“Essa sim, escreveu desde sempre. Essa nasceu escrevendo. Com dois anos de idade, ela ditava para a mãe o que devia ser escrito. E a mãe dela conta que a Ana ditava esses poemas pulando de um sofá para o outro e dizendo: tome nota disso!”
Diz Armando Freitas Filho, poeta e melhor amigo, em Bruta Aventura em Versos, documentário dirigido por Letícia Simões, que versa sobre a vida e obra da poeta.
Bem, o parto mesmo foi no dia 2 de junho de 1952, sob o signo de gêmeos e sua instabilidade, filha de Maria Luiza Cruz e de Waldo Aranha Lenz Cesar, sociólogo e jornalista, fundador da Editora Paz e Terra. Criou-se entre Niterói, Copacabana e os jardins do velho Bennet.
Escrever ou morrer
Aos oito, Ana aprendeu a escrita, e podia agora dissertar sozinha seus primeiros poemas. Criou, inclusive, a própria editora – Problemas Universais –, numa espécie de fantasia, sob a qual veiculava pequenos jornais para serem lidos por sua família.
Cresceu e foi pegar o diploma de um conhecimento que de alguma forma já era seu. Graduou-se em Letras na PUC-RJ em 75 e lá conheceu Heloísa Buarque de Hollanda, sua professora e grande incentivadora de sua verve poética. Estudou também na Universidade de Essex, na Inglaterra onde recebeu o título de Master of Arts (M.A.) em Theory and Practice of Literary Translation – teoria e prática da tradução literária –, que lhe possibilitou o trabalho de tradutora em seu regresso ao Brasil.
Apesar da precocidade poética, as primeiras publicações de Ana aconteceram no final da década de 70, na mídia marginal emergente da época. Cenas de Abril e Correspondência Completa foram seus primeiros livros a serem lançados contendo poemas como Sete Chaves, no qual Ana revela que sua inspiração irrompe de onde ela está – das ruas, festas e murmúrios, daquilo que ninguém diz, mas que ela é capaz de capturar. Confessa também que a matéria sobre a qual ela narra em versos é sua vida, confundida com a dos outros que a tocam ou que por ela passam, mas, sobretudo, sua vida.
Sete Chaves
Vamos tomar chá das cinco e eu te conto minha
grande história passional, que guardei a sete chaves,
e meu coração bate incompassado entre gaufrettes.
Conta mais essa história, me aconselhas como um
marechal do ar fazendo alegoria. Estou tocada pelo fogo.
Mais um roman à clé?
Eu nem respondo. Não sou dama nem mulher
moderna.
Nem te conheço.
Então:
É daqui que eu tiro versos, desta festa – com
arbítrio silencioso e origem que não confesso –
como quem apaga seus pecados de seda, seus três
monumentos pátrios, e passa o ponto e as luvas(Cenas de Abril)
Ana não costumava esconder nada: tudo aparecia ali, no papel, sobre o qual ela se debatia escrevendo sobre seus pecados e contemplações em versos, ou apelos e reflexões em cartas que dirigia aos seus amigos. De alguma forma, Ana encontrava um jeito de entregar suas correspondências. Suas mensagens nunca deixaram de ser enviadas.
Talvez a mais longa e importante delas tenha sido o seu último livro – À teus pés (1982), dedicado ao amigo Armando Freitas Filho, inspirado na paixão e fascínio que Ana sentia por ele.
Estamos em cima da hora.
Daydream.
Quem caça mais o olho um do outro?
Sou eu admito vitória.
Ela que mora conosco então nem se fala.
Caça, caça.
E faz passos pesados subindo a escada correndo.
Outra cena da minha vida.
Um amigo velho vive em táxis.
Dentro de um táxi é que ele me diz que quer
chorar mas não chora.
Não esqueço mais.
E a última, eu já te contei?
É assim.
Estamos parados.
Você lê sem parar, eu ouço uma canção.
Agora estamos em movimento.
Atravessando a grande ponte olhando o grande
rio e os três barcos colados imóveis no meio.
Você anda um pouco na frente.
Penso que sou mais nova do que sou. Bem nova.
Estamos deitados.
Você acorda correndo.
Sonhei outra vez com a mesma coisa.
Estamos pensando.
Na mesma ordem de coisas.
Não, não na mesma ordem de coisas.
É domingo de manhã (não é dia útil às três da
tarde).
Quando a memória está útil.
Usa.
Agora é a sua vez.
Do you believe in love…?
Então está.
Não insisto mais.(trecho de A Teus Pés)
Ana encontrou em Armando um grande amigo. O melhor. Mas ela esperava mais. Esperava o amor, que não foi condizente, quiçá por puro pudor ou constrangimento de Armando, que sempre alegava a diferença de idade entre os dois. Assim, 12 anos os separaram inalteravelmente. Armando não acreditou e Ana deixou de insistir em romance.
Para além da janela do oitavo andar
Copacabana. 1983, dia 29 de outubro. Depois de viver 31 anos como poeta, Ana Cristina César pulou da janela do oitavo andar do Edifício Tonelero, onde moravam seus pais. Partiu. Ninguém soube ao certo o porquê. Mas Ana caiu, voou, foi versar em outro lugar.
Seu acervo pessoal foi doado pelos seus pais ao Instituto Moreira Salles sob a promessa de que seus escritos permaneceriam no Rio de Janeiro. Suas publicações, por vontade da própria poeta, estão aos cuidados do grande amigo, Armando Freitas Filho, o qual, juntamente com Heloísa Buarque de Hollanda, outra grande amiga de Ana, estiveram na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) de 2016 para uma homenagem à Ana Cristina.
Passados 37 anos da morte da escritora, no evneto, Armando e Heloísa interpretaram Gil e Mary, personagens fictícios de Correspondência Completa (1979). Além disso, Heloísa sentou à mesa de debates com o americano Benjamim Moser, biógrafo de Clarice Lispector, para discutir a relação entre as duas escritoras. Ela conta que Ana era obcecada por Clarice: “Ana ficava sentada na porta do prédio de Clarice durante horas. Era uma coisa de fã da Beyoncé.”
Durante a festa literária também foi realizado o relançamento da obra Correspondência Incompleta, publicada por Ana e Armando em 1999, agora numa versão digital e expandida, com conteúdo multimídia, como dois áudios novos de Ana: uma entrevista desconhecida a um programa de rádio e uma palestra inédita. Houve também o lançamento de uma fotobiografia de Ana, intitulada Inconfissões e composta de imagens e documentos inéditos cedidos pelo Instituto Moreira Salles.
Ademais isso, Ana foi assunto de um debate entre três jovens poetas brasileiras: Laura Liuzzi, Annita Costa Malufe e Marília Garcia. Sentaram em círculo essas mulheres para debater a questão de gênero na literatura.
Heloísa diz que: “Ana era feminista e sempre foi muito preocupada com a questão do gênero na literatura. Além disso, era uma recém-chegada, nova no cânone. Jovem e mulher: tudo que a crítica literária da academia não costuma gostar.”
Para além do oitavo andar, Ana continua a nos representar como gênero e com sua poesia. Ela, que conversou tão intimamente conosco, fazendo confissões cristalinas e declarações precisas que poderiam ser minhas ou suas.
Atrás dos olhos das meninas sérias
Aviso que vou virando um avião. Cigana do horário
nobre do adultério. Separatista protestante.
Melindrosa basca com fissura da verdade. Me
entenda faz favor: minha franqueza era meu fraco, o
primeiro side-car anfíbio nos classificados de
aluguel. No flanco do motor vinha um anjo
encouraçado, Charlie’s Angel rumando a toda para
o Lagos, Seven Year Itch, mato sem cachorro. Pulo
para fora (mas meu salto engancha no pedaço de
pedal?), não me afogo mais, não abano o rabo nem
rebolo sem gás de decolagem. Não olho para trás.
Aviso e profetizo com minha bola de cristais que vê
novela de verdade e meu manto azul dourado mais
pesado do que o ar. Não olho para trás e sai da
frente que essa é uma rasante: garras afiadas, e
pernalta.(trecho de A teus pés)
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