Atletas devem ou não ter o direito de se manifestar livremente?

Afinal, os Jogos Olímpicos são ou não são um evento político? E os atletas, protagonistas, podem ou não podem se manifestar a respeito?

O Rio de Janeiro começa a receber delegações de atletas do mundo inteiro para a realização da 31ª edição dos Jogos Olímpicos da Era Moderna. E enquanto seguimos correndo pra colocar a casa em ordem, já começamos a viver a expectativa de ver a história acontecendo com os nossos próprios olhos, bem de baixo do nosso nariz – se é que isso é anatomicamente possível.

Fãs de esporte do mundo inteiro começam a voltar as atenções para o local que pode ser palco de mais um recorde de Michael Phelps, de mais uma vitória de Usain Bolt ou da possível inédita medalha de ouro do futebol brasileiro. Mas para além das previsões, certamente o que vai impressionar são os imprevistos. E não estou falando de obras inacabadas ou falhas de segurança, mas das surpresas que o esporte e esse megaevento podem proporcionar.

Dentre esses imprevistos, é muito provável que, diante do cenário geopolítico efervescente – pra dizer o mínimo – do qual estamos diante, alguns atletas se aproveitem da exposição midiática global para fazer manifestações diversas e acabar expondo questões delicadas que muita gente preferiria ignorar. Exemplos que podem nos conduzir a essa conclusão não faltam.

Manifestações olímpicas

O caso mais famoso talvez seja o de Tommie Smith e John Carlos no histórico gesto em defesa dos direitos civis dos negros. Na olimpíada de 1968, na Cidade do México, os dois afro-americanos aproveitaram o êxito esportivo que obtiveram nos 200 metros rasos para se manifestar silenciosamente contra a discriminação racial que sofriam nos Estados Unidos.

Manifestação black power era alusão ao grupo político Panteras Negras.

Como resposta, ambos foram convidados a pegar suas medalhas e demais pertences e se retirar da Vila Olímpica, além de serem suspensos da delegação americana. Décadas depois, a despeito do registro histórico que ambos protagonizaram, a questão racial nos Estados Unidos continua em pauta e um novo protesto dessa ordem não está fora de cogitação.

Naturalmente, antes e depois do exemplar mais famoso, outros protestos por parte dos atletas se sucederam. Questões raciais, étnicas, religiosas, territoriais e políticas foram expostas aqui e ali em diversas competições internacionais de grande visibilidade e, como qualquer manifestação, estas agradaram a uns e contrariaram outros.

Entretanto, com o passar dos anos, o cerco foi se fechando para os rebeldes. No papel, a determinação do Comitê Olímpico Internacional parece bastante simples. Segundo o artigo 50 de seu Regulamento:

"Nenhum tipo de manifestação ou propaganda política, religiosa ou racial é permitida nos locais olímpicos ou em outras áreas."

Quando se trata da cerimônia de entrega de medalhas, as regras são ainda mais rígidas. Para o COI, o pódio é considerado um lugar sagrado que não pode ser palco de qualquer manifestação, seja ela política, falta de espírito esportivo ou comercial. Nenhum atleta que sobe ao pódio pode exibir, por exemplo, marcas de qualquer patrocinador que não seja a empresa de material esportivo de sua delegação.

A determinação faz parte de uma campanha global deflagrada silenciosamente em favor da não-manifestação política dos atletas e diz respeito exclusivamente aos Jogos Olímpicos e outras competições regidas por Federações e Confederações filiadas ao COI. Mas, pouco a pouco, tal regra passou a fazer parte do manual subliminar de boas práticas dos atletas: se você pretende fazer parte de uma seleção e se tornar um representante do país, espera-se que você se abstenha de manifestar qualquer opinião política publicamente.

Na prática, porém, nem todos os atletas parecem satisfeitos em abdicar de suas opiniões pessoais para, supostamente, ser um representante do povo. No caso mais recente do qual tomei conhecimento, a nadadora Joana Maranhão – que estará no Rio – divulgou um vídeo onde se mostra contrária à redução da maioridade penal e afirma, inclusive, que não representa parte dos brasileiros. No caso, brasileiros que apoiam os parlamentares Eduardo Cunha, Jair Bolsonaro, Marco Feliciano e Silas Malafaia.

Link Youtube - Joana Maranhão se manifesta contra a redução da maioridade penal. 

Plataforma política

Porém, se atletas estão impedidos de utilizar a plataforma midiática global dos Jogos Olímpicos para manifestar qualquer opinião política pessoal sob pena de sofrer sanções disciplinares, o mesmo não se pode dizer dos países que os mesmos representam. Pelo contrário. Como sabemos, há muito as Olimpíadas deixaram de ser apenas um evento esportivo para se tornar plataforma política de uma nação para o resto do mundo. Os Jogos Olímpicos são, na prática, um prato cheio para o que chamamos de propaganda ideológica.

Podemos citar exemplos históricos como o da Alemanha Nazista de Adolf Hitler que utilizou os jogos de Berlim em 1936 para propagandear o regime e sofreu até ameaças de boicote por parte de dezenas de delegações. Mas nem precisamos ir tão longe. Atenas 2004, Pequim 2008 e o próprio Rio 2016 já são suficientes para afirmar: esporte e política andam juntos e são íntimos um do outro.

Ao contrário do que acontece na esfera individual, quando os atletas devem se manter bastante discretos, nessa esfera tal relação não é velada. O próprio prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, chegou a dar declarações nas quais afirmava que "a realização das Olimpíadas em 2016 é uma oportunidade de provar ao mundo que o Brasil é um país que inova e cumpre com seus compromissos". Mais recentemente, porém, o mesmo prefeito disse já ter sido uma "oportunidade perdida", mas ainda ressaltou a preocupação perante "os olhos do mundo":

"Esta é uma oportunidade perdida. Não estamos nos apresentando bem. Com todas essas crises econômicas e políticas, com todos esses escândalos, não é o melhor momento para estar nos olhos do mundo. Isso é ruim."

Eduardo Paes - prefeito do Rio de Janeiro

Fica claro portanto que os Jogos Olímpicos não estão dissociados da política e das posições pessoais. Pelo contrário, se políticos e dirigentes têm liberdade para se manifestar livremente, atletas não.

Contradições

Mas a questão fica ainda mais complexa quando nos damos conta de que mesmo na esfera individual alguns gestos já foram 'perdoados' enquanto outros não. Quando na ocasião dos Jogos Pan-Americanos de Toronto em 2015, dezenas de atletas brasileiros bateram continência ao subirem no pódio e verem a bandeira verde e amarela hasteada.

Judô e natação foram os esportes onde as aparições foram mais frequentes.

Tal ato se deve ao fato de cerca de 600 atletas brasileiros terem patente militar. Resultado de uma parceria entre o Ministério da Defesa e do Esporte, iniciada em 2010. Especificamente no Pan, foram 123 militares integrantes da delegação.

Divididos entre Aeronáutica (188), Exército (200) e Marinha (222), esses atletas recebem salários de aproximadamente R$ 4 mil e também contam com outros direitos trabalhistas como planos de saúde e odontológico. Além disso, todos eles passaram por um processo de iniciação que dura cerca de um mês onde aprenderam que independente de estarem fardados ou não, deveriam prestar continência à bandeira e ao hino nacional.

Subordinados ao Comitê Olímpico Internacional, os Jogos Pan-Americanos e o Comitê Olímpico Brasileiro poderiam ter seguido a mesma regra de outras ocasiões e aplicado uma punição aos atletas, mas desta vez o gesto foi visto como sinal de patriotismo.

"Dentro do procedimento militar a continência é obrigatória no hino e no hasteamento da bandeira. Não é uma exigência, existe uma recomendação para isso. Não é um ato político, é uma homenagem à bandeira e ao hino do país. O COB não vê problema nisso e apoia cem por cento."

Marcus Vinicius Freire - superintendente do COB

O caso, porém, se tornou mais polêmico quando atletas como a judoca Mayra Aguiar, medalha de prata em Toronto, revelaram que o gesto foi sim um pedido explícito das Forças Armadas.

"Não vou mentir, eles pediram. Mas é uma coisa nossa, a gente fez um mês de iniciação lá, aprendeu muita coisa e pegou o espírito do militarismo."

Mayra Aguiar - judoca brasileira

Tantas indas e vindas nos fazem questionar: é possível exigir dos atletas que separem suas opiniões pessoais da sua atuação profissional? Se possível, é justo e razoável?

Às vésperas do maior evento esportivo do mundo, antes de sabermos se as manifestações serão a favor ou contra nossas próprias opiniões, que tal refletir a respeito e aplicar uma regra igual para todos? 


publicado em 28 de Julho de 2016, 20:39
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Breno França

Editor do PapodeHomem, é formado em jornalismo pela ECA-USP onde administrou a Jornalismo Júnior, organizou campeonatos da ECAtlética e presidiu o JUCA. Siga ele no Facebook e comente Brenão.


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