Bebo Valdés e a quentura do afrojazz cubano

Pioneiro. Uma bela palavra pra se começar um singelo post que fala um pouco sobre o afrojazz cubano.

Eu gosto muito da musicalidade brasileira e da nossa capacidade absurda e antropofágica de engolir todos (ou quase todos) os estilos musicais que pipocam no mundo, digerir e cuspir uma versão brasileira e genuinamente autêntica da coisa toda. É simplesmente fascinante. Outro país que faz isso muito bem é Cuba. O jazz é um belo exemplo.

Ouve isso:

Link YouTube | Bebo's Blues

Tá tudo ali. O tema, o improviso, o swing, os instrumentos clássicos do jazz, cada um falando em seu momento, a bateria encerrando antes do tema voltar e finalizar a canção. Mas deu pra sentir o calor? A quentura do som? O bafo quente do mar caribenho?

Bebo Valdés começou a porra toda. E agora que ele morreu, nos resta lembrar do caminho desse pianista de tremendo talento. Para ficar melhor, em vez de eu escrever uma historieta wikipédica, segue um texto escrito pela jornalista premiada que já escreveu em tudo que é lugar (Travel & Leisure en EspañolBillboardThe New York TimesDwellVarietyThe Hollywood ReporterDeparturesThe Miami Herald, e no Batanga.com e Amazon.com) e é especialista em música latina, atual editora-chefe da revista Billboard em espanhol, Judy Cantor:

Bebo Valdés, gigante da música cubana, morre aos 94
Bebo Valdés era um grande homem cuja música revela um coração enorme. O gigante gentil da música cubana, que morreu sexta-feira, 22 de março, aos 94 anos, foi um dos fundadores do jazz latino e um dos pioneiros em trazer ritmos afro-cubanos sagrados para a música de dança popular.
Sua carreira o levou de trás do piano no famoso clube Tropicana, em Havana, para um salão do hotel em Estocolmo, onde ele tocou pra ganhar a vida por 25 anos, antes de retornar para gravações e turnês, quando ele estava na casa dos 70 anos. Seu retorno foi notável e lhe rendeu cinco prêmios Grammy por uma sucessão de gravações de jazz latino magistrais, três dos quais apareceram na parada da Billboard. Ele continuou a tocar piano depois que foi diagnosticado com a doença de Alzheimer, passando a maior parte de seus últimos anos no sul da Espanha, às vezes na companhia de seu filho, o pianista Chucho Valdés, de quem tinha se separado por muitos anos antes que a música botasse ambos juntos novamente.
"Bebo foi único com a sua música", disse Nat Chediak, o produtor residente em Miami que, junto com o cineasta espanhol Fernando Trueba, fez as gravações que levaram Valdés sua fama mundial tardia. "Não me lembro de um único dia que ele passava sem tocar seu piano. De certa forma, isso o mantinha vivo. "
Valdés, nascido Ramon na aldeia de Quivicán, aos 17 anos ele saiu de casa rumo a Havana para estudar num Conservatório. Em 1948, ele foi contratado para tocar com a orquestra popular do bandleader Armando Romeu no Tropicana, onde tornou-se diretor musical, no auge da era do mambo.

Link YouTube | Percebam a percussão, a levada caribenha, o sangue latino correndo

"O Tropicana era o paraíso", lembrou-se, em 1996, em uma entrevista com este repórter publicado no Miami New Times. "Foi o lugar mais moderno que você poderia ver, e o mais bonito. Todos passaram por lá. Nat King Cole, Woody Herman, músicos e cantores de todo o mundo E eu era o tocador de piano.".
Ele preparara Cole para sua gravação em língua espanhola, o Cole en Español.
"Eu treinei ele em espanhol, quando eu fiz os arranjos para seu álbum", Valdés lembrou. "Ele era um grande cantor, mas era ainda melhor no piano."
Os músicos de jazz americanos que frequentemente tocavam no Tropicana e em outros locais de Havana inspiraram músicos cubanos que faziam suas próprias jam sessions, que eles batizaram de "Descargas".
"Um grupo de músicos se reunia todos os domingos na casa de alguém. Ficávamos juntos pra deixar sair as expressões que tínhamos lá dentro", disse Valdés.
1952, Verve Norman Granz recrutou Valdés para gravar a sessão do primeiro selo de jazz afro-cubano, em Cuba, e depois assinou com o pianista cubano um contrato de quatro anos. Valdés, dirigindo a sua orquestra chamada "Sabor de Cuba", desenvolveu um novo tipo de ritmo, chamado batanga, que pela primeira vez incorporara os sons sagrados da Bata, duas cabeças de tambores usados nos rituais da religião iorubá afro-cubana.
"A história do jazz latino é realmente uma história muito longa", disse Valdés em uma entrevista de 2005 comigo. "Tudo começou quando os europeus não trouxeram as mulheres brancas com eles para as Américas. Mulatos nasceram das escravas e a música européia se associadas com os ritmos africanos. [É] uma fusão de raças que criou todos os ritmos que temos hoje nas Américas -- desde o jazz americano à música cubana --. Em qual delas que você não vê uma conga no palco hoje ? O jazz latino é a mistura dessas coisas e ele é mantido em evolução de muitas maneiras diferentes. "
Logo após a vitória de Fidel Castro em 1959, Valdés preparava para sair, sentindo não havia lugar para ele na nova Cuba.
"Se você não estava junto com ela você estava fora", lembra ele. "Eu tive uma sessão de gravação em uma tarde, às 04hs. Eu já sabia o que ia acontecer e eu estava gravando material para levar comigo para o México. Um indivíduo entrou, ele disse que era da milícia ou algo assim. Ele tinha uma camisa vermelha, tinha dois caminhões e um ônibus estacionado do lado de fora da praça e o homem, "Sr. Barba", ia começar a falar. Eu disse, 'desculpe, eu tenho uma sessão de agora'. E ele disse: 'Não há nenhuma sessão de gravação, tudo está suspenso'. Eu disse, 'eu não vou para uma reunião agora, eu vou vê-lo em casa pela TV'. Ele disse, 'Você tem que ir, camarada'. Eu disse, 'Eu não sou seu camarada'. Ele disse: 'olha, você está no caminho errado. Se você não entrar naquele ônibus, você vai ter problemas'".
Bebo ficou fora do ônibus.

Link YouTube | Essa música mostra bem a gentileza do piano de Bebo, sempre abrindo espaço pros outros instrumentos, entrando sempre no momento certo, servindo de apoio

Em outubro de 1960, Valdés deixou a família para trás e foi para a Cidade do México com Rolando Laserie, um cantor e sua banda. Ao sair da ilha, ele deixou um legado musical com seus cinco filhos, que além de Chucho, incluem os cubanos Valdés Mayra Caridad (cantor de soul). Em uma turnê européia com meninos cubanos de Havana, ele conheceu sua futura esposa, Rose Marie Pehrso, quando a banda estava tocando em um parque em Estocolmo (eles se casaram e tiveram dois filhos). 
Valdés se tornou um cidadão sueco. Em 1990, quando ele ainda estava tocando no lounge do hotel, o saxofonista Paquito D'Rivera o procurou para gravar com Laserie, Lopez Israel "Cachao", Rivera D', e outros músicos que também saíram de Cuba ao longo dos anos. Em seguida, Chediak, diretor do Festival de Cinema de Miami, trabalhou com D'Rivera para organizar uma jam session que foi gravada para o álbum, Bebo Rides Again.
O filme do diretor espanhol Fernando Trueba posteriormente apresentou Valdés em seu documentário de jazz latino chamado Calle 54, em que ele se reencontrou com seu filho Chucho pela primeira vez desde que deixou Cuba. Valdés passou a gravar uma série de álbuns de sucesso internacional com Trueba e Chediak. Sua impressionante colaboração flamenco-cubana, em 2004, com o cantor espanhol Diego "El Cigala", "Lagrimas Negras", chegou ao número 2 das paradas de álbuns do Mundo e em 4º lugar na lista de álbuns latinos. Os CD/DVD Bebo de Cuba (2005) equivale a uma biografia musical de Valdés.
Sua música também foi destaque em filme de animação Chico & Rita, que foi vagamente baseado na vida de Valdés. O filme foi indicado ao Oscar em 2012.
Um documentário sobre Valdés, Old Man Bebo, fez o diretor Carlos Carcas receber o prêmio de Melhor Documentário no Festival de Cinema Tribeca de 2008.
"Ele está sempre preso aos seus princípios e ideias e uma das coisas mais importantes do filme é a forma como todas as a sua volta o amam", disse à Billboard Carcas no momento da estreia do filme. "Não importa onde ou quem eles eram, todos queriam falar sobre Bebo Valdés".
Seu último álbum de estúdio foi Bebo y Chucho Valdés: Juntos para siempre. O álbum, produzido por Trueba e Chediak e alcançou o No. 20 na lista de Álbuns Tradicionais e nº 38 na lista de álbuns de jazz da Billboard. Sobre o álbum, pai e filho, os dois gigantes em estatura e em música, tocaram clássicos do cânone cubano, incluindo composições escritas por Valdés.
"Como sua música eloquente mostra, ele amava Cuba até o fim", disse Chediak. "Cuba perdeu um de seus maiores músicos de todos os tempos".
Publicado na coluna da jornalista Judy Cantor, no site da Billboard

Link YouTube | Apresentação completa de Bebo Valdés e seu filho, Chucho Valdés, em 2008. Bebo aparece aos 46 minutos, mas vale a audição da pouco mais de uma hora. É fervor do começo ao fim

O legal de (re)descobrir esse pianista delicioso de ouvir é também caminhar pela história do jazz latino, do afrojazz, do jazz caliente de fazer suar, de escutar a ancestralidade dos atabaques com a finesse do piano, essa mistura que é sempre -- SEMPRE -- benéfica.

Obrigado, Bebo. Mesmo. Agradeço por perseverar, por espalhar a latinidade no jazz, a latinidade no mundo e, mesmo que tardiamente, sua obra foi muito reverenciada e continuará sendo.


publicado em 06 de Abril de 2013, 07:03
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Jader Pires

É escritor e colunista do Papo de Homem. Escreve, a cada quinze dias, a coluna Do Amor. Tem dois livros publicados, o livro Do Amor e o Ela Prefere as Uvas Verdes, além de escrever histórias de verdade no Cartas de Amor, em que ele escreve um conto exclusivo pra você.


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