Como a gente pensava quando era criança

Criança tem um jeito diferente de pensar.

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Minha namorada adorava o avô. O que ela mais gostava era que ele deixava ela fazer tudo (como qualquer bom avô).

A brincadeira favorita dela era brincar na careca do velho: colocar as bonecas, os carrinhos, desenhar e por aí vai.

Até o dia que ela passou perfume para o vô ficar com a cabeça cheirosa.

Uma semana depois, o velho teve um infarto e morreu.

A menina tinha certeza absoluta que era a única culpada pela morte do avô. Tudo por causa do maldito perfume que ela resolveu passar. Se ela tivesse só se contentado em brincar com as bonecas e os carrinhos, o velho ainda estaria vivo.

Não contou pra ninguém, nem pra mãe, nem pros tios, nem pros primos.

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Assim que fui alfabetizado, tinha mania de ficar lendo tudo que via pela rua. Outdoors, placas, adesivos, parachoques de caminhão, as revistas que ficavam expostas na banca de jornal.

Um dia eu reparei que um prédio estava com uma placa bem grande no portão escrito: "vende-se".

Parei na frente, olhei pra cima e contei andar por andar, tinham 17.

Fiquei por dias pensando que tipo de pessoa tinha tantos filhos para precisar comprar um prédio inteiro para morar.

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Teve o caso de um cara cuja mãe sempre queimava as bordas da lasanha.

E ele tinha certeza de que quando o pai dele foi embora, foi tudo culpa da borda queimada da lasanha.

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O Jader pediu uma tartaruga ninja para a mãe a caminho de uma consulta para o médico.

Ela disse que, se sobrasse dinheiro, depois de pagar o valor da consulta, ela compraria.

Na hora de pagar, ela preencheu o cheque e disse pro filho que infelizmente não ia sobrar dinheiro para comprar a Tartaruga Ninja.

Ele explicou pra mãe que tinha sobrado dinheiro sim, ela tinha pago a consulta em cheque e as notas de cruzeiro que estavam dentro da bolsa eram mais que suficiente pra comprar a Tartaruga Ninja.

O médico ouviu, achou engraçado e ficou comovido. Abateu do valor da consulta o preço da Tartaruga Ninja.

E foi assim que ele ganhou o Donatello.

Para quem não lembra, Donatello é o de faixa roxa
Para quem não lembra, Donatello é o de faixa roxa

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Uma vez, com uns 6 anos, no banheiro do meu pai, peguei a espuma e a lâmina dele escondido.

Fiz a barba toda, menos o bigode.

Lá para os 10 anos, começou a nascer os primeiros sinais de barba no meu rosto, aqueles pelos bem ralinhos. Mas só no bigode, nada no resto do rosto.

Eu tinha certeza que fazer a barba precocemente era o motivo de não ter nascido pelos no resto do meu rosto.

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O Guilherme, com sete anos, idade na qual meninos já se consideram bravos o suficiente pra... muita coisa, das quais eles não sabem bem. No caso dele, achava ser um machinho capaz de assistir qualquer filme de terror. Qualquer um. E seus dois primos, Juliano e Adriano, pensavam parecido.

Eis que um tio meio espírito de porco desafiou eles a verem, "A Hora do Espanto".

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Viram. Com os olhos esbugalhados, absorvendo cada minuto de terror e vampirismo possível.

Dali em diante, passaram, os três, a só dormir de luz acesa – para assim garantir que vampiros não chupariam seu sangue. Foram muitas semanas até Juliano, o mais sagaz, sugerir dormir com a coberta enrolada até o pescoço, pois assim evitariam o ataque, mesmo em sono profundo. Afinal, qual vampiro teria a pachorra de interromper o sono de uma criança pra dar cabo de sua vida?

Pois foi assim que eles "superaram" os demônios e cultivamos o hábito de dormir com a coberta até o pescoço, peculiar característica que seguiu com o Guilherme por muitos e muitos anos depois daquela fatídica sessão de cinema.

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É, criança é demais.


publicado em 02 de Janeiro de 2014, 16:13
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Rodrigo Cambiaghi

é especialista em mídia programática, monetização de sites e BI. Reveza o tempo entre filha, esposa, cão, trabalho, banda, moto, games, horta de casa, cozinha e a louça que não acaba nunca.


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