As prostitutas e o direito de existir

A prostituição existe há muito tempo. Mesmo estigmatizada, discriminada e isolada, ela continua existindo e vai continuar a existir.

O projeto de lei que visa regulamentar a atividade vem encontrando apoio e oposição em vários setores da sociedade organizada. É um projeto bastante inteligente, conectado à realidade.

Um dos pontos mais importantes em seu texto é a legalização das boates, clínicas e casas de prostituição, estipulando inclusive valores percentuais para determinar o que se pode considerar "exploração" e o que seria lucro aceitável a uma empresa destinada à diversão adulta e à comercialização de serviços sexuais.

Campanha irlandesa contra a segregação às prostitutas: "Escolho o emprego que melhor se adequa às minhas necessidades".
Campanha irlandesa contra a segregação às prostitutas: "Escolho o emprego que melhor se adequa às minhas necessidades".

Seus maiores opositores, além dos tradicionais grupos religiosos de matizes variados, devem ser justamente os donos dos bordéis e afins.

Incrivelmente, algumas pessoas reagem como se o projeto "criasse uma nova profissão", e não simplesmente regulamentasse o que já temos por aí, funcionando dia e noite à revelia da lei. Uma situação, inclusive, que que coloca o profissional em posição de vulnerabilidade e segregação, sem ter como fazer valer seus direitos.

O projeto praticamente não afeta em nada a vida das chamadas "acompanhantes de luxo" (luxo, aliás, é um termo até irônico quando aplicado ao ramo) que atuam de modo independente através de sites e comunidades na Internet, ou mesmo em casas mais conceituadas, que não costumam receber remuneração direta sobre o valor cobrado pela profissional.

Entretanto, o projeto é de grande importância para proteger as prostitutas em situação de maior vulnerabilidade social. Deixar a profissão não-regulamentada só favorece a existência de prostíbulos baratos e insalubres, só estimula o trabalho da máfias, o tráfico humano, a escravidão. Lembremos que trabalho escravo não é inerente apenas à prostituição: há mão-de-obra escrava farta na indústria da construção civil, do vestuário, da mineração. E a situação do trabalhador doméstico nos pontos mais longínquos do país, como anda?

"Profissionais do Sexo: Documento Referencial para Ações de Prevenção das DST e da Aids", pioneira cartilha elaborada pelo Ministério da Saúde em 2002.
"Profissionais do Sexo: Documento Referencial para Ações de Prevenção das DST e da Aids", pioneira cartilha elaborada pelo Ministério da Saúde em 2002.

Os efeitos positivos da regulamentação talvez não sejam visíveis a curto prazo. O projeto de lei não é perfeito e tem suas falhas. Por exemplo, não ficou claro para mim como se daria a cobrança pelo serviço em caso de não pagamento pelo cliente: haveria um contrato escrito entre as partes? E do que consistiria o trabalho "em cooperativa" proposto? O texto precisa ser melhor estudado, aperfeiçoado, ajustado à diversidade de situações regionais. Mas é um puta avanço, com o perdão do trocadilho, babaca e quase inevitável.

Lembremos sempre: todos nós, quando “decidimos” trabalhar, o fazemos pela necessidade de nos sustentarmos, e aos nossos. Não importa em qual área trabalhamos, nós sempre o fazemos pela grana – e, quem sabe, por alguma satisfação pessoal. Nas relações que regem nossa sociedade, a exploração é a regra, não a exceção. Leis, regras, fiscalização são as soluções que encontramos para amenizar o problema.

Feliz é aquele que trabalha no que gosta. Assim é com o profissional do sexo também. A prostituição é, sim, um trabalho como outro qualquer, porém com suas peculiaridades. Manter a profissão à sombra da legalidade, negando direitos e regulamentação, só contribui pra que se trabalhe em um ambiente de violência, exploração, segregação. Além do mais, já passou da hora de sermos vistas – nós, meretrizes – como cidadãs responsáveis por nossas escolhas e donas de nossas vidas.

Muitos movimentos nos tratam como seres incapazes de escolher nossos caminhos, vítimas de um trabalho que nos oprime, ignorantes sobre o mundo que nos cerca.

Mas o que verdadeiramente nos oprime é estar à margem, é o trabalho mal pago, é a invisibilidade forçada, é o vitimismo imposto, aliado a uma romântica compreensão de que sexo é algo pelo qual não se pode cobrar sem uma vaga sensação de erro, de pecado, de culpa.

Legalize, regulamente, cuide.
Legalize, regulamente, cuide.

Nós, meretrizes, somos donas e senhoras de nossos corpos mesmo durante o período de trabalho. Alugar seu tempo não é equivalente a alugar ou vender seu corpo, como pensam tanto(as). Quem contrata os serviços de uma prostituta não tem direito ao abuso ou à violência.

Alguns, talvez com boa intenção mas desconhecendo a realidade, dizem que é uma atividade "indigna" e, portanto, não passível de direitos.

Mas dignidade é liberdade.

Libertar o profissional do sexo é deixá-lo exercer seu ofício de modo digno e ter seus direitos de trabalhador respeitados.

Exigir que um profissional abandone seu trabalho não o liberta de nada. É, sim, interferir vergonhosa e autoritariamente na vida de pessoas adultas e com condições de decidir.

Eu, como você.


publicado em 10 de Fevereiro de 2013, 22:19
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Monique Prada

Porto-alegrense, blogueira, tuiteira e ativista de sofá. Ou de cama, se assim preferirem.


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