Biografia bota em xeque a hipermasculinidade de Hemingway

E isto não faz dele nem mais nem menos homem do que cada um de nós

“– Mas o homem não foi feito para a derrota — disse. Um homem pode ser destruído, mas não derrotado.”

Um dos principais escritores do século XX — ganhador tanto do prêmio Pulitzer (com “O velho e o mar”, livro de onde vem o trecho acima) quanto do Nobel de literatura, em 1954 — Ernest Hemingway foi, também, uma figura poderosa.

Celebrado por romances como “O Sol também se levanta” e “Adeus às armas”, Hemingway se tornou igualmente conhecido como um exemplo de masculinidade dominante—um aventureiro incorrigível cuja vida recheadas de aventuras em guerras, safaris e situações de alto risco podia ser percebida, à imagem e semelhança, em suas obras.

Em um texto publicado pelo jornal El País, o também escritor Mário Vargas Llosa descreveu o conjunto de livros e contos de Hemingway como uma autobiografia mal dissimulada.

“Sua vida foi intensa, violenta, com a morte sempre rondando, não só nas guerras nas quais esteve como correspondente e combatente, mas também nos esportes que praticava–o boxe, a caça, a pesca em alto-mar–, nas viagens arriscadas, nos desarranjos conjugais, nos prazeres ventrais e nos rios de álcool. Viveu tudo isso e alimentou seus contos, romances e reportagens com essas experiências, de uma maneira tão direta que, pelo menos em seu caso, não há nenhuma dúvida de que sua obra literária é, entre outras coisas, nem mais nem menos do que uma autobiografia mal dissimulada”.

Nós mesmos, aqui no PapodeHomem, já publicamos um texto da série “Homens que você deveria conhecer” que reforçava partes da lenda sobre ele:

“Nesse sentido, à medida que se vai aprofundando na mente de Ernest Hemingway, é possível se perceber porque ele trabalhou tanto para construir em volta de si uma imagem de Macho Poderoso. Não era mais que uma defesa para sua luta interna. Hemingway era, e gostava de ser, seu melhor personagem; e como tal, ele afastava de si seus problemas. Por isso ele vivia arriscando a vida seja caçando, toureando, mergulhando em águas profundas, ou qualquer outra coisa que trouxesse adrenalina a suas veias. O cara era uma tempestade ambulante e trazia sua força para os livros. É isso que o torna tão especial como autor.”

Mas, como acontece invariavelmente com boa parte das lendas, a história de Hemingway também está sujeita a ser reescrita.

Lançada este ano, uma nova biografia sobre o autor, assinada por Mary Dearborn, passa a limpo a história—e a hipermasculinidade do mais célebre autor norte-americano do século XX. A história de que sua mãe o vestia de menina quando criança e a maneira abusiva com que tratava suas esposas já eram pública e notória. Mas o novo livro, agora, joga luz sobre as nuances que Hemingway demonstrava em relação à sua orientação sexual.

O livro revela a fascinação do escritor pela androginia e suas fantasias sexuais com os cortes de cabelo: costumava pedir às suas companheiras que o usassem o mais curto possível, enquanto ele o deixou crescer e chegou a tingi-lo de loiro e acaju (quando lhe perguntavam o que havia acontecido, respondia que era culpa dos raios de sol). Ao retornar de sua segunda viagem à África, o autor fez questão de furar as orelhas. “Usar brincos terá um efeito mortífero em sua reputação”, precisou dissuadi-lo sua quarta esposa, a jornalista Mary Welsh.

Trecho do texto “Um ‘supermacho’ em dúvida: a face oculta de Hemingway”

Somada à prática contumaz de se tornar personagem de suas próprias histórias, a tara por cabelos mais “masculinizados” fez com que uma cena de “O Jardim do Éden”, romance póstumo e inacabado de Hemingway, ganhasse mais relevância entre os que tentam desvendar a sexualidade do autor. Protagonista do livro, o escritor David Bourne pede, em uma das passagens, que sua mulher corte o cabelo e, depois, o penetre com um consolo. Na vida real, biógrafos creem que a passagem aconteceu entre Hemingway e Walsh.

Hemingway também teve uma relação difícil com sua cria mais nova, Gregory, transgênero que, mais tarde, acabaria adotando o nome de Glória (e, assim como o pai fez em meio a transtornos como alcoolismo e depressão, acabaria tirando a própria vida). De acordo com relatos, em dado momento Hemingway teria lhe confessado uma certa empatia: “você e eu viemos de uma tribo estranha”.

Essas passagens não provam nada sobre uma possível homossexualidade ou fluidez de gênero do autor, é claro (ainda que os papéis se modifiquem, sexo entre uma mulher e um homem continua a ser heterossexual), mas diz muito sobre a necessidade de revermos a aura de virilidade que nós, homens, atribuímos e cobramos uns dos outros.

Assim como alguns de seus personagens, Hemingway tentava fazer jus a um modelo de masculinidade irretocável que, na prática, é impossível de atingir. E, assim como ele, cada um de nós tem suas peculiaridades, vivências e escolhas.

Isso não faz de ninguém mais ou menos masculino. Hemingway, seja lá como ele gostava de ser entre quatro paredes, era tão homem quanto cada um de nós. Afinal existem várias maneiras possíveis de ser homem.

Ainda bem.

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Esqueça a noção de modelos a serem seguidos: não existe uma receita única para o que é ser homem. Ao invés de nos concentrarmos em seguir as regras não ditas e obedecer a um padrão clássico, que tal olhar mais para dentro e se permitir ser o homem que você pode e deseja ser?

Seja homem? Seja você. Por inteiro.

Natura Homem celebra todas as maneiras de ser homem.


publicado em 25 de Outubro de 2017, 00:05
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