 palavras para dizer neve, outras 300 paratipos de neve. Cada detalhe diferente que um esquimó observa sobre a neve tem uma palavra especifica, influenciando bastante o percepção sobre algo que para a maioria de nós é tão limitado.

Conforme desenvolvemos nosso detalhamento em termos de linguagem, de riqueza de palavras e contextos em que são aplicáveis, somos capazes de compreender melhor não apenas o mundo externo, mas ampliamos o entendimento acerca de nós mesmos.

A ferramenta que temos para ampliar nossos horizontes, compreendendo melhor o mundo e nossos próprios sentimentos, é o aprofundamento sobre a linguagem. Quando lemos livros ou aprendemos outros idiomas, estamos em contato direto com outras formas de abstração, sentidos que para nós, na lógica antes de tal conhecimento, não fariam sentido algum.

Um termo em inglês, se traduzido literalmente para o português, provavelmente não nos parecerá lógico. Apenas depois que aprendemos a utilização de determinada palavra, é que somos capazes de compreender seu real significado.

É imprescindível, para adquirir uma visão mais rica da realidade e não limitar o nosso entendimento ao raso repertório de ideias e significados que já conhecemos, nos aprofundar em novas leituras e no estudo — mesmo que casual — da linguagem. Caso contrário, passaremos o resto da vida discutindo se o gato está subindo ou descendo a escada.

Nota: esse texto foi originalmente publicado no Medium do Brandão.


publicado em 09 de Janeiro de 2017, 17:37
12596172 10153389055960906 1551523976 n

Alberto Brandão

É analista de sistemas, estudante de física e escritor colunista do Papo de Homem. Escreve sobre tudo o que acha interessante no Mnenyie, e também produz uma newsletter semanal, a Caos (Con)textual, com textos exclusivos e curadoria de conteúdo. Ficaria honrado em ser seu amigo no Facebook e conversar com você por email.


Puxe uma cadeira e comente, a casa é sua. Cultivamos diálogos não-violentos, significativos e bem humorados há mais de dez anos. Para saber como fazemos, leianossa política de comentários.

Sugestões de leitura