Blues: O Reinado de Elmore James

Conheça o influente guitarrista, cantor e compositor americano de blues, conhecido como "O Rei da Guitarra Slide"

Quem poderia imaginar que o filho de Leola Brooks se tornaria um rei?

Elmore nasceu quando sua mãe, trabalhadora de uma fazenda, tinha apenas quinze anos. Sequer conheceu o pai, muito menos soube quem ele era — algo bastante comum à época. Vivendo em condições precárias, provavelmente passaria a vida inteira na região, lutando para escapar da pobreza.

Afinal, estávamos no início dos anos 20, e não havia muitas alternativas para um garoto negro. Trabalhar em plantações, viver de bicos ou até mesmo enveredar para o crime pareciam ser os únicos caminhos possíveis naquela realidade. Mesmo o casamento de sua mãe com John Williams “Frost” James, que trouxe um pouco de estabilidade para o lar (além de um sobrenome para o garoto), não mudou essa perspectiva.

Mas a história de Elmore se passa no Mississipi.

E, no Mississipi, existia o blues.

Encantado com os blueseiros que passavam perto de sua casa, o garoto logo desenvolveu gosto pela música. Mais que isso, mostrou-se um prodígio. Com doze anos de idade começou a fazer música usando um instrumento caseiro feito por uma corda presa em um cabo de vassoura enfiado num balde. Dois anos depois, já se apresentava na região, tocando em festas aos finais de semana.

Provavelmente Elmore sabia que tinha talento. Na verdade, ele talvez até mesmo acreditasse que ganharia uns trocados com sua música. Mas ele certamente nem desconfiava de que um dia ele seria apontado como um dos músicos mais influentes da história do blues — além de criar um riff de guitarra que se tornaria clássico.

Sim, muitos blueseiros possuíam “músicas-assinaturas”. Elmore James, porém, possuía um “riff-assinatura”.

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Sempre que você ouvir uma música que começa com esse riff, as chances de seu autor ser Elmore James — ou pelo menos algum músico diretamente influenciado por ele — são muito grandes. Entretanto, sua contribuição para o blues vai muito além de um riff. Afinal, estamos falando de um sujeito apontado como o rei da guitarra slide.

Antes de continuarmos, vamos falar rapidamente sobre isso. Você já viu algum músico tocando guitarra ou violão com um pequeno tubo de metal entre os dedos? Isso é o que se chama de guitarra slide (o original é slide guitar, e realmente não sei se existe outro nome no Brasil, além da tradução literal).

Essa técnica, inventada no Havaí, passou a ser usada em vários gêneros, como o country e o blues, e permite ao músico alterar o tom das notas deslizando o tubo pelas cordas — antigamente, essa prática se chamava bottleneck guitar, já que, como o nome indica, era usado um gargalo de garrafa para conseguir o efeito desejado. O vídeo abaixo, apesar de mais indicado para músicos por analisar diversos tipos de slides, serve para mostrar a diferença de som entre uma guitarra normal e uma guitarra slide.

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Elmore James não foi o inventor dessa técnica. Longe disso. Também não foi o músico mais habilidoso a tocar guitarra slide. Mas o sentimento (e, por que não, a vida?) que ele colocava em suas canções fez com que seu som se tornasse uma espécie de modelo a ser seguido por todos os blueseiros dali em diante.

Entretanto, se sua contribuição vai além de um riff, ela também ultrapassa o tubo de metal nos dedos.

Mas, para isso entender melhor isso, precisamos voltar um pouco para o jovem que começou a se apresentar no Mississipi.

Ainda adolescente, Elmore James começou a fazer certo sucesso, se apresentando com pseudônimos como Joe’ William James ou Cleanhand. Logo, os “nomes artísticos” ficaram para trás e, no início dos anos 30, já tinha sua própria banda e se apresentava ao lado de grandes lendas do blues. Nesta década, tocando ao lado de nomes como Sonny Boy WilliamsonRobert Johnson e Howlin’ Wolf, ele firmou sua carreira e…

E nada.

Pois logo veio a II Guerra Mundial e James foi enviado para a Indonésia — Wolf também serviu na guerra, sendo dispensado após sofrer um colapso nervoso. Ao voltar para os Estados Unidos, encontrou um mundo diferente e, mesmo nunca parando de tocar (novamente com relativo sucesso), começou a trabalhar com seu irmão adotivo em uma loja que consertava rádios.

E foi nessa pequena oficina que ele mudou a história do blues. Experimentando com apetrechos da loja e acessórios de sua guitarra, James “envenenou” o instrumento e começou a produzir um som completamente diferente do que conhecia. Começou a tocar dessa forma testando cada vez mais as possibilidades de seu “invento”, ao mesmo tempo em que já entrava em estúdio, porém apenas como músico de apoio do gaitista Sonny Boy Williamson II.

Aqui entra uma história curiosa: apesar de frequentar o estúdio, James sentia-se inseguro para gravar suas próprias músicas, achando que elas jamais despertariam o interesse das gravadoras. Em 1951, ao final de uma sessão com o Sonny Boy, ele tocou uma canção de seu repertório — usando a distorção — e foi gravado, sem saber (a equipe disse a ele que era apenas um ensaio). Reza a lenda que ele nem quis ouvir o resultado final, indo direto para casa. No ano seguinte, Dust my Broom não apenas marcaria sua estreia em disco no papel de líder de uma banda (apesar do nome Elmo James na capa do compacto), como faria enorme sucesso e se tornaria definitivamente uma das maiores músicas de blues de todos os tempos.

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Caso você conheça blues (ou acompanhe essa coluna), certamente a música lhe soou familiar. Afinal, num primeiro momento, trata-se de uma releitura de I Believe I’ll Dust my Broom, de Robert Johnson — o riff que se tornou a marca de Elmore James, então, seria uma versão acelerada e distorcida do usado por Johnson mais de uma década antes.

Mas aí nós chegamos a um ponto importante. Até hoje, não se sabe se o autor da canção é Robert Johnson ou Elmore James. Sim, a fama pesa a favor de Johnson — bem como o fato de sua gravação ser de 1936. Porém, dois fatores precisam ser levados em conta: Johnson e James se conheciam e haviam tocado juntos durante a década de 30. E, ainda mais importante: Johnson, como qualquer blueseiro, não via o menor problema em pegar a canção de outro músico e, fazendo pequenas modificações, transformar em sua.

Eu, pessoalmente, adoro a versão de Johnson — entre todas suas canções gravadas, é uma das minhas preferidas. Mas é inegável que a versão de James se tornou a definitiva na longa história da canção, que traz uma letra que continua intrigando pesquisadores… Mas, para isso, é preciso voltar à versão de Johnson que, independente de ser o autor da música (existem também registros de músicas semelhantes antes de sua gravação), foi o primeiro a gravá-la.

Afinal, após a gravação de Johnson, diversas outras versões foram gravadas, normalmente com uma ou outra mudança na letra. A própria versão de Elmore James, por exemplo, incorpora alguns versos de uma gravada por Arthur Crudup em 1949 (ouça aqui e veja, a partir dos 00:40, como o som “original” mudou graças à guitarra distorcida de James), e claramente gira em torno de um homem abandonando sua mulher — apesar do verso final, justamente aquele que foi “roubado” da versão de Crudup, contraria tudo o que foi dito antes.

Mas a grande questão que assola fãs e pesquisadores na versão de Robert Johnson está no termo “dust my broom” e seu significado. Essa expressão viria do fato de que “dust” seria um termo muito usado durante o século 18, e que significava “ir embora rapidamente” (depois, se tornou “get up and dust”). Há quem diga que sua origem é bíblica: no evangelho de Mateus, existe uma passagem que Jesus diz que “se alguém não os receber nem ouvir suas palavras, sacudam a poeira [dust] dos pés quando saírem daquela casa ou cidade”.

Mesmo com essa explicação aparentemente simples, a versão de Johnson, como tudo que envolve seu nome, é carregada de mistério. Mais de um pesquisador tenta conferir à letra um caráter de magia negra, com teorias que vão desde o famoso “deixar a vassoura atrás da porta” (por causa do “broom”) que espantaria um visitante indesejado, até ao preparo de um encantamento para matar o amante da mulher — diversos feitiços de vodu usavam algum tipo de pó [dust]. Segundo eles, Johnson afirmar que “o negro que você ama pode ficar com meu quarto” provaria apenas que ele está apenas montando uma armadilha para o sujeito.

Elmore James, Sonny Boy Williamson II, Tommy McClennan, Litlle Walter

Por outro lado, o fato dele dizer que “o negro que você ama pode ficar com meu quarto” também completa a simples ideia de “estou indo embora”. Ao invés de um encantamento de vingança, seria apenas uma declaração de “foda-se” para o relacionamento. É uma interpretação que funciona.

Apenas como curiosidade: a versão de Johnson ainda traz, no final, referências geográficas impensáveis para alguém que mal colocou os pés fora do Mississipi, mas já se foi provado que os versos foram tirados de fatos da época, como a invasão japonesa na Manchúria, a segunda guerra entre Itália e Etiópia e a formação da Commonwealth das Filipinas.

Para mim, a interpretação correta da música é a mais direta: o sujeito está indo embora e pronto — algo que seria confirmado de forma explícita por todas as versões pós-Johnson.

Mas, se a letra de Johnson desperta mais interesse, a versão de James tornou-se a definitiva e serve como base para todas as (muitas) regravações que viriam dali em diante, tamanho o impacto musical que causou à época. A primeira gravação “solo” de James se tornou um marco do blues e apresentou ao mundo, em 1951, um som distorcido que só conseguiria ser reproduzido de verdade com o rock do (final) dos anos 60 e que o consagrou como herói do blues.

Apesar de ter uma carreira longa, iniciada nos anos 30, Elmore James experimentou o sucesso de verdade somente por pouco tempo, desde as suas primeiras gravações em 1951 até a morte, de ataque cardíaco, pouco antes de embarcar para uma turnê na Europa em 1963. Nesses pouco mais de dez anos, ele deixou um legado quase incalculável, expandindo cada vez mais a guitarra do blues.

E também encontrou tempo para criar uma das minhas músicas preferidas em toda a história do blues: The Sky is Crying — falei bastante dela no texto sobre George Thorogood, mas não adianta: a versão de James continua imbatível.

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Gravada ao lado de sua famosa banda, os Broomdusters (numa clara referência a Dust my Broom), é uma canção arrastada e dolorida que não apenas retrata a chuva com uma metáfora brilhante (“o céu está chorando, olhe as lágrimas rolando rua abaixo”), mas também a usa como retrato do sentimento do cantor. Ele está observando a chuva, se perguntando onde a mulher que ama andará — e termina de forma pessimista alegando que “tenho um mau pressentimento, acho que ela não me ama mais”, mas sem concluir a história, deixando um final aberto e amargo.

Para mim, essa música define a solidão que envolve o blues. O cantor não está apenas perdendo (ou imaginando perder) apenas a mulher que ama, mas sim a única pessoa que o faz se sentir bem de alguma forma — isso fica claro na segunda estrofe, quando ele diz que viu a mulher na rua e se sentiu tão bem que seu coração pulou uma batida. Ou seja, sabemos toda a história do relacionamento e o que irá acontecer com ele, enquanto observamos a chuva junto com Elmore James. É daquelas canções para se ouvir de joelhos.

Provavelmente, se Elmore James tivesse vivido mais, sua influência seria ainda maior. E o número de clássicos que ele gravou e compôs também. Em pouco mais de uma década, ele mudou o som do blues, sem jamais abandonar a alma do Mississipi. É uma pena que seu nome, hoje, esteja tão distante do público casual, já que ele é venerado como merecia somente pelos fãs do gênero.

Seu reinado foi curto. Mas ninguém pode negar que o filho de Leola se tornou um rei.


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Bleeding Heart — Mais uma vez, a solidão de Elmore James se torna mais dolorida que simplesmente melancólica. Uma série de fatores — ser mal compreendido e uma mulher má — fizeram com que ele terminasse completamente sozinho, sem receber uma carta ou ligação.

Shake your Money Maker — Mais um standard do blues. É um blues acelerado, com um pé e meio no rock, e completamente dançante, com uma letra que se apoia completamente em uma metáfora das mais safadas: “balance seu ‘fazedor’ de dinheiro” seria nada menos que “rebole”.

Look on Yonder Wall — O lado B de Shake your Moneymaker é uma das poucas canções de Elmore James (é, na verdade, uma composição de 1945, do pianista James “Beale Street” Clark) a ter a presença da gaita — ele normalmente usava saxofone — e guitarra sem distorção. Uma curiosidade: o gaitista é Sam Myers que começou a carreira na banda do próprio James… Mas tocando bateria.

Stranger Blues — Se a solidão é um tema comum na obra de Elmore James, ela é retratada de diversas formas. Aqui é uma das mais incomuns, numa letra que mostra como ele sente sozinho ao morar numa cidade onde não conhece ninguém. Assim, ele fala sobre a vontade de voltar para casa, no Sul… E quando o trem sofre uma pane, ele encerra a canção fazendo o resto do caminho a pé.

Done Somebody Wrong — O primeiro verso é quase uma crônica completa: “o sino tocou, minha garota pegou o trem e partiu”. A partir daí, James começa a lamentar sobre o fato de que ele sempre estraga tudo e prejudica as pessoas, mas sem saber ao certo como faz isso. É um dos poucos casos no blues em que o relacionamento termina por um erro do próprio cantor que, mesmo sem ser explicado, é assumido.

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Obs.: Este texto foi originalmente publicado na série Sábado de Blues, lá no Medium do autor, Rob Gordon, que sai - pasmem - todos os sábados.


publicado em 15 de Setembro de 2016, 00:00
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Rob Gordon

Rob Gordon é publicitário por formação, jornalista por vocação e escritor por teimosia. Criador dos blogs Championship Vinyl e Championship Chronicles.


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