Carta à Leontina

Nota do editor: Dona Leontina faleceu aos 90 anos no dia 6 de novembro de 2012. Temos aqui uma linda carta endereçada a ela.

* * *

Às vezes me pego pensando na senhora. Geralmente começo por tentar entender aonde o seu nome foi parar.

Não o Leontina, que ainda está vivo nas memórias que completam hoje um ano de saudade. Mas o Gonçalves e o Coelho, que se perderam de mim bem antes de eu nascer.

 

Leontina
Leontina, anos 40

Sei que netos amam avós incondicionalmente, mas nossa relação sempre foi um pouco diferente disso, né? Não que eu não tenha lhe amado. Só acredito que nossos caminhos se cruzaram quando seguíamos em direções contrárias.

A primeira lembrança que tenho da senhora são dos balões rosas de seu aniversário de 70 anos. Os álbuns nas caixas do fundo do armário indicam que me diverti pulando de colo em colo, mas creio que foi mesmo o rosto austero e enrugado estampado na borracha que marcou aquele menino de quatro anos.

A segunda, alguns anos à frente, foi quase só sorrisos. Em parte por que é isso que a praia desperta em mineiros como nós. Entretanto, são outras as coisas de que me lembro sobre aquele verão em Natal, que hoje serve de morada para suas cinzas.

O maiô roxo e os óculos redondos em degradê escuro não fariam feio nas praias bem frequentadas de hoje em dia, mas a teimosia e a obstinação são os traços que não mais saíram de moda para mim. Subir as areias fofas do Morro do Careca sozinha, sem apoio, era algo difícil até mesmo para filha e nora, décadas mais novas, que lhe acompanhavam. Para você, era uma necessidade.

Acho que só fui entender o porquê de tanta dureza décadas mais tarde, a cada pedaço do quebra-cabeça que montei sobre você enquanto o Alzheimer (ou a demência) decretavam o silêncio naquelas casas pelas quais seguíamos você e Tia Geralda. É óbvio que não consigo imaginar como é servir almoço a peões e lavar roupa para fora ao invés de brincar de boneca. Menos ainda, consigo conceber o que é ser viúva com cinco filhos mais um bebê de dois meses de idade no colo. Mas compreendo que, para sobreviver a isso, confiar o braço ao apoio de alguém nunca foi uma opção. Sinto muito.

Gostaria de te dar um abraço apertado e ouvir sem precisar perguntar sobre algumas coisas que só soube à respeito de você em um livro, Dona Leontina. A lista de indiscrições é grande e sei que não conheço da missa a metade. Respeito se a senhora preferir não falar ao seu neto sobre amores sem casamento, tristezas, mortes, abandono e rancor. Ainda assim, gostaria de entender o que aconteceu com Dias, dos Anjos, Gonçalves e Coelhos antes do meu olhar perguntador de menino criado em apartamento.

Não sei se sabe, mas o único soco que recebi na vida adulta foi seu.

Das tardes de sol em Sete Lagoas às quatro paredes das casa do Dom Cabral, nossa relação estremeceu. Enquanto a senhora lutava contra os prazos que lhe foram dados, meu eu adolescente achava que para ser neto bastava aparecer de ressaca para um almoço de domingo e dar uma passadela no seu quarto. Funcionou bem, até que a pancada seca no rosto – mesmo com seus dez anos de cama – fez seus estragos.

Entendi ali que perpetuar nomes em homenagens aos que se foram pode ser má ideia e que a cicatriz da ausência do Ismael meu tio, que saiu do seu ventre e a senhora enterrou há meio século, nunca se fechou. Daquela tarde de choro conjunto em diante, a senhora talvez se lembre, minhas visitas rarearam. A falta de tempo, a mudança de cidade e a carreira foram ótimas desculpas, mas agora, por escrito, consigo admitir que o medo de sofrer em uma futura despedida foi superior a todas elas.

 

Leontina, 2008
Leontina, 2008

Peço minhas sinceras desculpas por isso e espero, com o coração cheio, que a senhora me perdoe.

Mas não é por isso que lhe escrevo essa carta, e sim para lhe fazer a única pergunta que nenhum livro ou seus filhos, meu pai e meus tios, conseguem responder. Em Natal, eu mal sabia o que era um repente. Mas até hoje conheço o sorriso amarelo que um cantador exibe quando é derrotado nas rimas de um duelo. Na tarde do soco, a senhora contou trechos de uma biografia que nunca escreveu e entoou cantigas de roda, sambas antigos e canções de saudade.

Foi natural para você me legar, ainda que de tabela, uma vida inteira de caráter, força e perseverança. Mas de onde é que se busca tanta força para continuar cantando e vivendo as histórias que você teimava em não contar?

Aguardo a resposta para perder o medo de desafinar ao escrever a minha parte nessa história – com seu sobrenome ou não.

Estou com saudade.

 

Beijos do seu neto.

 

Ismael

 

São Paulo, 6 de novembro de 2013


publicado em 06 de Novembro de 2013, 12:38
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Ismael dos Anjos

Ismael dos Anjos é mineiro, jornalista e fotógrafo. Acredita que uma boa história, não importa o formato escolhido, tem o poder de fomentar diálogos, humanizar, provocar empatia, educar, inspirar e fazer das pessoas protagonistas de suas próprias narrativas. Siga-o no Instagram.


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