Blues: Mas, afinal, quem é o primeiro Sonny Boy Williamson?

A história do homem que praticamente inventou a gaita no blues — e teve seu nome roubado e transformado em “marca”.

Vamos ser sinceros? É impossível falar sobre (ou ouvir) blues durante muito tempo sem cair numa gaita. Afinal, mesmo sendo usado em diversos gêneros musicais, o instrumento acabou se tornando a cara do blues.

Isso não é coincidência ou acidente. Na verdade, é algo que está ligado a motivos muito mais econômicos e práticos que artísticos. Pense num blueseiro do início do século 20: um sujeito sem muito dinheiro e andando a pé de uma cidade para outra. Primeiro, a gaita é infinitamente mais barata que um violão. Segundo? Ela cabe no bolso.

Seja por preço ou por praticidade, o fato é que foi no blues que a gaita passou a ser um instrumento principal na música, ao invés de apenas “dar apoio” para o resto da banda. E muito disso se deve a Sonny Boy Williamson.

Ou, melhor dizendo, ao primeiro Sonny Boy Williamson.

Sim, existem dois Sonny Boy Williamson, e isso causa uma enorme confusão em quem está dando os primeiros passos no blues — especialmente porque o segundo Sonny Boy Williamson é mais velho que o primeiro. Mas calma que eu explico.

Nascido em 1914, John Lee Curtis Williamson é, provavelmente, o maior gaitista da primeira metade do século e fez muito sucesso em Chicago com o nome Sonny Boy Williamson. Já Alex (pronuncia-se “Aleck”) Miller, nascido em 1912, era um gaitista famoso no Mississippi e Arkansas, que se apresentava com diversos nomes artísticos (“Rice” Miller era o mais famoso deles), chegando a tocar até mesmo com Robert Johnson.

No início dos anos 40, Miller e outro blueseiro, Robert Lockwood (que, por sua vez, era enteado de Robert Johnson) passaram a apresentar o programa de rádio King Biscuit Time, patrocinado pela marca de farinha King Biscuit. Logo, se tornaram astros regionais tocando clássicos do blues ao vivo no estúdio da rádio.

E foi nesse momento que, para capitalizar sua fama, Miller passou a ser conhecido como Sonny Boy Williamson — que já fazia sucesso. Até hoje não se sabe se a ideia de se apropriar do nome foi do patrocinador do programa ou do próprio Miller, mas o ponto é que o gaitista comprou a ideia. Passou a usar apenas esse nome e até mesmo dizia que havia sido o primeiro a se apresentar com o nome de Sonny Boy Williamson — ele até mesmo dizia que havia nascido em 1899 para provar isso.

Enfim… Hoje, estudiosos e biógrafos decidiram que John Lee Curtis é Sonny Boy Williamson, ou Sonny Boy Williamson I ou até mesmo The Original Sonny Boy. Já Alex Miller passou a ser conhecido apenas como Sonny Boy Williamson II (existe um Sonny Boy Williamson III, mas este sim é uma pequena nota de rodapé na história).

Sonny Boy Williamson II é um pilantra? Talvez, mas a história não se lembra dele assim, e sim como um gênio. Na verdade, os dois Sonny Boy são considerados monstros do blues. Mas a questão é que, por mais óbvio que isso pareça, não existiria Sonny Boy Williamson II sem o Sonny Boy Williamson original. E o motivo disso vai muito além da escolha do nome.

Sonny Boy Williamson (e a partir de agora vamos falar somente do primeiro) praticamente inventou a gaita no blues. Sim, existiram muitos antes dele, mas foi ele quem escreveu a gramática da coisa, colocando a gaita em primeiro plano e inaugurando um estilo de tocar que coloca o instrumento como um segundo vocalista (da mesma forma que Robert Johnson e BB King faziam, respectivamente, com o violão e a guitarra).

Abaixo, em Good Morning, School Girl (às vezes chamada de Good Morning Little Schoolgirl), em que o cantor até mesmo sugere se disfarçar de “school boy” para que a garota, uma estudante, o apresente a seus pais, a gaita já é completamente predominante, abrindo a música de forma deliciosa e funcionando, dali em diante, quase como uma pontuação na música.

Ok, antes de irmos para a música, vamos explicar o esquema da pontuação. O blues clássico tem uma estrutura que funciona basicamente com estrofes de três versos, que, normalmente, obedecem a uma ordem específica: “pergunta — repete a pergunta — resposta”. Se você prestar atenção, verá que boa parte das músicas de blues anteriores aos anos 50 (ou seja, aquilo que se chama pre-war blues), segue essa fórmula.

Como os blueseiros tocavam muito ao vivo, essa estrutura na música servia para chamar a atenção da plateia. Na primeira pergunta, o público percebe que o blueseiro está falando; assim, ele repete a pergunta para que o público, agora escutando com atenção, preste atenção no que ele diz; e, finalmente, com a plateia atenta, ele entrega a resposta, que é o verso mais importante da estrofe.

Sonny Boy faz algo parecido com a gaita. Deixe de lado por um tempo a abertura com o instrumento e preste atenção na parte cantada. Ele pergunta, repete a pergunta, insere a gaita e só então responde, para aí colocar a gaita de novo. Ou seja, a gaita, antes da resposta, funciona quase como um “agora eu vou dizer o que é importante”. Aí ele dá a resposta e usa a gaita novamente, para indicar que a estrofe acabou. Dá uma olhada:

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Essa foi sua primeira gravação e já fez um sucesso absurdo. Virou standard do blues, foi regravada por muita gente através das décadas. Talvez seja a música mais famosa de Sonny Boy, mas é pouco quando se pensa em seu talento.

Basta ouvir Sugar Mama Blues para perceber isso. A música, lenta e arrastada, ganha ainda mais corpo com a gaita. O instrumento parece solto na música, entrando entre estrofes ou no meio de versos e sempre de uma forma diferente (mas sempre acompanhando o ritmo), potencializando o sentimento do cantor. Ela assume a “segunda voz” e exprime a melancolia do blueseiro, sem “dizer” uma sílaba, mas com uma riqueza que é impressionante — Sonny Boy usava a língua, os lábios e até mesmo sua respiração para expandir o som da gaita.

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Agora, se a gaita é normalmente associada com músicas mais lentas e tristes, por causa de seu som doce e melancólico, Sonny Boy mostrava o mesmo talento em músicas mais animadas, normalmente feitas para agitar a plateia.

Shake the Boogie é um bom exemplo: acompanhado de piano, baixo e guitarra (que aparece praticamente apena no solo), ele mostra um fôlego impressionante cantando e tocando quase ao mesmo tempo. E quando você pensa que é a mesma pessoa fazendo isso, fica difícil até pensar em como esse sujeito encontrava tempo para respirar. (Dica: depois dos 2:25, a gaita começa um último solo para fechar a música que eu acho enlouquecedor).

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E, para encerrar, uma última música que gosto muito e que deixa claro o quanto a gaita se tornou importante com Sonny Boy Williamson. Em Sloppy Drunk, ela é assumidamente o primeiro instrumento da música durante toda a canção. O piano faz a base, o baixo está ali… Mas é a gaita que surge, guiando a música do início ao fim junto com as palavras (inclusive com um solo de quase trinta segundos) que faz você simplesmente não perceber que a canção sequer tem guitarra, algo que seria impensável hoje.

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Agora, uma coisa que, para mim, deixa claro o talento de Sonny Boy Williamson é que talvez você tenha chegado até aqui — ouvindo as músicas, claro — sem sequer perceber que ele tinha um problema de dicção, conhecido como “slow tongue” (não sei como seria o nome em português).

A maior parte das pessoas que possui esse problema tem muito mais facilidade em pronunciar as vogais que as consoantes, fazendo com que algumas letras (ou fonemas) desapareceram completamente — e Sonny Boy simplesmente incorporou isso ao seu modo de cantar, então não é algo fácil de identificar. Mas se você ouvir novamente Good Morning School Girl, por exemplo, verá que tem algo de errado no jeito que ele canta algumas palavras.

Sua influência no blues é tão grande que existem até mesmo blueseiros que imitaram seu jeito “errado” de cantar. Mas sua grande influência, mesmo, está na gaita. Gravando nos últimos anos antes da popularização do blues elétrico, Sonny Boy Williamson é praticamente um dos pais do blues de Chicago, que consagraria nomes como Muddy Waters (que regravou Good Morning School Girl), Howlin’ Wolf e aquele que seria considerado o maior gaitista da história, Little Walter.


“Deus, tenha piedade”.

Essas foram as últimas palavras de Sonny Boy Williamson. No primeiro dia de junho de 1948, ele estava voltando para casa de um bar chamado The Plantation Club após um show, quando foi assaltado. Espancado e agredido com um furador de gelo, o homem que praticamente inventou a gaita no blues morreu largado em uma calçada de Chicago, com 34 anos de idade.

O bar ficava a menos de dois quarteirões da sua casa.

Clique e Ouça: Músicas Para Conhecer

Better Cut that Out — Uma delícia de música, foi lançada postumamente e se tornou um enorme — e já mostra um namoro assumido com o rock, não apenas no ritmo, mas no jeito que o Sonny Boy Williamson entrega a letra da música. O solo que começa aos 1:53 tem um trecho impressionante, com uma nota única que dura seis segundos. Pouco? Pensando em gaita (e em fôlego), parece uma eternidade.

Blue Bird Blues — A saudade de casa — e do amor — sempre cria obras bastante melancólicas no blues. Aqui, a gaita deixa tudo mais doce, suave… E dolorido. A última frase, que deixa claro que o alvo de sua saudade pode estar “na casa do vizinho ao lado” é o ápice da tristeza.

T.B. Blues — O blues sempre funciona como um retrato realista da sociedade em que ele está inserido. E é por isso que o gênero tem uma fixação com alguns temas e, entre eles, está a tuberculose, descrita, na grande maioria das vezes apenas como “T.B.”. Numa letra mais complexa (sem as repetições de versos que eu citei acima), o cantor fala sobre a decadência que enfrenta por causa da doença e prepara-se para morrer.

Stop Breaking Down — Sonny Boy tocou com diversos grandes nomes do blues de sua época. Aqui, nesta versão da música de Robert Johnson, o vídeo no Youtube está creditado como Williamson, Big Bill Broonzy e Blind John Davis, mas o correto é Tampa Red (guitarrista) e Big Maceo (pianista), como alguém fala nos comentários. Mas ignore a polêmica e vá direto para a música, que é uma delícia.

Shake the Boogie — Assim como Better Cut That Out, é bem próxima do rock. Foi um sucesso nacional e ainda estava tocando nas rádios e vendendo muito quando Sonny Boy foi morto.

* * *

Obs.: Este texto foi originalmente publicado na série Sábado de Blues, lá no Medium do autor, Rob Gordon, que sai - pasmem - todos os sábados.


publicado em 02 de Junho de 2016, 00:00
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Rob Gordon

Rob Gordon é publicitário por formação, jornalista por vocação e escritor por teimosia. Criador dos blogs Championship Vinyl e Championship Chronicles.


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