Artes Marciais vão muito além dos golpes

Eu já praticava Parkour e Artes Marciais há um tempo quando a ficha caiu de verdade. Aquela epifania que deveria ser óbvia, estava lá todo o tempo, mas em minha arrogância e pressa não consegui enxergar sozinho.

Estava lendo o blog de um respeitado praticante de Parkour, um dos mais influentes até hoje e me deparei com um trecho do texto “Com que frequência você treina?”:

Chris 'Blane' Rowat salta
Chris 'Blane' Rowat salta

“Sai de férias com meus pais por duas semanas e passamos um tempo andando e visitando diferentes lugares. Num anoitecer caminhando pela praia, minha mãe perguntou se eu sentia falta dos meus treinos, pelo tanto que eu treino em casa, e ela surpreendeu-se quando disse que estava treinando naquele exato momento. Estávamos num pavimento reto, com nada que poderia ser considerado uma construção por pelo menos 100 metros em qualquer direção.
Ela pareceu confusa e quando expliquei que estava trabalhando no posicionamento dos meus pés, e que quando alcançássemos aquela lata de coca-cola que estava 10 metros no chão à nossa frente, eu estarei pisando com minha perna direita, e minha meia sola do pé estará alinhada com a lata, ela sorriu e por um curto segundo teve um vislumbre do quão profunda a prática do Parkour pode ir.”

Eu precisei deste simples exemplo pra entender que o que praticamos se estende por todas as áreas de nossa vida, e limitar a experiência do treino às 1 ou 2 horas que estamos dentro do tatame – ou treinando na rua, no caso do Parkour – é jogar no lixo um precioso tempo de experiência.

Toda arte marcial surgiu com um simples e único propósito, adquirir a capacidade de neutralizar um adversário. A partir disso, de acordo com o contexto histórico, local onde se desenvolveu e pessoas envolvidas, cada modalidade adquiriu seu distinto conjunto de técnicas. Na Coréia, o terreno montanhoso favorecia o fortalecimento das pernas e consequentemente vemos chutes predominando em suas artes.

O mesmo pode ser observado no Jiu-Jitsu, que, ao invés de utilizar golpes traumáticos (chutes e socos), utiliza de torções e alavancas para que homens mais franzinos consigam se proteger de oponentes maiores e mais fortes.

Entretanto, não apenas técnicas foram influenciadas pelo contexto a qual pertenciam. A forma de interação entre as pessoas e muitas outras tradições foram inseridas ao ensino das artes marciais. Muitas delas pouco convencionais para nós ocidentais, que focamos mais no resultado do que no aprendizado profundo.

Algumas academias exigem um pouco mais de formalismo, outras abandonaram praticamente todo traço do comportamento tradicional e se focam apenas na transmissão das técnicas.

Derrubar uma pessoa e fazê-la desistir de um combate é algo secundário em nossa realidade. Não à toa o foco de muitas academias apenas na eficácia dos golpes, em detrimento das tradições, está causando o próprio esvaziamento das mesmas. É miopia pensar que a maioria das pessoas no dojo são competidores ou pretendem utilizar a defesa pessoal em seu dia a dia.

No entanto, podemos sim afirmar que todas elas podem entender melhor como interagir em comunidade, como ajudar aos outros e se relacionar de outro modo com emoções como ansiedade, medo e raiva.

Hoje as tradições precisam ser mais valorizadas, pois são as que podemos aplicar no cotidiano.

Não prego pelo fim das técnicas, do combate ou da eficiência dos movimentos. Apesar de quase ninguém precisar utilizar isso em sua rotina, são ferramentas que fazem parte do aprendizado e constroem o psicológico do artista marcial.

Numa época na qual a vitória ou derrota significavam vida ou morte, as coisas certamente deveriam ser levadas para um lado diferente. Mas agora, quando uma luta dificilmente significaria algo tão decisivo, continuar a valorizar a vitória acima de tudo transforma o ato de lutar num espetáculo injustificável. Basta observar eventos de MMA para notar como adversários visivelmente superiores esmagam seus oponentes sem um mínimo de compaixão, tudo pelo show.

Com uma leve mudança de foco, a escola marcial pode fornecer ferramentas para cultivar características positivas do praticante durante os treinos e ajudar a transpor a barreira entre a prática e os eventos fora do tatame. Dessa forma o artista marcial, o marido e o profissional se tornam um só.

Que exemplo estamos dando para quem está crescendo, quando aplaudimos de pé alguém surrando uma pessoa que mal pode se defender? Não sou contra esportes de combate e sua legitimidade, desde que preservar o próximo e valores claros se mostrem acima do desejo de vencer a qualquer custo.

Quando o vencedor desiste

Recentemente um vídeo chamou bastante atenção pelo desfecho inesperado. Mike Pantangco levava a melhor numa luta, dominando seu oponente por completo, quando se afasta e bate 3 vezes no chão. Desiste do combate, dando a vitória ao adversário.

Link YouTube

Entrevistado depois, Mike explica seus motivos:

“Eu só senti que não fazia sentido lutar contra ele, porque ele não treinou para lutar contra mim, e eu não treinei para ele. Nós somos amadores, não somos pagos para lutar. E eu sabia que a luta só poderia terminar com ele indo no hospital ou machucado. Eu me senti terrível, então resolvi dar a vitória para ele.”

Demonstrações de lucidez como essa demonstram raro entendimento do caminho marcial. Ações similares podem ser replicadas em qualquer contexto e refletem um aprendizado fundado no respeito ao próximo, valorizando o que realmente importa.

Cada momento de nossa vida é uma oportunidade de aprendizado e chance de aplicar o que já sabemos. Se seu treinamento não está te tornando um ser humano melhor, talvez deva observar com mais cuidado quais valores estão sendo buscados.


publicado em 22 de Maio de 2014, 20:00
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Alberto Brandão

É analista de sistemas, estudante de física e escritor colunista do Papo de Homem. Escreve sobre tudo o que acha interessante no Mnenyie, e também produz uma newsletter semanal, a Caos (Con)textual, com textos exclusivos e curadoria de conteúdo. Ficaria honrado em ser seu amigo no Facebook e conversar com você por email.


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