Vamos buscando a emoção
que não podemos encontrar
neste tédio sempre igual
que nos envolve o coração.
– trecho de “A Emoção Fugitiva“, de Pablo Neruda
Reza a lenda que há séculos e séculos, no auge do império Inca em território chileno, a fúria dos deuses caiu impiedosa sobre eles. O temível espírito do vulcão Licancabur rugiu, lambendo povoados inteiros com sua lava escaldante.
Para apaziguar sua ira, os nativos subiram os seis mil metros de sua extensão, carregando incontáveis pedras e presentes em suas costas. Chegando ao topo, rezaram.
Diante disso, o vulcão lhes concedeu tranquilidade.
Até hoje, os descendentes desses nativos prestam reverência a Licancabur, mantendo oferendas em seu pico.
* * *
Colocar os pés no Deserto de Atacama é paz.
A mais árida região do planeta se comunica pelo silêncio.
Suspeita-se que os únicos pedaços de chão sem qualquer traço de vida estejam por lá, nos entornos da mina abandonda de Yungay. O terceiro maior salar do mundo é lá, também. Três mil quilômetros quadrados de horizonte sem fim, com lhamas perdidas e flamingos róseos se alimentando em lagoas de enxofre. Uma gigantesca mão esculpida pelo artista e filósofo chileno Mario Irarrázabal emerge da areia, o deserto está vivo.
A paisagem extrema é estranhamente acolhedora. Sem nada ou ninguém em volta, não há porque posar.
É mais fácil me sentir confortável em minha própria pele, e pequeneza, tendo bilhões de anos em terras sedimentadas à volta. Quase como se estivesse no colo de um tataravô distante, bastante calejado por algumas diferentes eras geológicas, dinossauros e até um ou outro ET.
Dá alguma inveja das tribos atacameñas e suas pucarás, fortificações dos tempos pré-hispânicas nas quais habitavam. Ainda que lutassem para seguir vivos em meio aos inóspitos Valle de La Luna e Vale da Morte – locais nos quais a NASA hoje realiza testes de seus robôs interplanetários –, gosto de pensar que eram felizes em sua solitude.
Tinham o céu mais estrelado que se pode ver só para eles.
Pois esse é um dos locais menos iluminados do mundo, e por tal qualidade escolhido para hospedar o observatório internacional ALMA (Atacama Large Millimeter/Submillimeter Array), composto por 66 antenas móveis localizadas no Llano de Chajnantor.
Aventureiros e aventureiras cruzam oceanos para chegar até aqui e olhar para cima.
É fascinante.
Mas em sua aridez escancarada, o deserto facilita mesmo é olhar para baixo, para dentro de nossa própria tristeza. Afinal, ele está lá desde muito antes e vai seguir por muito mais. Difícil se achar grande coisa.
Na última madrugada antes de voltar a São Paulo, me deito na gelada espreguiçadeira do hotel Kunza, debaixo de muito céu, estrelas e silêncio.
Fica fácil entender a reverência dos nativos diante do vulcão Licancabur e todo o resto. Me despeço com vontade de retornar.
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Comecei a redigir esse texto ainda no Chile, semana passada. A rápida viagem de três dias foi feita a convite da Ford, para conhecer sua nova linha de caminhões Cargo Extra-Pesados. Compartilho agora outras fotos:
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