Black Friday: algo te toma quando você vai às compras.

Essa sexta-feira marca o aniversário de 6 anos da morte de Jdimytai Damour.

Não é à toa que esse nome provavelmente não significa nada para você.

Apesar de a notícia ter chegado às manchetes dos principais jornais americanos, em sua morte Jdimytai permaneceu tão anônimo quanto em vida. Jimbo, como era chamado pelos amigos, trabalhava como temporário no Walmart de Long Island quando foi pisoteado por uma multidão de compradores que tentava invadir a loja para aproveitar as promoções da Black Friday. Testemunhas relataram que, mesmo depois da chegada da polícia, a loja permaneceu aberta e as pessoas seguiram com suas compras.

De longe, é fácil notar que a morte de Jimbo não foi um acidente. Ele não morreu, ele foi morto. Mas quem é culpado por sua morte? De quem eram os pés que pisotearam Jimbo? Se não é possível identificar os pés, todas pessoas que estavam na loja naquele dia são igualmente culpadas? Ao perceber que havia algo de errado, mas continuar correndo, elas imaginavam essa consequência? Cada uma, individualmente, achava que suas compras eram mais importantes do que uma vida?

Não há quem consiga justificar o acontecido de forma moralmente confortável. Mas antes de apontarmos o dedo para os americanos-consumistas-ganaciosos, é importante refletir sobre o que nos aproxima.

Sobre como não somos tão diferentes assim.

Consumo e desconexão

o que te toma quando você vai às compras?

Se dermos alguns passos para trás é fácil notar como toda experiência tradicional de consumo é baseada na desconexão.

Não nos conectamos com as nossas próprias necessidades

Uma faxina no armário comprova como possuímos muito mais do que o necessário. Ou ao menos temos muitas baboseiras das quais não precisamos. Dia desses, durante um passeio por uma feirinha de rua me vi ansiosa com o tanto de coisas lindas, decidindo o que deveria ou não comprar, dadas as minhas limitações orçamentárias.

O que era para ser um dia de relaxamento, virou uma experiência de estresse e me mostrou que a minha relação com o consumo está pautada por um bando de necessidades emocionais que eu ainda preciso explorar, entender e direcionar de outros modos, mais perenes e satisfatórios do que com uma “boa aquisição”.

Não nos conectamos com os produtos que compramos

No filme Money&Life, uma fala de Vicki Robin chama atenção: ela diz que, na verdade, somos péssimos materialistas. Sabemos muito pouco ou quase nada sobre os materiais daquilo que consumimos, temos pouco cuidado e apreciação com eles.

A nossa relação com os produtos é frágil, descartável e utilitária. O material, por si só, não tem valor algum: quando o valor circunstancial de uso se esgota - seja ele objetivo ou subjetivo - o produto está pronto para ir para o lixo.

Não nos conectamos com os processos produtivos

Cada vez mais nos afastamos dos processos e do “fazer”. Habilidades como plantar, costurar, cozinhar, consertar objetos, tão comuns na geração de nossos pais ou avós, hoje são raras. Temos uma visão limitada e fragmentada do todo. Sabemos muito pouco sobre como as coisas são feitas, e o quanto de trabalho e energia demandam.

Não nos conectamos com as pessoas que nos prestam serviços ou que fabricam nossos produtos

Por não entender o processo, naturalmente nos desconectamos das pessoas que fazem parte dele. Se alguma delas for à falência, ficar doente ou morrer certamente haverá outra que aceitará meu dinheiro para fornecer um produto ou serviço semelhante. Aqui o dinheiro tem um papel extremamente importante: ele alimenta a ilusão de que somos independentes uns dos outros.

Quando eu não me enxergo como parte de algo maior, quando me entendo como separado dos processos e independente das pessoas, é natural que eu não apresente nenhum tipo de ligação emocional ou empatia. Nesse contexto não é difícil entender porque seguimos comendo Corn Flakes, dirigindo SUVs e usando roupas da Zara.

É porque não nos vemos como integrantes dos processos que causam destruição da biodiversidade e empobrecimento de pequenos agricultores; aquecimento global e redução da mobilidade; tráfico de pessoas e condições de trabalho análogas à escravidão.

Então o que me faz tão diferente dos compradores agitados daquele WalMart? Mark* só queria comprar aquela máquina de lavar que estava precisando há tempos. Desiree* queria presentear o filho com o video game que, em outra situação, estava fora da sua capacidade orçamentária. A morte de Jimbo não é só culpa deles: é sintoma de uma sociedade adoecida.

Não me entenda mal. Esse texto não é uma tentativa de te apontar como parte do problema. Também não é uma argumentação para demonizar “o sistema”. De nada adianta culpabilizar o indivíduo ou as instituições, porque isso só reforça uma cultura de separação. E o que precisamos agora é começar a agir a partir de uma outra lógica, uma de reconexão. Confirmar o que já sabemos intuitivamente - que somos todos interdependentes - e agir a partir desse entendimento.

É o que Tocqueville chama de “auto-interesse entendido corretamente”: em uma rede de confiança e reciprocidade generalizada, ações que imediatamente nos parecem altruístas somadas, no longo prazo, geram resultados positivos para todos os “participantes”.

Por isso, fica aqui a minha provocação. Antes de abrir aquele email marketing recheado de ofertas bacanudas, pare por um minutinho e se pergunte, sem julgamento: que diferença real essa aquisição vai representar na minha vida? De onde vem a energia que me leva a fazer essa compra? Essa felicidade pós-compra vai se sustentar por quanto tempo? Qual a história e processo que esse produto passou/vai passar para chegar até mim? Eu gosto de fazer parte dessa história?

* * *

No nosso coração, sabemos que estamos todos juntos em um navio prestes a naufragar. De nada adianta perder tempo tentando encontrar os culpados. É hora de começarmos a construir os botes salva-vidas e navegar em direção à outra realidade. Uma onde histórias como a de Jimbo não possam mais se repetir.

Crédito das imagens: Buy now, por edkohler; Shopping ecstasy, por David Blackwell.

* tomei a liberdade poética de inventar nomes e histórias.

Nota: esse texto foi originalmente publicado no blog do Cinese.me.


publicado em 28 de Novembro de 2014, 11:47
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Camila Haddad

Administradora, mestre em desenvolvimento sustentável e, precisou de duas graduações e uma pós para entender que a gente aprende mesmo é com os outros, as experiências, a ação. Atualmente, se diz em processo de desescolarização. Apaixonada por educação e entusiasta de movimentos colaborativos, juntou os dois no Cinese.


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