Blues: Etta James - A Última Rainha do Blues

Conheçam a história de Etta, a cantora norte-americana de blues, R&B, jazz e música gospel, apelidada de Miss Peaches

Ninguém sabe direito como aconteceu.

A versão mais popular é que o músico Johnny Otis, considerado um dos pais do rock e dono de um show de talentos, teria descoberto o grupo de doo-wop The Creolettes apresentando-se em um clube de São Francisco e decidiu apadrinhar uma de suas integrantes. Entretanto, Otis contaria uma história diferente: segundo ele, a garota, que tinha apenas 13 anos, conseguiu entrar no hotel que ele estava hospedado e exigiu que ele a ouvisse cantando.

A forma que a história aconteceu não importa tanto quanto suas consequências. O músico deu o pontapé inicial na carreira da menina e, de quebra, aconselhou que ela adotasse um nome mais comercial. Sugeriu que ela invertesse a ordem do seu complicado nome de batismo e o dividisse em duas palavras, ideia prontamente aceita.

Foi assim que Jamesetta se tornou Etta James.

Foi assim que nasceu uma lenda do blues. E uma das artistas mais importantes da música do século 20.

Dentro do blues, Etta James é reverenciada como uma deusa. Para mim, é a grande herdeira de Bessie Smith, cantando sobre as alegrias e (principalmente) as tristezas do amor de uma forma que é impossível não acreditar que ela viveu cada verso de suas músicas — ou que ela está sentindo exatamente aquilo que canta, exatamente no momento em que canta.

Mas Etta vai além do blues. Sua formação musical vem do jazz, mais especificamente dos discos de Billie Holiday (que, por sua vez, apontava Bessie Smith como uma de suas principais influências) que Etta ouvia com sua mãe quando criança. Com o passar dos anos, passou a incorporar outros elementos em suas músicas — e também a experimentar outros gêneros, como country, soul, gospel e até mesmo rock.

“Eu quero mostrar que o gospel, o country, o blues, o rhythm and blues, o jazz, o rock ‘n’ roll são, na verdade, uma única coisa. Isto é a música americana, e a cultura americana.”(Etta James)

Se o blues — o sentimento, não a música — pode ser cantado em qualquer gênero, muito disso se deve a Etta James. E a Leonard Chess, cérebro da Chess, gravadora que revolucionou o blues em Chicago.

Enquanto os outros astros da empresa, como Muddy Waters e Howlin’ Wolf, faziam um blues elétrico totalmente calcado no som do Mississipi, Chess deduziu que a voz de Etta remetia a um ambiente mais clássico, e decidiu rechear suas gravações de violinos e outros instrumentos de cordas. O ápice dessa ideia pode ser sentido em At Last, sua “canção-assinatura” e uma das músicas mais importantes e reverenciadas do século XX.

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Com cara de jazz, At Last se torna um poço de emoções na voz de Etta. Talvez com uma cantora normal, os versos “finalmente, meu amor chegou”, que abrem a música, soariam apenas alegres. Na voz de Etta, essa felicidade soa carregada de um alívio que se justifica na frase seguinte: “meus dias solitários acabaram e a vida é como uma canção”. Ou seja, a letra transforma a expectativa do reencontro como ponto de partida para uma ideia mais elaborada e amarga: a vida da cantora é horrível sem o homem que ama — e isso não funcionaria sem a carga de emoções que Etta coloca na canção. Cara de jazz? Sim. Mas é blues puro.

E talvez seja por isso que seus grandes sucessos estão em seu período na Chess. Se Etta foi aclamada como uma das maiores cantoras de seu tempo, isso se deve especialmente ao trabalho que ela construiu na gravadora de Chicago, quando emplacou um sucesso atrás do outro e ajudou a moldar a história do blues moderno, com canções que sempre namoravam outros gêneros, mas nunca perdiam sua essência de blues.

Uma das mais aclamadas desta época é uma das minhas maiores obsessões — eu tenho dezenas de músicas que coloco nessa categoria de “obsessão”: são aquelas que posso deixar no repeat durante horas, pois quanto mais ouço, mais sinto vontade de ouvir. E cada vez que ouço a história de como tudo o que ela pode fazer é chorar ao descobrir que o homem que ama iria se casar com outra, eu mais sinto vontade de ouvi-la.

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É uma música que consigo dividir em duas partes. A primeira vai até 1:12 e mostra Etta cantando sobre o casamento em si. Mas, a partir daí, ela começa a cantar sobre como se sente a respeito daquilo (mesmo voltando, em um trecho, a descrever a cerimônia), e começa a disparar uma série de gritos que ultrapassam a melancolia e, em alguns momentos, beiram o desespero — sem jamais sair do ritmo da canção.

É brilhante. Ela vai além de cantar os versos da música; a letra é triste, mas a forma que ela usa sua voz poderosíssima é ainda mais triste e escancara a dor que está sentindo. Não é uma canção sobre um amor perdido. É mais que isso: é uma canção sobre o fim de uma fase da vida — ou, talvez, de toda ela.

Você não consegue fingir essa música. Você pode ser um grande cantor ou um grande músico, mas não é isso que é necessário, e sim como você se conecta com essas canções e com as histórias por trás delas”.(Etta James)

Mas, se o amor não correspondido é uma das constantes na obra de Etta James — e At Last, curiosamente, seria uma exceção — esse tema talvez chegue ao seu auge em Fool That I Am. Quem nunca se iludiu ao se apaixonar ao menos uma vez na vida? Etta James praticamente encerra esse assunto ao reclamar o quanto foi tola ao se apaixonar e ao acreditar que a paixão seria correspondida.

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É uma música amarga, cantada num tom arrastado e cuja sensação de “vazio” chega ao máximo no verso “meus sonhos desapareceram como a fumaça de um cigarro” — mais um exemplo da capacidade genial do blues de fazer metáforas e comparações com objetos do cotidiano, sempre aproximando a realidade do ouvinte com o sentimento da canção. Mas o ponto chave da música, que justifica o título “Tola que Sou” (ao invés de “Tola que Fui”, que seria o certo, pois fala de uma paixão que já aconteceu e não se concretizou) é seu final, quando Etta se despede do amor, mas, antes de “ir embora”, assume:

“Mas eu ainda me importo, mas eu ainda me importo.Tola que sou.”

Ou seja, ela foi tola por se apaixonar, ela foi tola por acreditar… E ela é tola porque continua acreditando que um dia sua paixão vai dar certo — mesmo sabendo que não vai. É uma conclusão de partir o coração — e dolorosamente realista e sincera.

E dolorosamente humana, como foi a vida de Etta James. No início dos anos 70, começou a entrar e sair de clínicas de reabilitação devido ao fato de ter sido viciada em tudo que se possa imaginar — como o filme Cadillac Records, apesar de romantizado e ambientado durante os anos 60, já deixa claro. Suas músicas nunca mais atingiram o posto de obras-primas, mas também nunca escorregaram na qualidade e, de quebra, mostraram que Etta James conseguia levar o blues que sentia para qualquer gênero musical que desejasse (veja a lista de indicações de músicas logo abaixo para um bom exemplo).

Continuou gravando e se apresentando ao vivo até pouco antes de sua morte, em 2012 — apenas três dias depois da morte de Johnny Otis, o homem que, invertendo as palavras do nome Jamesetta, criou a última rainha do blues.


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(The Wallflower) Dance with Me Henry— Entra como curiosidade histórica, por ser a primeira gravação de Etta com Johnny Otis — e com uma cara deliciosa de rock dos anos 50. A história da canção é curiosa. Em 1954, Hank Ballard (que também foi descoberto por Johnny Otis), gravou Work with Me, Annie. Mesmo censurada pelo seu conteúdo sexual, a canção foi um enorme sucesso e gerou diversas “músicas-repostas”. Umas delas é (The Wallflower) Dance with Me Henry (que se chamaria, na verdade, Roll with Me, Henry, mas foi obrigada a mudar de título por ser “insinuante” demais).

My Dearest Darling — A primeira canção de Etta James acompanhada totalmente por cordas. É uma música otimista tanto no ritmo como na letra, em que ela, apaixonada, torce para que seu amor seja correspondido.

I Just Want to Make Love to You — Escrita por Willie Dixon (contrabaixista e compositor oficial da Chess) para Muddy Waters, a versão de Etta James transforma completamente a canção. Se na versão de Muddy o sexo se torna um grito de liberdade, a versão de Etta… é sexo puro.

Spoonful — “Podia ser uma colher cheia de diamantes. Podia ser uma colher cheia de ouro. Mas apenas uma pequena colherada do seu amor precioso vai satisfazer minha alma”. Outra canção escrita por Willie Dixon e que conta com uma das letras mais geniais do blues. Etta gravou no começo da carreira, num dueto com Harvey Fuqua, integrante da banda The Moonglows, com quem manteve um relacionamento na época.

You Can Leave Your Hat On — Foi escrevendo este post que descobri que esta canção é escrita pelo mesmo Randy Newman que hoje atua como compositor de trilhas, especialmente para a Pixar (como no caso dos três Toys Story e de Monstros S.A.). Dez anos antes da famosa versão de Joe Cocker, Etta gravou, ainda para a Chess, uma versão funkeada que gruda na cabeça e mostra o poder absurdo da sua voz.

I’d Rather go Blind — Vamos fechar o post com um clássico. Desde o começo, quando Etta percebe que o romance acabou ao ver o homem que ama conversando com “a outra”, a letra se desenvolve de uma forma que chega a assustar de tão bem escrita (em um momento, ela confessa que só percebe que está chorando ao ver o reflexo das lágrimas no copo em que está bebendo). E o sentimento é de total entrega para o amor não correspondido: ela declara com todas as palavras que “não quer ser livre” e, como o título deixa claro, “eu prefiro ser cega a ver você partir”. É uma pedrada.

* * *

Obs.: Este texto foi originalmente publicado na série Sábado de Blues, lá no Medium do autor, Rob Gordon, que sai - pasmem - todos os sábados.


publicado em 16 de Junho de 2016, 00:00
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Rob Gordon

Rob Gordon é publicitário por formação, jornalista por vocação e escritor por teimosia. Criador dos blogs Championship Vinyl e Championship Chronicles.


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