Blues: “Ma” Rainey: paixão, fúria e a mãe do Blues

Conheça uma das mais antigas cantoras profissionais de Blues, uma das primeiras da sua geração a gravar a música que cantava

Há quem diga que o blues é um estilo musical predominante masculino. Talvez isso não seja completamente errado quando olhamos, hoje, para a história do gênero ao longo do século 20, já que maior parte dos grandes nomes do gênero realmente são homens… Mas nem sempre foi assim.

Nos anos 20, os grandes nomes do blues eram as mulheres. Cantoras percorriam o país ao lado de suas bandas, alternando apresentações extremamente concorridas com gravações de clássicos que mudariam a história da música. Era uma época sem muitas regras — mesmo musicalmente falando, já que a fronteira entre o blues e o jazz ainda não eram completamente visíveis — porém repleta de excessos.

Quando se pensa em mulheres do blues desta época, o primeiro nome que normalmente vem à cabeça é Bessie Smith — eu mesmo tenho a Imperatriz do Blues como a minha preferida (você pode ler meu texto sobre ela aqui). Mas existiam outras, não tão conhecidas do grande público hoje, caso de Mamie Smith, a primeira mulher negra a gravar um disco. Porém há quem diga que nenhuma foi maior que “Ma” Rainey. E seu “apelido” já parece deixar isso claro: a Mãe do Blues.

Certo, “Ma” Rainey não inventou o blues feminino, muito menos o blues como um todo. Aliás, como qualquer artista de sua época, seu repertório ia além do blues, contando também com músicas pop e canções religiosas — nos palcos, a regra nunca foi criar um gênero musical, e sim apenas agradar às plateias e encher o bolso de dinheiro. Porém, somente o fato de que ela foi a primeira artista de sucesso dessa época a encaixar músicas de blues em seus espetáculos seria suficiente para atestar sua importância.

Mas mesmo isso ainda é muito pouco se comparado às canções em si, caso da magistral See See Rider.

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A música, gravada em 1924, tornou-se um dos pilares da história do blues. Tornou-se quase a canção assinatura de Rainey e é um excelente cartão de visitas para seu universo…. Ou, pelo menos, o melhor cartão de visitas que podemos ter hoje, já que a maior parte dos pesquisadores concorda que as gravações em estúdio não conseguiam captar a força e a profundidade da sua voz (ela tinha um contrato de exclusividade com a Paramount, cujos discos não primavam pelo aspecto técnico).

Mesmo assim, quando se percebe a facilidade com que ela consegue dar sentido e identidade diferentes a cada verso, fica evidente que estamos falando de uma cantora com um talento descomunal. Eu sempre achei fascinante, desde a primeira vez que ouvi essa canção, o trecho que ela entoa o título da música (que no vídeo acima acontece logo depois dos 00:55).

Fica claro desde o começo da música que ela canta de forma crescente, preparando para soltar a voz de verdade nesse momento… Mas, ao invés de fazer apenas isso, ela pinta as palavras com uma dor que ainda não havia mostrado. É como se até então ela estivesse contando uma história, mas, nesse trecho da canção, ela mostra que viveu essa história.

“As pessoas brancas escutam o blues saindo [nas canções], mas não sabem como ele chegou ali. Eles não entendem que essa é a maneira da vida se expressar. Você não canta para se sentir melhor, você canta porque é um modo de entender a vida”(Gertrude “Ma” Rainey)

Além disso, vale citar duas curiosidades sobre essa canção: a primeira delas diz respeito ao fato de Rainey nunca ter escondido o fato de ser bissexual. Aliás, acho que já contei essa história nessa coluna, mas como ela é interessante demais, vale um pequeno repeteco. See See Rider é um termo derivado de easy rider, gíria da época para “amante infiel”. Ou seja, teoricamente, Rainey estava falando sobre algum homem que a traía… Ou não.

Existe uma teoria de que a cantora estaria falando na verdade, sobre uma prostituta por quem teria se apaixonado e o verso “você fez eu te amar, e agora seu homem chegou”, sendo que o homem seria o cafetão da garota. Até hoje não se sabe ao certo qual das versões seria a real… E isso apenas aumenta o valor de See See Rider, que foi interpretada por Deus e o mundo (inclusive fora das fronteiras do blues, por artistas como Elvis Presley, The Animals e The Who).

Se essa curiosidade diz muito sobre Ma Rainey, a outra diz ainda mais sobre o blues dos anos 20, já que quem participa da gravação é um trompetista de vinte e poucos anos, chamado Louis Armstrong, que depois faria “relativo” sucesso. A afinidade nasceu de forma geográfica: Rainey conheceu Armstrong e outros nomes do jazz de Nova Orleans (como Joe “King” Oliver, Sidney Bechet e Pops Foster) quando passou uma temporada na cidade.

Mas a maior parte dos seus maiores clássicos, mesmo com pitadas de jazz aqui e ali, são pilares da história do blues — até mesmo em seus temas. É o caso de Bo-weevil Blues. A primeira vez que me deparei com a canção, achei que sua letra fosse relacionada à magia negra, vodu ou qualquer outro tipo de bruxaria que o blues sempre festejou. Eu não podia estar mais enganado.

Bo-weevil é apenas uma corruptela de boll weevil, besouro chamado aqui de bicudo-do-algodoeiro que migrou do México para os Estados Unidos no final do século 19, destruindo as plantações da época. E, como se sabe, se existe um gênero musical em que uma plantação de algodão é algo extremamente sagrado, esse gênero é o blues.

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Esta canção, na verdade, é uma daquelas em que não se sabe ao certo o autor. A versão mais antiga seria de Charley Patton, mas a primeira que contêm todos seus pontos fundamentais em letra e música foi gravada por Lead Belly. Mas, na voz de Rainey, tornou-se um clássico, sendo regravada pouco depois por Bessie Smith.

E com isso chegamos a um dos pontos mais contraditórios da história de Gertrude Malissa Nix Pidgett, “Ma” Rainey, e que talvez se configure em uma das maiores lendas da história do blues.

A bem da verdade, sua história inteira é extremamente interessante, como acontece com os grandes nomes do blues dessa época.

Não se sabe ao certo sua data nem local de nascimento (ela alegava ter nascido em 1886 na Georgia, mas o censo de 1910 indica que ela havia nascido em 1882, no Alabama), mas é certo que ela começou a se apresentar como cantora quanto tinha cerca de doze anos.

Ao se casar com Will Rainey, mudou seu nome para “Ma” Rainey (aproveitando que ele se apresentava como “Pa” Rainey) e percorreram o país com o nome de Rainey and Rainey, Os Assassinos do Blues, até se separarem, em 1916. A partir daí, continuou a fazer shows com suas próprias bandas.

E justamente na mesma época em que conheceu os músicos de Nova Orleans, Rainey encontrou Bessie Smith, que à época ainda dava seus primeiros passos na carreira musical. O que se sabe com certeza é que as duas conviveram algum tempo, pois Bessie atuava como dançarina numa companhia em que Rainey era a cantora principal.

Mas aí começam as lendas e uma delas, extremamente interessante é que “Ma” Rainey teria simplesmente sequestrado Bessie Smith para obrigá-la a se juntar à companhia, e acabou a ensinando a cantar o blues. É uma história improvável (há quem diga que Rainey nunca ensinou Bessie a cantar, e apenas deu dicas sobre presença de palco), mas muito difundida, mesmo sendo contestada por pessoas próximas a Bessie.

E, claro, há a lenda que as duas haviam sido amantes. Aqui a coisa dificilmente poderá ser vista como mentira ou verdade, pois se trata de uma extensão natural das lendas criadas ao redor das duas. Ambas eram bissexuais, ambas tinham temperamentos fortíssimos e nenhuma delas era exatamente bem comportada.

Lendas à parte, a atração de Rainey por outras mulheres é um marco, não apenas na história do blues, mas da música como um todo — e, porque não, da nossa sociedade? Isso porque ela assumia isso em suas letras. Se em See See Rider ela induz a esse pensamento de uma forma vaga, em Prove it on Me, ela joga as cartas na mesa.

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“Eles falaram que eu fiz, mas ninguém me pegou, então precisam provar que fui eu. Saí ontem à noite com um grupo de amigos, e deviam ser todas mulheres, porque eu não gosto de homens.”

O trecho acima — que começa aos 00:47 — além de deixar explícita sua orientação sexual (se não for suficiente, os versos “eu uso colarinho e gravata” e “falo com uma garota como qualquer homem falaria” ainda marcam presença na música), diz respeito a um dos maiores escândalos de sua carreira, quando foi presa por participar — ou, melhor dizendo, organizar — uma orgia entre as coristas de sua companhia.

Com personalidade forte, escândalos e inúmeros boatos, era difícil “Ma” Rainey não atrair a atenção da mídia e do público. Mas seus espetáculos lotavam mesmo por causa de seu talento. Até hoje, ela é considerada uma das maiores vozes da história do gênero e suas mais de cem músicas gravadas (número impressionante para quem entrou em estúdio durante apenas cinco anos, sem parar de fazer shows) são um verdadeiro testamento do blues da época.

Curiosamente, sua história não acaba de forma trágica ou grandiosamente passional, e sim melancolicamente. Com o vaudeville (ou os teatros de revista entrando em decadência), Rainey começou a perder espaço, e logo a Paramount cancelou seu contrato, alegando que seu estilo de música não estava “mais na moda”.

Assim, ela abandonou os palcos e retornou para a cidade na Georgia onde cresceu, e passou a administrar os dois teatros que possuía, até falecer de parada cardíaca aos 53 anos, em 1939. Dessa forma discreta, terminava a carreira de uma mulher que hoje é vista quase como uma força da natureza, mas que enxergava a si mesma de uma forma muito mais simples, como fica claro na letra de Slave to the Blues: “eu estou lamentando do meu chapéu até meus sapatos; eu sou uma mulher de bom coração, e mesmo assim estou acorrentada ao blues”.

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Clique e Ouça: Músicas para Conhecer

Nota: muitos dos vídeos que aparecem neste post (e isso inclui os linkados abaixo) trazem fotos erradas. Alguns colocam fotos de Bessie Smith e outros de montagens da peça Ma Rainey’s Black Bottom, escrita em 1982. Ignorem isso, por favor — esses links estão aí apenas por serem as melhores versões das músicas que encontrei.

Moonshine Blues — Uma daquelas canções que conseguem unir diversos temas sagrados do blues de forma genial. O tema principal, claro, é a bebida (a moonshine do título), com Rainey afirmando, logo nos primeiros versos, que bebeu a noite inteira e já havia bebido à noite anterior. Porém, imediatamente ela diz que assim que ficar sóbria não irá mais beber, e que o faz apenas “porque seu amor foi embora da cidade”. Assim, ela está disposta a tomar aquela que muitas vezes parece ser a única solução realmente eficaz no mundo do blues: pegar o primeiro trem e ir embora, para começar de novo. E (com sorte) esquecer a dor.

Black Bottom — A história dessa canção é curiosa. Black Bottom era, na verdade, uma dança da época inspirada no Charleston. A canção de Rainey refere-se a isso, aproveitando o tema para destilar versos com duplo sentido, uma das especialidades do blues.

Black Eyes Blues — Com um comportamento evidentemente feminista, seria difícil Ma Rainey não abordar a violência doméstica. E ela o faz de forma inesquecível — e realista — ao contar a história de Nancy Ann, garota presa em um relacionamento abusivo. Poucas vezes um relacionamento desse tipo foi descrito de forma tão crua como nos versos “pegue todo meu dinheiro, deixe meus dois olhos roxos, dê para outras mulheres, volte para casa e me conte mentiras”, enquanto ela jura que um dia o surpreenderá “de calças arriadas” e dará a volta por cima. Mas aqui a grande violência da canção é física, quando ela apanha do namorado no verso “he beat miss Nancy ‘cross the head”, que não tem como ser mais violento.

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Obs.: Este texto foi originalmente publicado na série Sábado de Blues, lá no Medium do autor, Rob Gordon, que sai - pasmem - todos os sábados.


publicado em 08 de Dezembro de 2016, 00:00
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Rob Gordon

Rob Gordon é publicitário por formação, jornalista por vocação e escritor por teimosia. Criador dos blogs Championship Vinyl e Championship Chronicles.


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