Aventura vintage: tentativa desesperada de atravessar o oceano Antártico em um barco salva-vidas

Uma revista muito boa de se acompanhar é a Go Outside, que fala sobre esportes radicais, aventuras e viagem. Nessa última semana que passou, li isso aqui:

BRECHÓ: Tim Jarvis na Antártida durante uma expedição de 2007 que refez a aventura de sir Douglas Mawson, incluindo equipamentos e roupas de época (Foto: Malcolm Mcdonald)

Obsessão vintage

EM 1916, O EXPLORADOR BRITÂNICO Ernest Shackleton liderou cinco homens em uma tentativa desesperada de atravessar o oceano Antártico em um barco salva-vidas, após ficar encalhado na remota ilha Elefante, na Antártica. Foram precisos 17 dias para chegar à ilha de Geórgia do Sul, a cerca de 1.300 quilômetros a nordeste. Depois disso, ainda tiveram que caminhar um dia e meio pelos glaciares, sem descanso, até uma estação de baleeiros, de onde Shackleton acabaria organizando uma operação bem-sucedida de resgate do resto de seus homens. Trata-se de uma das maiores histórias épicas de sobrevivência, e sem dúvida não é o tipo de viagem que alguém iria querer repetir. Até agora, pelo menos.
Neste mês, o australiano Tim Jarvis, de 46 anos, e uma equipe de cinco pessoas tentará reconstituir a lendária jornada de Shackleton, usando uma réplica de seu barco salva-vidas de 22,5 pés, o James Caird. Levarão com eles apenas sextantes e cronômetros, usarão roupas polares da época, feitas de lã e pele, e se alimentarão de biscoitos e pemmican (um tipo de barrinha energética “vintage” de gordura e proteína).

De primeira, achei o máximo. Homens tentando superar seus limites numa aventura pesada. Algo que requer uma cabeça boa, uma baita preparação física e notórios conhecimentos de sobrevivência e, claro, história (para fazer tudo nos mesmos moldes do ocorrido real).

Mas aí comecei a pensar: por que será que vamos atrás de algo passado quase que em detrimento do nosso momento atual, provavelmente o nosso ápice tecnológico?

Claro que tem a aventura envolvida, que utilizar os presentes da modernidade para fazer tal percurso não renderia metade das situações que justamente apontariam para uma aventura. Mas por quê? Essa tal onda vintage, de utilizar coisas antigas nos dias de hoje, a nostalgia que adentrou profunda no inconsciente coletivo, no imaginário da massa.

Poderíamos abrir a discussão para outros campos, como o cinema do Tarantino que insiste em negar a captura digital de imagens, ou das pessoas que veem vantagem nos amplificadores valvulados ou na presença sonora do vinil. Mas atentemos ao lado da aventura, do risco de programar uma jornada da mesma forma que se fazia no começo do século passado, simplesmente pra sentir na pele o perrengue que a humanidade tinha e as facilidade que temos hoje. Espero que seja isso.

Tim Jarvis e sua equipe, numa réplica exata do barco de Douglas Mawson (Foto: CNN)

Não veja demérito algum na empreitada dos aventureiros modernos. Não estou vendo com olhos julgadores, mas sim curiosos em entender.

Mais um pouco da matéria da Go:

O australiano não é o primeiro a tentar seguir os heroicos passos de Shackleton. Em 1997, uma equipe irlandesa tentou reproduzir a viagem de James Caird, mas desistiu depois de o barco virar três vezes em menos de 24 horas. Alguns anos depois, os alpinistas Conrad Anker, Reinhold Messner e Stephen Venables retraçaram o caminho de Shackleton na ilha de Geórgia do Sul para um filme.
Desde então, a travessia de 35 quilômetros se tornou um roteiro de alto nível (embora raramente procurado) de operadoras de viagens de aventura. O veterano guia antártico Dave Hahn, que liderou cinco grupos pela rota terrestre, já viu outras pessoas tentarem fazer isso usando roupas de época, e desistirem.

Não é um caso isolado, mas uma necessidade humana de sentir algo mais que a própria vida. É uma precisão (sim, no mesmo sentido da frase célebre do Fernando Pessoa) dos dias de hoje, em que não temos mais a preocupação (de novo, não precisamos entrar em um desvio de discussão sobre a fome mundial e todos os perrengues que a sociedade atual passa) de sobreviver. Com isso, atacamos essa palidez do nosso percurso como humanos e rumamos ao viço de tudo, a cerne do que somos: sobreviventes em potencial.

Há também, com alta probabilidade, um respeito guardado entre todos os que ultrapassam a linha da nossa modernidade pra se arriscar "em tempos de outrora", afinal, se estamos por aqui, gozando de todas as mazelas tecnológicas que produzem todo tipo de conforto, é porque aqueles caras - enfim - sobreviveram. Logo, se eu quero aproveitar essa tranquilidade, tenho que, antes, passar por um mínimo do que eles passaram.

Eles eram sobreviventes. Nós somos loucos. E todas as graças de entender que um adjetivo não invalida o outro.


publicado em 18 de Fevereiro de 2013, 09:00
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Jader Pires

É escritor e colunista do Papo de Homem. Escreve, a cada quinze dias, a coluna Do Amor. Tem dois livros publicados, o livro Do Amor e o Ela Prefere as Uvas Verdes, além de escrever histórias de verdade no Cartas de Amor, em que ele escreve um conto exclusivo pra você.


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