Blues: Os anos dourados de B. B. King

Guitarrista, cantor e compositor, foi o melhor do blues e um dos melhores guitarristas de todos os tempos

De tempos em tempos, eu tenho a sensação que começar a ouvir B. B. King é quase tão “complicado” quanto começar a ouvir blues. Afinal, com uma carreira de mais de sessenta anos, sua história praticamente se confunde com a do blues elétrico.

Essa informação pode parecer exagerada num primeiro momento, mas por motivos puramente cronológicos. Muita gente — eu, por exemplo — começou a ouvir blues quando Howlin’ Wolf, Muddy Waters e outros pioneiros do blues elétricos já estavam mortos. Já B. B. King faleceu apenas este ano. E nunca interrompeu sua carreira: estava sempre presente nos noticiários sobre música, lançando álbuns novos e rodando o mundo em turnês. Assim, não é de se espantar que muita gente o enxergue como uma espécie de “artista contemporâneo”.

Mas, quando se pensa na história do blues, fica claro que estão todos no mesmo bolo. As primeiras gravações de Muddy Waters para a Chess aconteceram em 1946 (quando a empresa ainda se chamava Aristocrat Records), enquanto King entrou em estúdio pela primeira vez três anos depois disso. Ou seja, estamos falando de um artista que surgiu no início da explosão do blues elétrico e que começou a deixar sua marca no mundo ainda na década de cinquenta.

Isso nos leva ao grande problema na hora de conhecer B. B. King mais a fundo: como começar a ouvir um artista cuja carreira tem mais de meio século? Afinal, é inegável que suas canções se modificaram com o tempo. Mesmo nunca ultrapassando a fronteira do blues, suas músicas ganharam arranjos mais modernos, especialmente nas últimas décadas, quando ele percorria o mundo ao lado de uma grande banda de apoio, atuando como uma espécie de embaixador do blues.

Eu gosto desse papel que ele assumiu. Se o blues é uma religião, B. B. King se tornou seu papa. Para o público casual, ele era blues incorporado, e foi decisivo para que muitas pessoas conhecessem o gênero.

Mas nada disso teria acontecido se ele não tivesse se tornado uma lenda, algo que aconteceu justamente na primeira metade de sua carreira. É por isso que sempre que alguém me pede dicas para conhecer B. B. King, eu indico as gravações das duas primeiras décadas de sua carreira, o período que eu enxergo como seu auge criativo. Sim, seu trabalho nunca perdeu qualidade, mas suas canções das décadas de 50 e 60 pavimentaram o caminho para tudo o que ele faria — e seria — futuramente em sua carreira.

Afinal, estamos falando de uma época em que B. B. King não era um ícone mundial, “apenas” um dos melhores guitarristas de blues que já existiu — mesmo que ele assumia enxergar a si mesmo como um cantor de blues, e não como um guitarrista.

É um blueseiro que sempre impôs seu estilo pessoal, muito mais próximo de T-Bone Walker (que foi uma de suas maiores influências) que das canções de seus contemporâneos como Muddy Waters e Howlin’ Wolf, que faziam um som mais cru. Eu coloco as canções de B. B. King entre as mais elegantes que ouvi no blues, e muita gente se surpreende ao descobrir que isso se aplica a toda a sua carreira, e não somente ao que ele lançou nas últimas décadas. Basta escutar Three O’Clock in the Morning, canção gravada em 1952 (a composição original é de 1946) e que fez sua carreira deslanchar, para comprovar isso.

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O tema é clássico do blues. São três da manhã e ele não consegue dormir por que a mulher que ama não está com ele. Assim, na terceira estrofe, ele encontra a solução para escapar da dor: o suicídio, que fica claro no último verso, quando ele pede que seu amor o perdoe por seus pecados.

Se a letra parece violenta demais para aquele simpático velhinho que nos acostumamos a ver sorridente sobre o palco, a guitarra já é totalmente B. B. King. De todos os muitos blueseiros que usaram o instrumento como segunda voz — ele canta e a guitarra responde — ninguém fez isso com essa riqueza e essa economia de notas, em que cada som parece ter uma função dentro da música e do sentimento que ela passa.

É por isso que a importância da guitarra de B. B. King na música mundial vai muito além do folclore dela ter um nome — para quem não sabe: no início da carreira ele estava se apresentando em um bar que acabou pegando fogo devido a uma briga na plateia; o local foi evacuado, mas King voltou para dentro do incêndio para recuperar sua guitarra e só depois descobriu que o motivo da briga era uma garota chamada Lucille, que acabou batizando seu instrumento.

Se B. B. King não foi o inventor daquela guitarra doce e melancólica — algo que hoje é utilizado pela maior parte dos guitarristas do gênero — ele certamente foi quem levou isso para além do blues. Sua marca registrada se tornou também a marca registrada de um estilo, sobretudo por boa parte do que surgiu após sua época. Por isso, chega a ser praticamente impossível medir a influência de B. B. King como guitarrista, já que seu legado parece estar em todo lugar.

E sua guitarra doce e melódica é a alma da música mesmo em suas canções mais aceleradas. Isso se deve a um motivo que também pode surpreender muitas pessoas: King tinha extrema dificuldade em tocar acordes — ele aprendeu as noções básicas do instrumento com o pastor da igreja onde ele cantava no coral quando menino, que o ensinou três acordes básicos. Sem conseguir tocar acordes, sempre que compunha uma música ele improvisava, dedilhando as cordas da guitarra.

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Mas a surpresa causada pelo fato de B. B. King não conseguir tocar acordes é tão impactante quanto o teor de suas músicas nos primeiros anos de sua carreira. Algumas de suas grandes canções caem no velho sexismo do blues, algo impensável quando pensamos em seus últimos anos de vida.

Como eu já disse em outros textos, o blues tem um sexismo muito particular: seja com cantores ou cantoras, o poder absoluto está sempre na mão do sexo oposto, que parece capaz de definir se o narrador da música será feliz ou triste. Isso sempre descamba para canções com teor extremamente violento, com brigas e juras de morte (que muitas vezes são cumpridas).

Gravando nos anos 50 e 60 e completamente influenciado pelo blues do Mississipi onde cresceu, King jamais se manteria afastado desses temas. Um bom exemplo está em Don’t Answer the Door, na qual ele proíbe sua mulher de atender a porta quando ela não está em casa. O sentimento, originário principalmente por ciúme, acaba se transformando em uma demonstração de poder já que ela não pode abrir a porta para ninguém, nem mesmo para a mãe ou a irmã (de quem ele assume não gostar na canção), ou até mesmo para o médico. Talvez seja o maior exemplo de paranoia da história do blues, guiado por uma das guitarras mais lindas que já ouvi.

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“Eu não quero sua irmã aparecendo por aqui Porque aquela garota, ela fala demais. Se ela quiser nos visitar Diga a ela que nos encontre domingo na igreja.(…) Se sua mãe quiser nos visitar Diga a ela que eu chego em casa ao raiar do dia E que esse horário é tarde demais para visitar alguém, Então diga a ela que, por favor, fique longe.”(Don’t Answer the Door)

Na verdade, as mulheres sempre tiveram um papel fundamental na vida de King. Foi casado duas vezes e ambos os casamentos fracassaram devido ao fato de que ele passava mais tempo em turnês que em casa. Evidentemente, não se tratava apenas de sua ausência, já que ele teve nada menos que quinze filhos com mulheres diferentes. Quando li sua autobiografia, fiquei impressionado com a franqueza que ele trata sua verdadeira fixação por mulheres.

Se não existissem mulheres, eu não iria querer estar nesse planeta.Mulheres, amigos e música: sem esses três, eu não iria querer estar aqui.”(B. B. King)

Assim, chega a ser difícil de imaginar que, assim como muitos mestres do blues, ele não colocasse o sexo oposto como um dos temas centrais da sua obra. As mulheres de B. B. King estão presentes em todas as fases de sua vida. Podem gerar alegria em alguns casos (como Sweet Little Angel, que está no final do texto), mas, na maior parte das vezes, causam apenas tristeza ou desespero, como manda a gramática do blues.

Uma delas permanece como a minha música de blues preferida de todos os tempos. Quem me conhece sabe que sou verdadeiramente obcecado por How Blue Can You Get? (quando criei esta coluna, fiquei tentado a batizá-la com esse nome) e que mostra um dos personagens mais maléficos da história do blues. A mulher de B. B. King nesta canção simplesmente acaba com o narrador mesmo que, como é comum no blues, ele tente agradá-la de todas as formas. Abaixo, a versão do magistral Live at Regal.

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O verso “você é má quando está comigo e ciumenta quando estamos separados” é um dos mais brilhantes que já encontrei. Ele diz absolutamente tudo o que você precisa saber sobre a mulher que ele ama, e como ela lida com o relacionamento. Mas King vai além:

“Eu lhe dei um Ford novo em folhaMas você disse “eu quero um cadillac”Eu lhe paguei um jantar de dez dólaresE você disse “obrigada pela petisco”.Eu deixei você viver na minha coberturaE você disse “que era apenas um barraco”Eu lhe dei sete filhos,E agora você quer devolvê-los.”(How Blue Can You Get)

É uma mulher impossível de ser agradada, especialmente porque, cada vez que escuto, me convenço mais que é uma mulher que não quer ser agradada. Na minha cabeça, ela é extremamente mal resolvida e a única coisa que a satisfaz é o poder que exerce sobre o homem. Assim, tudo o que ele pode fazer é perguntar o quão triste você pode ficar, e dizer que “a resposta está aqui no meu coração”, assumindo que ele chegou ao ápice da tristeza.

Não é a primeira vez que um cantor ou cantora sente “o maior blues do mundo” (mesmo porque o blues, como sensação, sempre é insuportável nas letras), mas poucas vezes isso foi colocado de uma forma tão emocionante.

Da mesma forma, poucas vezes o fim de um relacionamento foi colocado de uma forma tão direta no blues quanto em The Thrill is Gone. Como se pode imaginar, o tema é comum ao blues: afinal, nem sempre um relacionamento infeliz termina em morte; muitas vezes, ele caminha para uma separação (que sempre é benéfica para somente um dos envolvidos).

Mas, em The Thrill is Gone, o próprio nome diz algo que costuma ser deixado de lado. Ao abordar o fim do relacionamento com a frase “o arrepio se foi”, a letra deixa claro que um relacionamento que se tornou infernal nasceu como qualquer outro: com amor.

A maior parte das canções de blues que narra o fim de um relacionamento faz isso com alívio ou raiva. King não esconde sua mágoa (“você agiu errado comigo e vai pagar por isso um dia”, deixando a justiça nas mãos do destino), mas se comporta de forma muito mais conformada, repetindo o título da canção — e atestando que o amor acabou — ao longo de toda a música, sempre guiado por uma guitarra espetacular.

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Cronologicamente, esta é a última canção do período que eu considero a fase áurea de B. B. King. Foi composta em 1951, mas a versão de King foi gravada somente em 1969 — ou seja, vinte anos após o início de sua carreira em estúdio — se tornou uma de suas músicas assinaturas e lhe rendeu o primeiro Grammy da carreira, em 1970.

Foi o primeiro de muitos prêmios que recebeu — nada mal para o garoto que cresceu em uma fazenda e sentiu-se orgulhoso quando foi incumbido de dirigir o trator, algo que era símbolo de status entre os empregados. Daí em diante, sua carreira seria marcada por um sucesso contínuo, que o colocaria como um dos maiores e mais famosos artistas do século 20.

Chega a ser impossível não pensar em B. B. King quando se pensa em blues. E se isso se deve ao sucesso que ele conquistou nas últimas décadas, este sucesso, por sua vez, não teria acontecido sem o seu trabalho impressionante e genial nas décadas de 50 e 60, quando ele e sua Lucille mudaram a história do blues. São canções que entraram para a história e inspiraram incontáveis artistas de diversas gerações.

A partir dos anos 70, King gravou canções magistrais — e mais um punhado de clássicos — e fez apresentações históricas, como na Cadeia de Cook County, em 1971 e no Concerto de Natal do Vaticano, em 1997. Mergulhou em parcerias com nomes como Eric Clapton e até mesmo U2. Listar tudo de notável que ele fez resultaria num texto maior que esse, já que ele manteve uma regularidade impressionante, especialmente quando pensamos em uma carreira tão longa.

Mas está ali, nos primeiros vinte anos de seu trabalho, toda a base disso. Antes de ser o “King of the Blues”, B. B. King era, como eu disse, um blueseiro, que parece ter entendido toda a complexidade desse gênero musical da forma mais brilhante possível.

Ou, como ele mesmo resume em sua autobiografia: “o blues é uma música simples, como eu sou um homem simples”.


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Miss Martha King — A primeira gravação de B. B. King, tendo como tema sua primeira esposa. Aconteceu em 1949, antes que ele lançasse discos pela RPM Records, numa pequena sessão feita para a Bullet Records que, apesar de ter lançado músicas de sucesso nos anos 40, fecharia as portas em 1952.

Sweet Sixteen — Ah, as ninfetas do blues. Todo blueseiro, mais cedo ou mais tarde, escreve sobre elas e como é difícil se relacionar com elas. Aqui, King narra exatamente isso, dizendo o quanto é apaixonado pela menina e como ela não faz nada do que ele diz ou pede. Mas ela se torna especialmente interessante por resgatar a questão do blueseiro como cronista. No início do século, o blues era uma música que também falava de amor, pois narrava normalmente as dificuldades de situações cotidianas de qualquer tipo. Entretanto, isso se perde um pouco com o blues elétrico, quando as canções parecem falar mais sobre amor. Mas aqui King recupera um pouco disso ao contar que “meu irmão está na Coréia”, em um dos versos. O vídeo linkado aqui está com o som baixo, mas tem uma entrevista fantástica com King, contando sobre como foi vaiado num show por uma plateia que não o conhecia direito (“quando você falava em blues, era como ser negro duas vezes”) mas terminou a apresentação dessa canção sendo aplaudido — a entrevista corta para ele entrando no palco num show recente e sendo aplaudido de pé. É arrepiante.

Paying the Cost to be the Boss — Outra canção deliciosa, mas com uma letra extremamente sexista, na qual ele determina para a mulher que o poder da casa — e do relacionamento, a bem da verdade — está nas mãos deles pelo fato de que é ele que coloca o dinheiro dentro de casa. Ou seja, com seu trabalho, “ele está arcando com o custo de ser o chefe”.

Help the Poor — Uma canção magnífica, na qual B. B. King pede à garota para que ele “ajude os pobres” — sendo que o pobre em questão é ele, que precisa desesperadamente de amor. “Você é minha inspiração e pode fazer de mim um rei, mas se não vier me resgatar eu não serei nada” é um verso nada menos que brilhante — e parece resumir o poder absoluto que o sexo oposto possui no blues.

Sweet Little Angel — Um dos maiores hinos do blues, regravado por diversos músicos (a versão de Buddy Guy é especialmente emocionante). Ela é derivada, na verdade, de uma canção dos anos 30 chamada de Black Angel Blues ou Sweet Black Angel — King aboliu a palavra “black” do título porque, em suas próprias palavras, “ela não era exatamente popular na época”. Trata-se, provavelmente, da mulher mais generosa do blues: quando B. B. King pede um níquel, ela lhe entrega uma nota de vinte dólares — o blues tem uma obsessão com a nota de vinte dólares, dinheiro suficiente para comprar tudo o que blueseiro precisa: um jantar, uma bebida e um par de sapatos novos.

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Obs.: Este texto foi originalmente publicado na série Sábado de Blues, lá no Medium do autor, Rob Gordon, que sai - pasmem - todos os sábados.


publicado em 01 de Setembro de 2016, 00:00
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Rob Gordon

Rob Gordon é publicitário por formação, jornalista por vocação e escritor por teimosia. Criador dos blogs Championship Vinyl e Championship Chronicles.


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