Beirute com Tang

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Essa estória começou há alguns meses atrás, logo após dividirem os clientes da agência em times. Tang foi um deles, e o primeiro briefing foi fazer um filme.

Sensacional, pensei, mas aí vieram os “detalhes”: tinha que ser um filme tático de 20", veiculado só na Arábia Saudita, e por isso com mais guidelines do que um mapa de metrô. Pensei de novo, que merda.

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Fala com essa turma que Tang é gostoso e tropical

Ia ser mais um job pra HCSF, sigla que inventei para Hard Core Saudi Family porque engloba todas essas guides, não mostrar pele, usar véu, não ser muito “ousado”… Mas vamos lá, ossos do ofício.

Briefing

Tivemos que escutar 4 horas de brand induction, traduzindo, blá blá blá, pra depois chegar no briefing propriamente dito: criar um filme tático de 20" introduzindo o novo sabor tropical composto por banana, abacaxi, manga, kiwi e morango.

Eu ainda disse para o atendimento, "“morango não é tropical, vai por mim"” mas ele disse “"pesquisas comprovaram que os sauditas associam o morango ao tropical feeling"”, ou seja, fica na tua Rafael.

Criação

Depois de fazermos mais de 50 roteiros, e tendo que escutar que estava “criativo demais” para o mercado saudita e coisas do tipo:

- “Estamos dialogando com a classe C da Arábia Saudita, temos que ser mais literais e passar a mensagem de uma maneira fácil e mais simples possível”, aprovamos um roteiro.

O budget do cliente era muito pequeno por isso cotaram na Malásia, Tailândia e Líbano. Por incrível que pareça, é mais barato filmar nesses países, Dubai é caríssimo.

Fechamos com a produtora no Líbano por seus méritos ($).

A viagem

O Líbano está numa situação um pouco instável, o presidente foi assassinado num carro bomba há uns anos atrás e ainda está a maior confusão pra saber quem vai assumir o lugar dele, ou seja, o bicho tá pegando por lá.

A minha dupla não pôde ir por conta do casamento da irmã (redator sempre arruma um jeito de se safar do perrengue) e ainda pra piorar, o diretor de criação cruel, como todo ele tem que ser, disse que soube que os governos da Arábia Saudita e do Kuwait estavam mandando mensagens pra seus cidadãos que moram em Beirute aconselhando que se retirassem, porque a situação tava ficando preta…

No final fomos eu, o atendimento afetado e o produtor da agência, um libanês que cresceu no Canadá e que até hoje solta piadinhas em espanhol, por mais que eu tenha dito que brasileiros falam português.

Beirute e suas excentricidades

Pra quem não sabe ou é muito tosco, Beirute é a capital do Líbano.

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A montanha gelada não é real, é um mega outdoor

É uma cidade muito bonita e cheia de vida, apesar de muitos prédios demolidos ou com marcas de bala devido aos ataques de Israel. O exército está nas ruas, a cidade está em estado de alerta sempre, mas nem por isso as pessoas deixam de viver suas vidas.

Logo quando desembarquei um soldado meio que não foi com a minha cara, olhou pra mim e pra foto do passaporte umas 15 vezes, teve uma hora que eu disse:

- "Sou eu, eu juro", ele não gostou do tom irônico e disse que não perguntou nada e mandou que eu passasse, ainda resmungando.

Quando saímos do aeroporto um taxista estava esperando a gente, um dos sujeitos mais loucos que já vi na vida, num táxi muito velho, uma BMW anos 50 eu acho, caindo aos pedaços. Ele foi meio que uma espécie de Guia 4 rodas pra gente, aprendi um monte de coisa no tempão que passamos parados no trânsito caótico de lá.

Ninguém usa cinto de segurança e tem poucos sinais de trânsito, mas mesmo que tivessem muitos não faria a menor diferença porque eles simplesmente ignoram. Levei uma reclamação dele quando fui colocar o cinto, ele disse que não precisava porque o Líbano era “Livre".

Outra coisa, todo mundo fuma, e todos se confraternizam em torno desse vício, dividem, oferecem, batem papo, brigam… tudo em meio à baforadas, até propaganda de cigarro é liberada por lá. Me senti um alienígena só porque não fumo.

Fato curioso, o taxista disse que toda placa amarela com os letreiros pretos de qualquer comércio, pode ser farmácia, padaria, oficina, o que for, pertence ao hezbolah, foi nessa hora que o cano de escape de um carro do lado explodiu fazendo o maior barulho de explosão. Meu coração veio na boca, só pode ter sido alguma brincadeira de mau gosto.

O dia da filmagem

O que era pra ser uma coisa simples durou 22 dolorosas horas…

Primeiro, quando chegamos ao set me deparei com o que viria a ser a inocente mamãe saudita com seus vinte e poucos anos exalando a pureza que tínhamos aprovado nas fotos. Na realidade ela estava completamente diferente, mais parecida com uma “dançarina” do Gugu. Foram 3 horas pra tentar colocar um pouco de pureza através das feiticeiras da maquiagem.

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Libanesa. Pura. Puríssima... ou não.

Outro problema que tivemos foi com a garotinha. Aprovamos duas, uma pra atuar e outra pra ficar de backup, no dia da filmagem caiu o dente da principal. Isso, ela inventou de ficar banguela no começo das filmagens.

A produtora com aquele espírito de fazer gambiarra inventou de colar de volta, literalmente. Isso foi ruim porque inibiu a menina de atuar direito, a deixou insegura e o filme dependia 80% dela.

Tivemos que inventar uma disputa entre ela e a reserva, porque se sentindo ameaçada, ela poderia atuar melhor. Funcionou, acho que elas vão precisar de analista no futuro e a gente prestar conta com Deus por mais essa.

No fim deu tudo certo, o filme não é nenhuma maravilha, mas valeu como experiência. Na realidade você tem que se orgulhar de comer o filé, mas tem que ter humor pra roer o osso. Com Tang.


publicado em 16 de Abril de 2008, 06:50
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Rafael Rizuto

Diretor de Arte, 30 anos, morando pelas bandas do Oriente Médio há 4 anos, mais precisamente em Dubai. Curioso e observador do comportamento humano. Adora surpresa de uva. Seus trabalhos estão reunidos em www.rafaelrizuto.com.


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