Artesanal vs Industrial: quando dois universos aparentemente opostos se unem

Entre pessoas, máquinas e escalas de produção

Antes, eu encarava o artesanato como algo hippie, um cara sentado na avenida Paulista trançando couro para vender pulseirinhas. Depois, comecei a achar que as senhoras que trabalham rendando, costurando, desenhando, eram as verdadeiras artesanais.

Por um período, vi que uma pequena fábrica de cerâmica, no seu pequeno galpão, fazia um trabalho considerado artesanal. Até que, pouco tempo atrás, eu trabalhei em uma fábrica de cervejas, com produção que atende demanda nacional e tinham tanques de inox que eram maiores do que eu. E, surpreendentemente, foi lá que senti o que era artesanal.

Como deu pra perceber, nem sempre a linha que separa o produto industrial do artesanal fica bem clara. Às vezes, a gente não entende bem o que faz um ser melhor do que outro em uma determinada coisa. Quando está tudo ali, embaladinho, o que a gente vê é só o resultado.

Mas há todo um chão até chegar no produto final que faz com que valha muito a pena considerar um e não outro em diferentes situações.

Pense aí rapidamente e responda. Qual é a bebida gasosa mais vendida no mundo? Se você sem titubear respondeu Coca-cola, você deu um palpite “industrial” e certeiro.

Entende como nós estamos acostumados com o usual, aquilo que quando nascemos já estava lá? Pensamos como a massa. E vivemos como massa durante muito tempo. É por isso que fica difícil mensurar o que faz um produto artesanal. O industrial está lá, em qualquer prateleira. O artesanal, nem sempre. Em especial, se você vive em uma grande cidade.

Quando falamos de pequenos produtores, o pensamento artesanal é que dá valor ao produto e, de um modo geral, sua qualidade vai atestar isso.

Pra entender um pouco melhor, tentando não generalizar, vou dar um exemplo.

Vamos imaginar um produto, a batata.

Uma batata do Mc Donald’s, do drive thru, na embalagem vermelha e amarela padrão, boa enquanto está quente, parece batata, tem gosto de batata. É o fac símile perfeito.

A indústria vende um produto que parece o que você quer, mas não é exatamente só aquilo. E isso é necessário sob o ponto de vista do pensamento industrial. É preciso que seja assim para que os objetivos específicos desse pensamento seja atingido.

O que eles fazem é preparar um processo que possa atender o mundo inteiro, ser conhecido por multidões e, claro, vender milhões e milhões de unidades. Portanto, eles fazem o possível para baratear os custos e atender aos seus pedidos. Com certeza existem os grandes que dormem bem com suas consciências, outros não.

Quando falamos da indústria de alimentos, tem demanda, tem lucro, tem durabilidade e tem muita coisa química também, infelizmente.

Agora, se olharmos a mesma batata sob o ponto de vista artesanal, vamos observar que ela é comprada no mercado (ainda que um grande supermercado possa ser considerado “industrial” também), uma pessoa precisa lavar, cortar, cozinhar, temperar, assar, deixar crocante no forno, colocar em uma tigela bonita, para só então servir aos familiares ou amigos com um sorriso no rosto, contando algo divertido do seu dia, alimentado (no sentido literal e figurado) um hábito de interagir mais com a gastronomia.

Se há um fator chave no pensamento artesanal é a forma com que se interage com as pessoas, com o produto e com todo o processo, da matéria-prima ao descarte. É isso que gera o valor que você adiciona, ao respeitar aquele produto e pensar nele como experiência e não apenas como lucro, o produto como parte de algo e não só uma troca por dinheiro.

A cachaça, pra citar outro exemplo, é uma dessas coisas que a gente está descobrindo como escolher, como beber e apreciar. O mercado está crescendo e buscando novas soluções para avançar com um produto de qualidade, tentando perder a estigma de baixa qualidade ou bebida de sarjeta, diferenciando o que é artesanal do que é meramente clandestino.

O destilado tipicamente brasileiro conhecido por diversos nomes tais como cachaça, pinga, caninha, aguardente, é uma bebida nacional autêntica que ganha muito ao adotar o pensamento artesanal, ensinando não só sua história, mas como consumir, quais os ingredientes, de que forma eles se influenciam mutuamente e se preocupando cada vez mais com a qualidade.

Existem hoje cerca de 4 mil marcas de cachaças registradas no Brasil, de acordo com o Mapa da Cachaça.

Certamente, há muito mais alambiques informais, sem registro e sem acompanhamento. Nem artesanal, nem industrial, esses estão além da batalha e fora das estatísticas. Se estamos discutindo a qualidade e diferenças entre artesanal e industrial, é muito difícil colocar as informais no meio.

É importante diferenciar. Precisamos entender que a qualidade, sanidade e ciência por trás de um setor é o que faz ele crescer, com a certeza de que está dentro das regras e leis que atendem o consumidor. O conhecimento técnico e estar dentro da lei são itens importantes.

O artesanal não é fora da lei e, nisso, se diferencia dos que estão burlando algum tipo de regra, seja técnica ou jurídica. O artesanal sabe o que está fazendo. O industrial sabe o que está fazendo com tecnologia ao seu lado munida de investimentos altos.

O diferencial está em quem segue desde o princípio o processo com técnica e zelo, se preocupa com a qualidade de cada um dos insumos que fazem parte da receita e como utilizar a tecnologia e ciência que temos hoje em benefício do produto final.

O ato do artesão transforma uma matéria-prima em produto diferenciado, artesanal e em pequenas escalas. A indústria mecaniza o processo e faz esse mesmo produto em grande escala e em menor tempo. Um é trabalho manual, o outro, trabalho de uma máquina. Processos diferentes para fins parecidos.

Nesse universo, tanto no processo artesanal quanto no industrial, encontramos pessoas que valorizam aquilo que fazem. Independente se são apenas 2 bordadeiras ou 1500 funcionários em uma fábrica, esses profissionais são seres, corações, que acreditam no que fazem para mudar o mundo, nem que seja o seu próprio. Pode parecer romântico demais para você mas no fundo é isso. Somos pessoas e nos organizamos em grandes e pequenos, simples e rebuscados. E tem lugar pra todo mundo.


publicado em 09 de Dezembro de 2015, 19:54
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Bia Amorim

Formada em Hotelaria e pós-graduada em Gastronomia, com especialização em Sommelier de Cervejas. Está no Twitter (@biasamorim) e Instagram (@biasommelier), além do Farofa Magazine, projeto que nasceu para para atender a crescente demanda de comensais que gostam de harmonizar, aprender, conversar e filosofar.


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