Blues: Albert King — O Rei que Nasceu sob um Signo Ruim

Conheça o influente guitarrista e cantor de blues, considerado o 13º melhor guitarrista do mundo pela revista Rolling Stone

No começo dos anos 50, B. B. King estava ganhando fama e preparando o terreno para se tornar um dos maiores nomes do blues. Sua versão de 3 O’Clock Blues — que havia sido composta por Lowell Fusion, em 1946 — estava fazendo cada vez mais sucesso e fazendo com que King se transformasse em uma espécie de grife. Naquele momento, o público queria dois tipos de música: B. B. King ou algo que soasse como B. B. King.

Foi nessa época que um jovem guitarrista chegou à cidade de Gary, em Indiana, disposto a se tornar um astro do blues, e alegando ser meio irmão daquele mesmo B. B. King que tocava nas rádios o tempo inteiro. Não demorou até conseguir emprego em uma banda, mas teve que aceitar tocar bateria, pois o grupo, chamado Gary Kings, já contava com dois guitarristas (John Brim e Jimmy Reed que, pouco tempo depois, se transformaria em um dos blueseiros mais importantes da época).

Pouco depois, conheceu o baixista Willie Dixon (que escreveria seu nome na história do blues como o principal compositor da Chess, casa de Muddy Waters, Etta James e Howlin’ Wolf), que lhe arrumou um teste numa pequena gravadora chamada Parrot Records. Logo estava gravando suas primeiras canções — novamente tocando guitarra, o instrumento que se tornaria sua marca registrada e o transformaria em um ícone do blues.

Quinze anos depois, esse sujeito mudaria a história do blues ao gravar um dos maiores hinos do gênero, uma música que influenciaria dez entre dez guitarristas. Afinal, não existe um guitarrista de blues moderno que não conheça Born Under a Bad Sign — tanto a música como o disco, que se tornou um pilar do blues moderno e é obrigatório em qualquer coleção. E todos eles reverenciam seu autor, Albert King, como um gênio.

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Pensando em termos de letra, a música é quase uma vitrine de tudo o que o blues representa. Em menos de três minutos, o músico narra todas suas desventuras e de forma genial, sem citar nada específico. Sabemos que passa a vida inteira envolvido em problemas e precisa sempre se virar sozinho para resolvê-los. Descobrimos que mal sabe ler e escrever, e que sua vida foi uma eterna luta. Mas também ouvimos que suas paixões se resumem a bebidas e mulheres — e, de forma profética, ele prevê que quando morrer será enterrado por uma mulher de pernas grandes.

Mas, mais importante que isso, ele deixa claro que não escolheu essa vida. Trata-se de destino: ele nasceu sob um signo ruim, e, “se não fosse por má sorte, ele não teria sorte alguma”. É uma obra-prima poderosa, que praticamente resume não o blues como música, mas sim como sentimento.

Entretanto, a mesma força de sua letra está na parte instrumental. A música que se tornou a assinatura de Albert King (e que foi regravada por qualquer guitarrista de blues que você possa imaginar) é uma amostra perfeita do som único de sua guitarra. Seu arranjo foi pensado para agradar ao público do rock — a canção é de 1967, ano que marcou a explosão do rock psicodélico — mas a guitarra da canção é puramente blues, trazendo um tom diferente de tudo o que se escutava na época.

Isso se deve a um elemento mais técnico que muita gente poderia imaginar. Albert era canhoto e tocava com sua guitarra invertida. Entretanto, diferente de outros músicos canhotos, ele não invertia as cordas da sua guitarra. Isso mudava seu jeito de tocar e, consequentemente, o som do seu instrumento.

Sem entrar em aspectos técnicos — mesmo porque eu não sou músico — a principal diferença é que enquanto a maior parte dos guitarristas puxa a corda da guitarra para cima para fazer o bend (uma técnica criada por músicos de blues e country que muda a afinação das notas), Albert King fazia o mesmo, mas puxando a corda para baixo. A introdução de Blues Power, nesta lendária versão no Fillmore East é um bom exemplo de sua técnica e seu som.

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Certamente o garoto nascido no Mississipi em 1923, jamais poderia imaginar que se tornaria uma lenda usando justamente o instrumento que seu pai tocava na igreja perto de casa.

Como muitos meninos negros de sua época e região, dividia seu tempo entre duas atividades: ou estava colhendo algodão, ou cantando no coro da igreja. Viveu essa rotina até os oito anos de idade, quando seus pais, em busca de uma vida melhor, partiram para o estado vizinho do Arkansas, junto com seus treze filhos.

E, também como muitos garotos negros da sua época e região, o garoto encontrou sua salvação no blues. Aprendeu a tocar guitarra por conta própria, construindo um instrumento tosco a partir de uma caixa de charutos e fez parte de pequenas bandas que tocavam música gospel. Mas quando descobriu as músicas de Blind Lemon Jefferson e Lonnie Johnson, percebeu que seu destino estava no blues.

O resto é história — e uma história bastante comum no blues. Albert passou anos alternando a guitarra e empregos diurnos até conseguir viver exclusivamente de música. Mas quando gravou seu primeiro sucesso, Don’t Throw Your Love On Me So Strong, em 1961, a música já era uma viagem sem volta na sua vida.

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Pouco depois disso, assinaria com a gravadora Stax, onde viveria uma fase de ouro. Foi nesse período que ele se tornou um dos maiores nomes do blues — e, após sair da gravadora, que enfrentava dificuldades financeiras em meados dos anos 70, continuou gravando para selos menores até 1984. Mesmo depois de anunciar sua aposentadoria, nunca parou de se apresentar ao vivo nos Estados Unidos e na Europa, sempre conquistando novos fãs de blues com seu som único.

Por isso, é comum dizer hoje que o blues possui três reis: Albert, B. B. e Freddie King.

Entretanto, Albert nunca teve parentesco algum com N. B. King, o mais famoso dos monarcas, como ele mesmo falava no começo da carreira. Ao preencher o formulário para conseguir seu cartão de seguro social, em 1942, apresentou seu nome como Albert Nelson, filho de Will Nelson. Mas a mentira colou por um tempo: muitos cartazes anunciando seus shows, nos anos 50, o apresentavam como “o irmão de B. B. King”.

O blues é um gênero cheio de mentiras, e essa é a apenas mais uma delas — falo mais sobre isso no texto sobre Sonny Boy Williamson. Mas esse tipo de mentira, no blues, sempre foi perdoado. O próprio B. B. King chegou a dizer que “meu nome era King antes mesmo de eu me tornar famoso, e Albert não é meu parente”, mas sempre acrescentava, gargalhando, que “mas ele é um ótimo amigo”.

E essa mentira é pouco lembrada hoje. Deixou de ser pecado ou oportunismo, e virou anedota. Afinal, quem iria lembrar justamente disso quando existe muito mais para se observar em King — especialmente porque temos aqui uma ironia do destino: enquanto muitos guitarristas de blues tentavam apenas emular B. B. King, Albert manteve seu próprio estilo, sem jamais copiar o som do seu “suposto meio-irmão”.

O “Trator de Veludo” (era chamado assim pelo contraste entre a suavidade de suas notas e seu porte físico, com cerca de dois metros de altura e mais de cem quilos) deixou uma marca no blues que permanece viva, mesmo após sua morte em 1992, devido a uma parada cardíaca fulminante, quando tinha apenas 69 anos.

Eric Clapton, Robert Cray e (principalmente) Stevie Ray Vaughan foram influenciados por Albert King — no texto sobre Stevie Ray Vaughan, coloquei um trecho do show magistral que ele fez com Albert.

E a cada vez que um novo guitarrista de blues se inspira em algum desses músicos, o legado de Albert King, o rei que nasceu sob um signo ruim, permanece vivo.

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Oh, Pretty Woman — Outro clássico presente no disco Born Under a Bad Sign. É um blues por definição — especialmente na guitarra, claro, e na letra sobre a desilusão amorosa — mas com um arranjo moderno e até mesmo dançante, mostrando o quanto Albert queria chamar a atenção das novas plateias.

Laundromat Blues — Também do disco Born Under a Bad Sign. Mas aqui temos um blues puro, com Albert praticamente fazendo um dueto com sua guitarra — ele canta e a guitarra responde, como segunda voz. E a letra, sobre a mulher que encontra com seu amante todos os dias na lavanderia, ganha um desfecho que traz um dos versos mais brilhantes da história do blues, quando o músico, ciumento, diz: “eu não quero que você se limpe tanto, seria melhor você lavar sua vida”.

Crosscut Saw — Sim, mais uma do disco Born Under a Bad Sign. Afinal, um disco histórico de blues não podia deixar de apresentar a sua canção com metáforas pornográficas, que abrem com “eu sou uma serra, me carregue para sua casa, que eu serro sua madeira com facilidade”. Sim, é pornografia pura. Mas com uma elegância de fazer inveja.

(I Love) Lucy — Apesar da qualidade, entra na lista como uma curiosidade. Afinal, assim como B. B. King imortalizou sua guitarra como Lucille, Albert foi pelo mesmo caminho e batizou seu instrumento de Lucy.

The Sky is Crying — Essa entra na lista por dois motivos: primeiro, por mostrar Albert em seus últimos anos (é um show de 1989), mostrando uma vitalidade impressionante sobre o palco. O segundo motivo é pessoal: quem acompanha essa coluna sabe que sou apaixonado por essa canção de Elmore James. E a versão de Albert para ela, um monumento de quase dez minutos, é apaixonante. Não tenho outra palavra para descrevê-la.

Bonus TrackPela primeira vez na coluna, vou publicar uma informação sem ter certeza de sua veracidade. Vou explicar: foi apenas pesquisando material para esta coluna que descobri que Albert tinha tocado bateria no começo da carreira, junto com Jimmy Reed — eu realmente não fazia ideia disso. A partir daí, comecei a vasculhar a internet em busca de algum registro dessa época, pois muitos sites indicavam que Albert teria sido o baterista nas primeiras gravações de Reed, feitas para a gravadora Vee-Jay Records.

Então, identifiquei quais seriam essas primeiras músicas e comecei a tentar encontrar sinais de que Albert pudesse estar na ficha técnica. Foi mais difícil que imaginei. Até que encontrei alguns sites indicando que o baterista em cada uma dessas canções era Albert King OU Morris Wilkerson. Todos eles apontavam que Wilkerson é um sujeito do qual não se sabe nada, a não ser que pode ser o baterista nessas músicas (é provável que ele seja um músico de estúdio), mas também diziam que o nome de Albert precisava ser citado, pois ele mesmo garantiu, em diversas entrevistas, que o baterista era ele.

Restava apenas um modo de checar a informação: indo atrás de Jimmy Reed, o dono da música. Passei horas revirando a internet até que encontrei uma antiga entrevista em que ele aborda o início de sua carreira contando, entre outras coisas, como conheceu Albert King. Achei que fosse desvendar o mistério, mas, no momento que o jornalista perguntou se Albert havia tocado em alguns de seus discos, a resposta foi:

“Não que eu me lembre. Mas se ele tocou, eu estava bêbado demais para lembrar. Porque quando eu ia para o estúdio, eu ficava chapado para me sentir bem antes de descer até ali. E o que as pessoas falavam sobre isso não me importava, porque eu ia para o estúdio e fazia o que tinha que fazer. E é isso”.

Ou seja: Albert King pode ou não ser o baterista das primeiras gravações de Jimmy Reed. O único testemunho oficial sobre isso é dele — cuja história de ser meio irmão de B. B. King já mostra seu talento para mentir. E como o próprio Jimmy Reed não consegue se lembrar, esse é mais um ponto que entra para a enorme lista de “talvez tenha acontecido” da história do blues.

Então, mesmo que apenas por curiosidade, eu deixo aqui uma das gravações dessa época: High and Lonesone, primeira gravação de Jimmy para a Vee-Jay. Talvez — e apenas talvez! — Albert King esteja tocando bateria aí.

Clique aqui para conferir.

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Obs.: Este texto foi originalmente publicado na série Sábado de Blues, lá no Medium do autor, Rob Gordon, que sai - pasmem - todos os sábados.


publicado em 02 de Fevereiro de 2017, 00:00
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Rob Gordon

Rob Gordon é publicitário por formação, jornalista por vocação e escritor por teimosia. Criador dos blogs Championship Vinyl e Championship Chronicles.


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