Carta para Marina

Algumas coisas precisam ser ditas.

[AVISO DE GATILHO: Setembro Amarelo. Esse texto possui trechos que podem desencadear lembranças dolorosas]

A terceira vez que eu pensei em me matar foi durante uma festa.

Era a despedida de solteira da sua prima e eu estava com um vestido preto, blusa jeans amarrada na cintura e tênis all star branco. A gente foi para a pista principal lá pelas três e meia da manhã. Lembra que eu fui fazer xixi e demorei tanto que você teve que ir atrás de mim? A segurança deve ter raiva de você até hoje por ter invadido o banheiro feminino gritando meu nome. Aposto que você desceu a escada pronta pra prender a respiração, amarrar meu cabelo e segurar minha mão, enquanto eu estaria abraçada com o vaso botando tudo pra fora. 

Eu não tava bêbada, Marina.

Primeiro foi aquele calor. A minha nuca parecia ter se transformado numa bolsa de água quente, daquelas que a gente usa pra cólica. Por falar em cólica, a dor começou parecida com a que eu tive no começo da semana. Mas o peso não era na barriga, era no peito. Uma grande placa de ferro apertava meu tórax enquanto um pacote inteiro de algodão passava pelos meus lábios e deixava minha garganta cheia de nada. Diafragma abaixava, costelas elevavam-se, volume da caixa torácica aumentava, mas o ar não entrava nos pulmões. Não chegava nem no meu nariz, que estava tão tampado quanto a minha boca seca e cortada pelos apertões que eu dei com os dentes, iguais aos que eu dou em você quando quero te irritar.

Eu tava me afogando.

Saí de perto de você e olhei em volta antes de caminhar até o banheiro. Desabotoei a blusa, abri a torneira e enchi de água uma conchinha que fiz com as mãos. Molhei meu rosto, minha nuca, tentei respirar fundo, mas ainda era como se eu estivesse sendo empurrada pro fundo de uma banheira.

Entrei na primeira cabine aberta e transbordei. 

Foi um choro inteiro. Parecia que toda a água daquela banheira imaginária tava saindo pelos meus olhos. Meu rosto era como um pano quente e eu soluçava a ponto de não ouvir meus pensamentos. Eu queria fugir, eu queria parar, eu queria desistir.

Minha mão tava mais molhada do que no nosso segundo encontro, quando andamos a Paulista inteira com os dedos entrelaçados, sem soltar nenhuma vez, sabe? Tô lembrando da palavra que você me ensinou aquele dia. Hiperidrose. Era o nome de uma doença, né? O lance de suor excessivo. 

Meu amor, pra selar o romantismo eu também quero te ensinar o nome de uma doença.  

Já fazia uns 8 meses que eu não tinha nenhuma recaída. Da última vez que eu tive uma crise você nem fazia ideia de que me conheceria. De que eu ia esbarrar na sua mesa, derrubar o litrão que você tinha acabado de abrir, pedir pra pagar outro, descobrir que meu cartão tava bloqueado e minha carteira vazia.

Às vezes eu repasso o dia em que nos conhecemos cirurgicamente, pra descobrir se eu faria alguma coisa diferente. Talvez eu passasse o Facebook antes do Whatsapp, só pra fazer um charme. Talvez eu me apresentaria de outra forma, falaria menos.

O que eu sei é que contar sobre o meu transtorno de ansiedade não estaria nem nos piores planos. Mas agora eu preciso que você saiba, Marina.

Eu preciso que você saiba que as vezes eu não tô bem. Que eu já fiz coisas ruins comigo mesma e me machuquei. Essa dor não é poética e nem simples. Não é frescura, preguiça nem egoísmo. Peço desculpas a todo momento e sempre acho que tô sendo um incômodo. Tenho crises sem aviso prévio e me desespero só de imaginar elas. 

Preciso que você saiba o quanto é importante falar sobre isso.

Eu venho caminhando com passos pequenos, sabe. Antes de desistir, eu pedi ajuda. Pedi ajuda porque eu entendi que devo ser ouvida, ser sentida, ser cuidada. Eu não sou um peso, não sou folgada, não quero chamar atenção.

Eu mereço ser amada.  

Eu consegui, Marina. Aquele dia, na festa da sua prima, eu não estava bêbada e nem fui fazer xixi. Ele foi mais um dos meus piores dias, mas consegui sobreviver. 

Eu tô muito orgulhosa de mim.

E eu sei que você também está. 

 

***

Esse texto é dedicado às pessoas neuroatípicas que lutam diariamente para seguir em frente. 

A Campanha Setembro Amarelo é uma ação do Centro de Valorização da Vida (CVV), Conselho Federal de Medicina (CFM) e Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). Essa iniciativa tem como objetivo visibilizar e conscientizar a respeito da prevenção do suicídio, colocando como prioridade a procura de serviços especializados e profissionais capacitados a lidar com o assunto. 

O CVV realiza atendimento gratuito e sigiloso via telefone, com objetivo de fornecer apoio emocional e prevenção do suicídio. Para entrar em contato, ligue 141.  


publicado em 20 de Setembro de 2016, 19:04
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Carol Rocha

Leonina não praticante. Produziu a série Nossa História Invisível , é uma das idealizadoras do Papo de Mulher, coleciona memes no Facebook e horas perdidas no Instagram. Faz parte da equipe de conteúdo do Papo de Homem, odeia azeitona e adora lugares com sinuca (mesmo sem saber jogar).


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