As estratégias oblíquas na prática

Um esquema simples para destravar procedimentos engessados e ativar a criatividade


As Estratégias Oblíquas (subtítulo: Mais de Cem Dilemas Valiosos) é um baralho de cartas impressas de 7 cm por 9 cm numa caixa preta, criadas por Brian Eno e Peter Schmit e primeiro publicadas em 1975. Cada carta oferece um aforismo direcionado para ajudar artistas (músicos em particular) a romper bloqueios criativos encorajando o pensamento lateral (Fonte: Wikipedia)

Sugeri a tradução deste texto, originalmente publicado no blog The Cross-Eyed Pianist, ao PapodeHomem lembrando que um de meus professores na filosofia utilizava esse método na construção de seus artigos e outras atividades filosóficas.

Elas foram dirigidas para a composição e produção de música, mas podem ser úteis em qualquer outro empreendimento humano em que se depare com bloqueios criativos. 

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No início da semana ouvi um programa interessante da BBC Radio 4 em que o poeta Simon Armitage se propunha a descobrir mais sobre a origem e utilização das cartas de Estratégias Oblíquas. O emprego mais famoso das cartas ocorreu quando Brian Eno gravava os três discos berlinenses de David Bowie Low, “Heroes” e Lodger nos anos 1970. No programa de rádio, Simon conversou com Carlos Alomar (guitarrista nestes discos de Bowie), o jornalista de música Paul Morley e o chef Ian Knauer, que usam estas cartas, e durante o curso das entrevistas com várias outras pessoas criativas, se tornou claro que esses breves aforismos gnômicos, selecionados aleatoriamente, são capazes de provocar formas de pensar novas ou inesperadas perante problemas e dificuldades renitentes, e não apenas aqueles encontrados durante os processos criativos, tais como escrever, compor ou pintar/fazer arte, mas também na vida cotidiana.

Também me impressionou, enquanto ouvia o programa de rádio, que as cartas das Estratégias Oblíquas podem ser utilizadas para revigorar ou jogar uma luz sobre uma questão que pode estar causando problemas no estudo, ou ajudar a pensar e agir mais criativamente durante o treinamento musical. É amplamente reconhecido que se nossa prática se torna monótona, sem reflexão ou criatividade e tediosa, ela não será produtiva.

Separei algumas Estratégias Oblíquas e considerei como podem ser utilizadas na prática diária, bem como na preparação para apresentações. Aqui trago algumas de minhas próprias respostas para as cartas, como simples sugestões, e talvez inspiração para outras pessoas tentarem esse método.

‘A repetição é uma forma de mudança.’

Todos nós sabemos que a prática repetitiva é a atividade que fixa a música na cabeça, nas mãos, nos olhos e ouvidos. A repetição é o que treina a memória muscular (o que os psicólogos chamam de “memória procedural”, já que na verdade nossos músculos não possuem memória de movimento). Mas praticar a mesma frase ou seção vez após vez, 20, 50, ou talvez 100 vezes, pode se tornar insatisfatório ou tedioso. Portanto, é preciso fazer cada repetição valer: ouvir, olhar, pensar, considerar cuidadosamente, de forma que cada repetição tenha seu valor.

‘Que erros foram cometidos na última ocasião?’

Um aforismo óbvio e útil. Nunca ignore os erros: considere porque ocorreram e como podem ser solucionados. Veja-os positivamente – sempre podemos aprender com eles – e tome atitudes para que não ocorram novamente.

‘Observe a ordem que usa para fazer as coisas.’

Que sugestão excelente! Se as sessões de prática estão sempre seguindo o mesmo padrão – aquecimento com escalas e exercícios, por exemplo, antes de trabalhar com peças musicais – tente misturar as coisas um pouco. Quem sabe fazer alguns exercícios longe do instrumento enquanto contempla-se o que se precisa trabalhar mais, e então tentar um estudo rápido ou uma leitura a primeira vista?

‘Ouça a voz mais baixa.’

Tirar um tempo para ouvir cuidadosamente e tocar num volume mais baixo (e devagar) é um elemento importante da prática, muitas vezes esquecido pelos mais jovens (e também pelos mais experientes) que desejam tocar com a exuberância da juventude, ou que querem passar pela sessão de prática o mais rápido possível. Quando tocamos mais baixo e vagarosamente, nos permitimos mais tempo para considerar a música: olhar para os detalhes, e as diversas “vozes” e linhas de melodia. Quem sabe uma “voz mais baixa” na mão esquerda não tenha recebido a atenção devida? Tente destaca-la e ver que efeito produz.

‘Não é preciso se envergonhar de usar as próprias ideias.’

Não confie sempre no professor para guiá-lo em aspectos de técnica, interpretação e musicalidade. Confie em seus instintos e seja corajoso, aprenda ao ouvir e observar os outros, tanto ao vivo quanto em gravações. Faça seus próprios juízos. Um bom professor guiará e aconselhará, e também oferecerá sugestões se algo que você está fazendo é “de mau gosto” ou não se adequa ao gênero ou caráter da música em questão.

‘Use pessoas “sem qualificação”’

Isto está ligado ao cartão anterior. Pedir que não-especialistas e os que possuem pouco conhecimento musical ouçam você pode ser uma experiência útil e agradável. Ouça seus comentários. Enquanto músico não é saudável ficar isolado numa torre de marfim.

‘Vire de cabeça para baixo’

Meu pai costumava fazer isso quando praticava. Ele era um ótimo clarinetista amador que tocava numa orquestra em Birmingham nos 1970, então dirigida por um oboísta experiente da CBSO. Virar a música de cabeça para baixo era uma prática comum nos ensaios orquestrais para quebrar a monotonia e adicionar uma perspectiva diferente a uma música familiar. Não é tão fácil para um pianista, mas é um exercício divertido. Também é possível experimentar praticar todas as partes com cada mão, ou usar inversões simétricas, ou transpor para outra escala (deixa o cérebro alerta!).

'Há seções? Considere fazer transições.'

A música é construída de uma “arquitetura” clara, e geralmente se coloca em seções definidas. Tentamos, porque é assim que se faz, aprender parte por parte, e isso pode levar a coisa toda a soar desconjuntada, ainda que façamos o nosso melhor para manter um senso de fluidez ao longo de toda a peça. Portanto, separe um tempo para considerar as pontes e transições entre as seções: pratique os fins e inícios de seções e pense como as diferentes seções se relacionam umas com as outras, ou oferecem contrastes.

‘Use menos notas.’

Não é algo que deve ser tomado literalmente, já que devemos sempre ser fiéis à partitura, mas algumas vezes podemos tocar de um jeito que parece realmente muito “cheio”. Experimente formas diversas de ataque e dinâmica, considere os sons e o fraseamento.

‘Faça uma ação repentina, destrutiva e imprevisível; incorpore isso.’

Se você é alguém que gosta de improvisação, isso vai soar legal para você. E mesmo caso você não seja um improvisador nato, porque não tentar incorporar alguma improvisação na sua dieta? E mesmo dentro do âmbito um tanto estrito da prática séria, devemos seguir o inesperado e ver onde ele leva...

‘Converta um elemento melódico num elemento rítmico.’

Outro impulso improvisatório que pode ser incorporado na prática diária. Quem sabe aquela melodia não fica melhor se adicionamos certa vitalidade rítmica a ela?

‘Defina uma área como ‘segura’ e a use como âncora.’

Aqui temos uma que ajuda com relação à ansiedade da apresentação. Lembre a última vez que você tocou aquela música ou outras músicas e lembre os sentimentos positivos associados com essa execução. Tente recriar esses sentimentos em sua mente, e em seu corpo, enquanto se prepara para a próxima apresentação. Em vez de focar nos muitos “e se isso ou aquilo”, ou permitir que pensamentos negativos assolem a mente, ancore sua atenção nos elementos positivos obtidos em performances anteriores.

E outras favoritas minhas, sem nenhuma razão particular:

  • ‘Não altere mais nada e continue com consistência imaculada.’
  • ‘Faça uma lista completa de todas as coisas que você poderia fazer, e faça a última coisa na lista.’
  • ‘Imagine a música como uma corrente ou lagarta em movimento.’
  • ‘O que seu amigo mais chegado faria?’

Há vários geradores de Estratégias Oblíquas online, aplicativos para smartphone, e até mesmo algumas contas de twitter, e claro é possível adquirir os cartões no seu formato tradicional.

Obrigado pela leitura: vou lá que tenho que lavar a louça.


publicado em 28 de Fevereiro de 2015, 13:39
File

Eduardo Pinheiro

Diletante extraordinário, ganha a vida como tradutor e professor de inglês. É, quando possível, músico, programador e praticante budista. Amante do debate, se interessa especialmente por linguística, filosofia da mente, teoria do humor, economia da atenção, linguagem indireta, ficção científica e cripto-anarquia. Parte de sua produção pode ser encontrada em tzal.org.


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