Brevíssimo ensaio sobre o fascínio pela violência

"The fury of a demon instantly possessed me.
I knew myself no longer. My original soul seemed,
at once, to take its flight from my body;
and a more than fiendish malevolence,
gin-nurtured, thrilled every fibre of my frame."
— Edgar Allan Poe, The black cat

 

Realmente não foi por R$ 0,20.

Os manifestantes que participaram do ato contra o aumento da tarifa de ônibus e metrô em São Paulo saíram às ruas no dia 17 de junho não apenas — e enfatizo aqui o "não apenas" — para contestar o valor, tampouco para exigir que educação e saúde tenham a mesma atenção (aqui revertida em dinheiro) que a Copa do Mundo ou para pedir a saída deste ou daquele político.

Estas são, decerto, causas nobres que demandam o grito das massas. Mas naquela segunda-feira, outro motivo levou o povo a tomar as principais vias de São Paulo: quatro dias antes, elas viram, ao vivo, pela TV ou internet, um policial atirar arbitrariamente em gente pacífica, desarmadas, que bradavam "sem violência".

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Esta é a minha teoria: o que fez com que a manifestação crescesse de 5 mil para 100 mil pessoas foi a imagem do primeiro policial da Tropa de Choque disparando covardemente balas de borracha.

A violência fascina

Durante a manifestação, helicópteros sobrevoavam o Largo da Batata. Era impossível identificar se eram da imprensa ou da polícia. A dúvida não evitou que um rapaz ao meu lado dissesse, quase para si mesmo,

"Já pensou se eles dão uma saraivada de balas na gente?"

Ele sorria enquanto imaginava como seria.

Quando um motoqueiro é atropelado, forma-se um círculo de gente curiosa ao redor do ferido. Quando há briga no bar, muitos deixam de lado os papos mais amenos para prestar atenção no que se passa. Filmes cheios de tiros fazem a adrenalina subir e é quase impossível piscar. O Datena é um dos líderes de audiência. É comum veteranos de guerra ouvirem perguntas sobre pessoas que eles mataram. Todo cara que já jogou GTA pensou a mesma coisa: "e se eu subir naquele prédio e, do alto, disparar contra os pedestres?".

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A violência causa um fascínio único.

Edgar Morin delineou alguns pontos sobre tal sentimento. Em "O revólver" (capítulo do livro Cultura de massas no século XX — Vol. 1 — Neurose), ele faz a seguinte análise: a violência consumida pelo homem (por meio de filmes, da TV, de videogames etc.) se dá como forma de compensação pela falta de violência vivida pelo próprio homem em seu cotidiano. Há, portanto, a apropriação da violência para que ele possa vivenciar, de maneira segura, a briga, o assassinato, a morte.

(Quando digo "segura", me refiro inclusive ao mimetismo da violência deflagrado, por exemplo, no chamado "efeito Werther". Explico: logo após a publicação de Os sofrimentos do jovem Werther, de Johann Wolfgang von Goethe, em 1774, a Alemanha teve um surto de suicídios. Pesquisadores chegaram à conclusão que o livro havia desinibido tendências suicidas de jovens da época.)

Link Youtube | O Datena não gosta do próprio programa. Já o povo...

Por este motivo, por causa deste fascínio que tem origens ancestrais, é comum encontrar nas brincadeiras infantis os papéis em que um mata e o outro morre. A violência é, por este ponto de vista, um jogo, uma atividade lúdica. Johan Huizinga, no livro Homo ludens, eleva o jogo à abstração máxima. Ele afirma, talvez com certo exagero, que podemos negar a beleza, deus, a justiça e outras abstrações, mas nunca podemos negar o jogo, que é inato ao homem. No caso da violência (que, na obra de Huizinga, está contemplada no capítulo "O jogo e a guerra"),

"os cachorros e os garotinhos lutam 'de brincadeira', com regras que limitam o grau de violência; apesar disso, nem sempre os limites da violência permitida excluem o derramamento de sangue ou mesmo a morte dos combatentes. Os torneios medievais sempre foram considerados um combate simulado, e, portanto, um jogo, mas parece mais ou menos certo que em suas formas mais primitivas as justas se realizavam com uma seriedade mortífera, chegando até à morte de um dos contendores, como o 'jogo' dos jovens guerreiros de Abner e Joab."

Mais do que um jogo qualquer, a violência fascina tanto quanto o sexo — em certo grau, ambos são feitos da mesma matéria: o resíduo de espírito primitivo que desconhece a razão.

No livro Plataforma, o escritor francês Michel Houellebecq evoca tal estado ancestral:

"É impossível fazer amor sem um certo abandono, sem a aceitação, pelo menos temporária, de um certo estado de fraqueza e de dependência."

Em leitura mais aprofundada, pode-se dizer que este abandono não se refere ao homem em si, mas sim ao seu ego, aos limites impostos pela sociedade, ao adestramento do ser ao longo da história humana. A saga do homem neste mundo (saga à qual chamamos de "evolução") demanda a extinção de algumas características, como a brutalidade que encontramos, em maior ou menor grau, tanto no sexo quanto na violência; em oposição a isso, tanto em um quanto em outro há a busca pela catarse, pelo gozo.

Soa algo sádico. De fato, é um exercício de sadismo. Quando admiramos a violência, contemplamos o desregramento perdido em outros tempos e a morte. Não fosse a brutalidade da cena do policial disparando contra o povo, muito deste sentimento que levou 100 mil pessoas às ruas se perderia.

Mecenas: Guerra Mundial Z

Uma epidemia se transforma em ameaça global e põe em perigo toda a população mundial. Para deter a enorme catástrofe, governos e exércitos lutam contra o tempo para evitar o pior. Enquanto isso, Gerry Lane é um investigador aposentado da ONU que tem que ir a campo ajudar nas investigações para manter sua família protegida em um zona de segurança do governo americano.

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Guerra Mundial Z é o novo filme de ação, tensão e adrenalina com Brad Pitt, baseado no livro homônimo e best seller escrito por Max Brooks. 


publicado em 21 de Junho de 2013, 07:50
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Rodolfo Viana

É jornalista. Torce para o Marília Atlético Clube. Gosta quando tira a carta “Conquiste 24 territórios à sua escolha, com pelo menos dois exércitos em cada”. Curte tocar Kenny G fazendo sons com a boca. Já fez brotar um pé de feijão de um pote com algodão. Tem 1,75 de miopia. Bebe para passar o tempo. [Twitter | Facebook]


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