Carta aberta a uma estudante que perdeu a vaga por causa das cotas

A estudante branca norte-americana Abigail Fisher não foi aceita na Universidade do Texas e entrou na justiça contra a instituição, alegando ter perdido a vaga por causa do sistema de cotas raciais. O caso foi subindo de corte em corte até chegar à Suprema Corte, que acabou de mandar o caso de volta para as cortes inferiores, se recusando a julgá-lo. Água ainda vai correr debaixo dessa ponte.

Enquanto isso, Krystie Yandoli, escritora residente nos Estados Unidos, também branca, estagiária do site Huffington Post e colaboradora do Jezebel e do The Nation, escreveu a seguinte carta aberta à Abigail Fisher:

Abigail Fisher, descendo os degraus da Suprema Corte.
Abigail Fisher, descendo os degraus da Suprema Corte.

* * *

Prezada Abigail Fisher,

Cá entre nós, duas brancas de 23 anos que não foram aceitam pelas universidades que mais desejavam, preciso lhe dizer: acho que você levou essa história toda longe demais.

Depois de transformar seu fracasso em entrar na universidade em um processo que nem mesmo a Suprema Corte dos Estados Unidos conseguiu resolver, sua invencível convicção em uma noção distorcida de "justiça" é preocupante.

Estou falando como alguém que esteve em uma situação similar à sua, mas, se nós estivéssemos em um poema de Robert Frost, iríamos acabar em caminhos muito diferentes.

Deixe-me explicar.

Temos algumas coisas em comum. Também não fui aceita na universidade que eu mais queria. Mas, logo depois, também pude cursar outra universidade prestigiosa que me proporcionou uma ampla rede de oportunidades à minha escolha. Assim como você, que mesmo não tendo sido aceita pela Universidade do Texas, conseguiu entrar em outra boa universidade e conseguiu até um bem pago trabalho de analista financeira depois de se formar.

Veja, existe uma coisa chamada privilégio branco. Você tem. Eu tenho. Nossos pais têm. E isso reduz consideravelmente a probabilidade de passarmos por qualquer tipo de discriminação ou desigualdade profunda.

Privilégio branco significa que você, graças a normas sociais culturalmente arraigadas, possui uma vantagem automática sobre várias outras pessoas. Significa que existem hierarquias e sistemas agindo explicitamente para garantir o seu sucesso no mundo. Privilégio branco significa que, se você não não conseguir entrar na sua “universidade dos sonhos”, você ainda poderá se formar em outra universidade e ainda assim conseguir um emprego acima da média, mesmo em uma economia sucateada.

Também significa que, uma vez na universidade, você não será vítima frequente de nenhum tipo de racismo, seja ele óbvio ou sutil.

A meritocracia do Brasil, em uma charge.
A meritocracia do Brasil, em uma charge.

Não ser aceita pela universidade que você sonha em cursar é horrível. Mas sabe como isso se chama? Vida. Mas sabe o que horrível mesmo? A complexidade do racismo sistêmico que atormenta os Estados Unidos desde que ele existe. Assim como também é horrível ser discriminado à primeira vista somente porque nasceu pertencente a uma raça de seres humanos que foi, desde sempre, historicamente ferrada e desfavorecida.

O mais engraçado é você conseguiu convencer alguns juízes da Suprema Corte a levar tão a sério suas reclamações tão problemáticas e tão banais, e que advogados, políticos, jornalistas, ativistas e cidadãos gastaram o seu precioso tempo debatendo e refletindo sobre ação afirmativa, e tudo porque uma estudante que se formou no ensino médio com nota 8.0 não foi aceita em uma das mais competitivas e prestigiadas universidades públicas da nação.

Sem contar que o seu nome será para sempre sinônimo de tentativa de retrocesso contra a igualdade social. Mas vou além.

Essa coisa toda é maior do que você e eu. Não é apenas sobre esse caso isolado ou sobre o que uma pessoa (sem razões ou méritos legítimos) acha que merece em detrimento de outros estudantes. Na verdade, não existe isso de casos isolados. Tudo existe dentro de um contexto e, contextualmente falando, você não ter sido aceita pela Universidade do Texas não foi um caso de desigualdade.

Peggy McIntosh, em seu famoso ensaio, “White Privilege: Unpacking the Invisible Knapsack” (ou seja, "Privilégio Branco: abrindo a mochila invisível", talvez você queira procurar no Google), escreveu:

“Para mim, o privilégio branco se mostrou um assunto fugidio e impreciso. A pressão para ignorá-lo é enorme. Encará-lo de frente significa abandonar o mito da meritocracia. Se essas coisas forem verdade, então não vivemos em um país livre; então, a vida de um indivíduo não depende de suas ações; então, muitas portas se abrem para algumas pessoas por nenhum mérito da parte delas.”

Minha sincera esperança é que um dia você entenda e aceite a realidade de seu privilégio branco e de sua posição social. Até lá, tente refletir sobre as palavras sábias de Peggy McIntosh.

Tudo o tenho consegui com o esforço dos meus pais!
Tudo o tenho consegui com o esforço dos meus pais!

* * *

Tradução de Jorge Buratti.

O artigo original: An Open Letter to Affirmative Action Reject Abigail Fisher.

Mais sobre as cotas: O Peso da História: A Escravidão e as Cotas.

Escravidão, essa pica é nossa: Senzalas & Campos de Concentração.

Dois links sobre o desempenho superior dos cotistas: “Desempenho do cotista é superior ao do não-cotista”Alunos cotistas têm desempenho superior a não-cotistas.

Uma indispensável matéria de capa da Isto É: Por que as cotas raciais deram certo no Brasil

E, por fim, meus melhores textos sobre racismo.


publicado em 27 de Junho de 2013, 12:05
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Alex Castro

alex castro é. por enquanto. em breve, nem isso. // esse é um texto de ficção. // veja minha vídeo-biografia, me siga no facebook, assine minha newsletter.


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