Blues: Otis Spann e o piano que se calou cedo demais

Conheçam o músico considerado o melhor pianista de blues de Chicago depois da Segunda Guerra Mundial

Talvez eu já tenha falado aqui antes, mas demorei certo tempo até começar a ouvir pianistas de blues. Acho que, como a maioria das pessoas que um dia decide prestar atenção ao blues clássico, eu me atraí pela figura do guitarrista solitário que percorre estradas, enfrentando as dores da vida com sua música. É um personagem estereotipado, porém romântico demais para não despertar a atenção.

Com o tempo, isso mudou e comecei a “deixar a guitarra de lado”. Gaitistas normalmente são o segundo passo da jornada, já que existem muitas opções (mesmo se pensarmos somente naqueles que são geniais). Mas minha vida mudou mesmo quando descobri o piano blues.

Um dos motivos que demorei a descobrir isso estava na proximidade com o jazz. Adoro jazz, mas para começar a entender melhor um gênero musical, eu preciso sempre de canções que o mostrem em sua forma pura, ou o que chegue mais perto disso. Talvez seja errado, mas é assim que meu cérebro começa a entender o estilo. E o segundo motivo é que, especialmente no Brasil, é muito difícil encontrar boas coletâneas de pianistas clássicos do blues — diferente do que acontece com os grandes guitarristas.

Mas quando descobri o piano blues, me apaixonei. Hoje, eu consigo ouvir claramente a diferença entre o piano blues e o jazz tocado em piano… E isso não diz respeito a mim, mas sim aos gêneros: o piano blues tem uma identidade própria, que fica muito mais próxima da guitarra de um blueseiro que de um standard do jazz. Mas o piano confere ao blues um refinamento muito grande — o que era de se esperar de um instrumento claramente urbano — mas sem jamais deixar de ser blues. Ele pode ser violento e erótico, pode ser suave e delicado… Mas nunca deixa de ser blues.

Ou, melhor dizendo, ele pode ser violento e erótico, pode ser suave e delicado… Exatamente como o blues.

E, de todos os pianistas que descobri — escrevi sobre um dos meus preferidos, Leroy Carr, aqui — um dos grandes tesouros que encontrei foi Otis Spann. Explicando de forma simples: Spann era o pianista da banda de Muddy Waters, e só isso já basta para atestar seu talento. Waters era um deus do blues que formou uma banda de gênios e mudou a história do blues. Atrás das teclas, estava Spann, reinventando o blues e louco para lançar sua carreira solo (sem necessariamente abandonar o chefe).

Talento para isso ele tinha, e a Chess, gravadora de Waters, sabia disso. Porém, eles não acreditavam muito no talento vocal da pianista e relutavam em dar o sinal verde para suas gravações. Suas sessões em estúdio (feitas em 1956 e 1963) permaneceram sem ver a luz do dia durante décadas. Tudo o que a Chess se arriscou a lançar foi Must Have Been the Devil, gravado em 1954.

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A música não se tornou lendária apenas por ser a primeira gravação solo de Spann, mas também pela presença de um jovem guitarrista, cuja carreira começava a decolar, chamado B. B. King. Mas o mais curioso é sua letra, que aponta o diabo como o causador dos problemas que o músico enfrenta em seu relacionamento. Ou seja, trata-se de uma canção urbana que poderia animar qualquer plateia de Chicago (reza a lenda que a versão original foi gravada após uma noite de esbórnia), mas com um tema que se encaixa muito melhor longe de uma cidade grande.

Isso, claro, se explica pela origem de Spann. Mesmo sendo considerado o maior pianista da Chicago do pós-guerra, ele nasceu no Mississipi em 1921 e aprendeu a tocar piano com seu pai, Friday Ford, pianista que se apresentava na região. Na verdade, toda sua família era musical: sua mãe era guitarrista e havia tocado com Bessie Smith e Memphis Minnie, e mesmo seu padrasto era músico e pregador. Aos sete anos de idade, ele já tocava piano; aos catorze começou a tocar em pequenas bandas locais.

E, em 1946 (ou 1947, não se sabe ao certo), ele chegou a Chicago, sem desconfiar que seu destino seria reinar sobre a meca do blues. Foi apadrinhado por ninguém menos que o pianista Big Maceo Merrieather, seu herói pessoal desde moleque e, em 1952, assumiu a vaga na banda de Muddy Waters, na gravação de Blow Wind Blow. O blues nunca mais seria o mesmo.

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Participou de quase todas as canções lendárias do guitarrista que praticamente reescrevia a história do blues a cada lançamento. Mas também atuava em gravações de outros artistas da Chess, como Chuck Berry, que com seu blues acelerado começava a criar o rock ’n’ roll. Mas o sonho de lançar trabalhos solos não acontecia nunca…

Spann percebeu que isso nunca aconteceria na Chess. Mesmo continuando como artista da casa — e feliz, pois Waters cuidava o melhor possível dos músicos que o acompanhavam — entrou em estúdio ao lado do guitarrista Robert Lockwood Jr (afilhado de ninguém menos que Robert Johnson) e gravaram um disco para a Candid. O nome não poderia ser menos direto: Otis Spann is the Blues, lançado em 1960.

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O disco marca a reunião de dois músicos que compartilhavam muitas semelhanças, como a genialidade e a falta de reconhecimento do grande público. Mas é um primor que mostra o talento da dupla e, como o nome do álbum indica, coloca Spann em primeiro plano. Para todos que acreditavam que ele seria sempre um músico de acompanhamento — e isso inclui o pessoal da Chess — a riqueza de seu piano se sobrepõe completamente sobre a canção, com variações sofisticadas. Diferente do que acontecia na banda de Muddy Waters, agora a guitarra era o instrumento de apoio.

Spann observa o chefe

Mesmo sendo lembrado sempre como o pianista de Muddy Waters, Spann passou a década de 60 criando uma carreira solo brilhante, trabalhando com diversas gravadoras. Decca. Prestige. Vanguard. Blue Horizon. Alguns discos se tornaram clássicos — como The Blues of Otis Spann, a primeira vez que ele assumiu o papel de líder de banda em um projeto (com direito ao chefe Muddy Waters como músico de apoio na guitarra e participações de um jovem guitarrista inglês chamado Eric Clapton).

Eu poderia falar aqui sobre todos os discos solos de Spann; em cada um deles, o material é muito bom. Mas, como eu sempre disse, uma das vantagens de falar sobre os músicos dos anos 50 é que existe — em maior ou menor número, claro, dependendo do caso — material em vídeo. Então eu prefiro deixar que Spann fale por si próprio nesse vídeo de 1966, em que ele canta a fenomenal The Blues don’t Like Nobody — que conta com a presença do gigante (literal e metaforicamente) Willie Dixon no baixo.

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Spann permaneceu como pianista da banda de Muddy Waters até 1968. E, ao deixar o conjunto do chefe, estava pronto para iniciar sua carreira solo de verdade: já era reconhecido como um dos grandes nomes do blues de Chicago e extremamente bem relacionado com todos os músicos ao seu redor. Não sei se o blues não gostava de Otis Spann, como a música diz, mas ele certamente pregou uma peça no pianista, que faleceu pouco depois disso, em 1970, vítima de um câncer.

Assim, o piano mais importante do blues da segunda metade do século se fechou, em Chicago, e nunca mais foi aberto. Mas sua música ainda ecoa no blues atual.

 

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You Can’t Catch Me — Chega a ser difícil imaginar um pianista de blues gravando ao lado de um pilar do rock ’n’ roll, especialmente nos anos 50, quando o gênero engatinhava. Mas Chuck Berry (para mim, o grande inventor do rock) era da Chess. Ou seja…

Spann’s Blues — Este vídeo de 1963 traz um dos maiores sucessos de Spann, que se tornou uma de suas músicas-assinatura. É uma peça brilhante, daquelas que diz que o blues pode fazer chorar, sorrir e principalmente fazer pensar… Mas ele também pode fazer dançar como poucos gêneros musicais.

Paris Blues — Assim como o rock, o blues também tinha seus supergrupos. Ou, ao menos, grandes lendas do gênero que às vezes se juntavam em estúdio, sem se preocupar com qualquer denominação. Foi o que aconteceu em 1969, com Super Black Blues, que reunia Spann, T-Bone Walker, Big Joe Turner, George “Harmonica” Smith e outros. Esta é a música que abre o álbum, um monstro de 14 minutos, sofrido, arrastado e maravilhoso.

Someday Soon Baby — Em 1969, o quinteto de blues Fleetwood Mac entrou na Chess para fazer uma jam com os astros da casa. Spann ficou tão impressionado com a banda (especialmente com o guitarrista Peter Green) que decidiu gravar um disco inteiro com parte do grupo: The Biggest Thing Since the Colossus. Entre clássicos, um dos destaques é essa versão, que começa com uma guitarra lenta de Green (e, quase inaudível, Spann falando para o resto da banda para que “deixem ele tocar à vontade”).

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Obs.: Este texto foi originalmente publicado na série Sábado de Blues, lá no Medium do autor, Rob Gordon, que sai - pasmem - todos os sábados.


publicado em 24 de Novembro de 2016, 00:00
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Rob Gordon

Rob Gordon é publicitário por formação, jornalista por vocação e escritor por teimosia. Criador dos blogs Championship Vinyl e Championship Chronicles.


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