Ela veio de um histórico familiar complicado – até aí, não muito diferente de quase todo mundo. Mas, no caso de Cheryl Strayed, a coisa foi um pouco mais difícil do que para a média dos seres humanos: estou falando de violência física e psicológica do pai, abuso sexual praticado pelo avô, morte repentina da mãe. Agora some a isso um divórcio aos 26 anos e, claro, um monte de questões emocionais por trabalhar. O que fazer?
Bom, se você já aprendeu que as melhores e mais efetivas soluções não raro são as menos óbvias, deve ter adivinhado: uma trilha de cerca de 1.770 km, completamente sozinha, sem experiência em percursos de longa distância e com pouco dinheiro. E nunca é demais lembrar que estamos falando de uma mulher e isso foi há vinte anos.
Quando nada ia bem, Cheryl Strayed tomou uma das decisões mais corajosas e inteligentes de sua vida: em vez de tirar férias e passar uns dias num resort para desestressar, ela resolveu percorrer por três meses a PCT – Pacific Crest Trail, trilha na costa oeste dos EUA que vai da fronteira com o México à fronteira canadense.
Mesmo tão jovem, essa americana nascida na Pensilvânia e criada no Minnesota já sabia que, às vezes, é preciso dificultar a vida para depois torná-la mais fácil.
Mais tarde, a trilha virou uma experiência que mudou sua vida, virou um livro, filme, fama e sucesso. Mas, até que Hollywood cruzasse o seu caminho, muita coisa precisou acontecer.
Coragem dentro e fora da trilha
No início da década de 90, Cheryl viu sua vida desmoronar. Sua mãe morreu vítima de câncer, seu casamento chegou ao fim, ela começou a se envolver com drogas e transar com os caras mais aleatórios possíveis, buscando desesperadamente prazer e, ainda assim, se sentindo totalmente perdida.
Foi então que se deparou com um livro sobre a PCT e, nesse momento, a ideia da trilha começou a ser semeada. Foram alguns anos até que a coisa acontecesse e, quando rolou, sua mochila era tão pesada que não conseguia levantá-la sem um ritual de deitar-se, colocá-la nas costas, apoiar as mãos e os joelhos no chão, tomar impulso e ficar – com muito esforço – de pé.
E ela aguentou. Não só o peso, mas a solidão, as dores, os animais selvagens e todas as dificuldades que surgiram na jornada. Como se fosse pouco, transformou tudo isso numa história intensa e maravilhosamente bem contada em seu segundo livro – Wild, traduzido para o português como ‘Livre’.
Antes da fama com esse best-seller e seu fruto cinematográfico, ela havia trabalhado como garçonete e assistente social e já havia publicado seu primeiro livro, Torch, além de escrever para revistas, jornais e sites regularmente. Mas o que é mais admirável em Cheryl é sua humildade.
Num dos textos de sua coluna, Dear Sugar, que deu origem a uma coletânea publicada sob o nome Tiny beautiful things, ela responde à carta de uma jovem escritora que passa por uma crise de insegurança e criatividade, tão comum a artistas. A moça se diz em pânico com a possibilidade de não conseguir superar suas próprias limitações e inaptidão para escrever bem, com inteligência e coração. Cheryl então aconselha:
“Eu parei de ser grandiosa. Eu me puxei para baixo, para a noção de que a única coisa que importava era tirar aquele segundo coração que estava batendo no meu peito. O que significava que eu tinha que escrever meu livro. Meu muito possivelmente medíocre livro. (…) Foi apenas aí, quando eu humildemente me rendi, que eu consegui fazer o que precisava ser feito. (…) Por trás de toda ansiedade, sofrimento, medo e autocrítica, há uma arrogância em seu estado mais puro. Uma presunção de que você deveria ser bem sucedida aos 26, quando, na verdade, leva muito mais tempo para que a maioria dos escritores chegue lá. Você critica a si mesma, mas ainda está consumida pelas ideias que tem sobre sua própria importância. Você está muito no alto e muito em baixo. Nenhum desses lugares é onde conseguimos realizar alguma coisa. A gente põe a mão na massa é com os pés no chão.”
Qualquer pessoa que se dedica a alguma atividade artística sabe: a gente tem que fazer aquilo para não explodir. E mostrar o resultado do nosso esforço é algo que, em geral, nos faz tremer de medo. Afinal, trata-se de uma coisa tão significativa para quem fez, que mexe com ego e vaidade, que exigiu dedicação, autoexposição, vulnerabilidade e que pode ser tachada de ruim sem dó, em minutos.
Tem que ter muita coragem e, principalmente, humildade para se lançar na arena com os leões.
Mesmo sem conhecê-la, Cheryl faz um bem enorme pra mim e pra você
A trajetória dessa mulher cruza com a de várias outras mulheres. Ouvi falar dela pela primeira vez quando, aos 26 anos, estava me separando e embarcando numa viagem sozinha que começava no sul da Califórnia e terminava em Portland, no Oregon – ponto final de Cheryl na PCT. Foi uma grande coincidência, já tinha planejado a viagem antes de ouvir falar de Livre e a separação aos 26, bom, essa não tinha sido planejada em momento algum.
O fato é que, assim que tive o livro nas mãos, engoli-o, menos pelos pontos em comum com a minha própria história do que pela forma sublime com que Cheryl narra os fatos. Ela é uma grande inspiração e tem levado sua vida exatamente como o título de seu livro em português sugere: livre. E com sua atitude feminista e empoderadora ela acaba por encorajar mulheres a se libertarem e tornarem-se pessoas muito mais interessantes de se ter por perto.
Claro que Cheryl também teve suas inspirações – ela, aliás, fala de vários de seus escritores preferidos em Livre. Mas, na década de 90, era muito mais difícil ter todo esse suporte ideológico que as redes sociais e que a própria evolução da sociedade nos dão hoje. Era preciso muito mais autoconfiança para pôr uma mochila nas costas e superar o estereótipo feminino de sexo frágil. E ela fez isso seguindo o próprio coração.
Quando deu por si, lá estava, num hotel de beira de estrada perto da fronteira com o México prestes a começar a trilha que mudou a sua vida – e a minha bastante, e a sua um pouco também.
Como assim a minha?
Fortalecendo mulheres, ela também está ajudando a libertar homens que se veem presos na expectativa de ser o provedor, o inabalável e resistente suporte para as instáveis e emotivas garotas. Liberdade feminina é boa pra todo mundo. Em última análise, tira um peso desnecessário das suas costas.
Sem ter noção da dimensão que aquilo tudo tomaria, ela dava seus pequenos passos. Pequenos mesmo: no início da trilha, ela percorria uma média – considerada baixa – de 16km por dia, o que até a envergonhava diante de outros trilheiros.
No final das contas, acabou dando um grande salto em direção a mais igualdade entre os gêneros não apenas com sua retórica, mas também com sua atitude.
Resiliência e coragem são as palavras que definem essa grande mulher que, por acaso – ou não –, é também uma grande contadora de histórias. Por sua mãe, irmãs, amigas, companheira; pela literatura de alta qualidade; pela bela adaptação de Livre para os cinemas; pela trajetória inspiradora… Motivos não faltam para conhecer um pouco mais sobre Cheryl Strayed, ler o que ela escreve e assistir ao filme de Jean-Marc Vallée.
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