Passado o segundo turno das eleições, uma certeza que tivemos desde o início parece se confirmar: independente do vencedor, virtualmente metade da população ficaria profundamente decepcionada com o resultado. Pior: há chances de que, para essa metade, o gosto amargo de derrota não passe por, no mínimo 4 anos. Afinal de contas, apesar da proximidade de algumas posições, foram projetos políticos com um sabor totalmente distintos.

No famoso discurso de Springfield, Abraham Lincoln ensinou que “uma casa dividida contra si mesma não pode permanecer”. Pobre Lincoln: tivesse sobrevivido para ver o que foi a tenebrosa e fanática polarização desse segundo turno, teria achado que os Estados Unidos da época da secessão não eram assim tão divididos.

O que se vê, pelo menos nas redes sociais e nas conversas informais, é um quadro análogo ao da época do lendário presidente americano: amigos se agredindo, incapazes de admitirem as escolhas uns dos outros, apontando dedos e aumentando o tom de voz na defesa de sua opção e ataque à alheia. Tudo isso porque, para um lado, um candidato é o bem absoluto e o outro mal encarnado, e para o outro a mesma coisa, apenas com as posições invertidas. Uma situação de clivagem extrema – como já falamos no Ano Zero, aqui aqui.

O que aconteceu de errado? Por que acabamos com duas opções tão polarizantes, tão incrivelmente fanatizantes para uma parte e tão intragavelmente repudiadas pela outra? Vou arriscar uma resposta funcional: talvez isso seja determinado por um motivo bem simples, o modo como o sistema eleitoral é arquitetado.

Com uma engenharia de regras diferente, um pouco melhor pensada e mais responsiva, poderíamos transformar o próprio jogo (consequentemente, seus jogadores), bastando apenas mudar uma ou duas regrinhas? Vamos brincar com essa hipótese.

Vamos brincar de imaginar cenários. Vamos supor que um determinado país tenha dois grupos majoritários de pessoas: os “vermelhos” e os “azuis”. Vermelhos odeiam azuis, e azuis odeiam vermelhos. É uma briga histórica, tensa, que quase levou o país à guerra civil. Os dois maiores partidos dessa nação, não poderia deixar de ser, são Partido Vermelho e o Partido Azul. Outros partidos menores ocupam posições coadjuvantes.

Se aproximam as eleições, e são apresentados alguns candidatos à Presidência. O primeiro éPedro Azul, pelo Partido Azul, cujo slogan de campanha é “Tudo para os Azuis, Nada para os Vermelhos”. O segundo é João Vermelho, do Partido Vermelho, com um lema parecido: “Vermelhos em primeiro lugar, Azuis em último”. Há um terceiro candidato, Amarildo Amarelo, do Partido Amarelo. Seu slogan é: “Podemos negociar as coisas”. Também há dois nanicos completando o quadro, Maria Pequeninha e José Desconhecido.

Azuis, óbvio, preferem votar em Pedro Azul, aceitam votar em Amarildo Amarelo e rejeitam totalmente votar em João Vermelho. Vermelhos são o oposto: preferem João Vermelho, aceitam Amarildo Amarelo e não votam por nada no mundo em Pedro Azul. Maria Pequeninha e José Desconhecido não são cogitados por quase ninguém. Vamos ver o que acontece em três sistemas de voto?

O sistema a ser hackeado: voto simples

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Nesse sistema, o mais simples, ganha quem tem mais votos. Essa é a regra, simples, direta e objetiva, utilizada na maior parte das democracias, por uma questão histórica e de simplicidade de apuração. O candidato que somar mais votos válidos leva tudo, e toda a informação de votos dos demais torna-se irrelevante.

Como comportam-se eleitores e candidatos em um sistema desses?

Ora, basta olhar ao redor. Neste sistema o que importa é número bruto. Não dá para ser sutil e espalhar fogo: a estratégia vencedora é o ataque. Deve-se manter a base eleitoral própria, e tentar destruir a aderência de votos eventuais à adversária. Proteger o próprio território, e atacar o adversário: o modo como a guerra é feita há milhares de anos.

O resultado é um ambiente político militarizado, mobilizado à base da fanatização, com uma enorme queda para o maniqueísmo. Partidos tentam se vender como representantes do bem, demonizando o adversário ao extremo. Publicidade emocional, com recursos dramáticos, tentam despertar emoções positivas ou negativas nas pessoas. É uma guerra de artilharia pesada, entre duas posições encasteladas. Mentiras e exageros voam de ambos os lados.

Os eleitores entram na dança. Sentimentos de rivalidade, espertamente fomentados pelos marqueteiros dos partidos, começam a aparecer entre grupos sociais, regiões, classes profissionais. Em uma corrida armamentista insana, os partidos tentam simplesmente montar uma pilha de eleitores maior do que a do adversário, não importando os métodos. Vale tudo.

Os candidatos menores imediatamente percebem que não têm chance em um sistema desses, e juram vassalagem a um ou outro grande lorde. Pior: os eleitores percebem isso, abandonam seus candidatos naturais e surge a figura do “voto útil”: votar em quem não quer para evitar quem quer menos ainda. Informação é destruída neste processo, realimentando o efeito.

Mas o mais grave: como o foco é no vencedor, com destruição da informação das preferências dos perdedores, este sistema é muito propício à distorção da democracia conhecida como “ditadura da maioria”.

No caso do nosso país de exemplo: Pedro Azul ou João Vermelho seriam eleitos, sem dúvida. Os outros não teriam chance alguma. Amarildo Amarelo, a segunda opção de todos, não se beneficiaria em nada por ser a segunda opção: isso seria irrelevante. Por mais 4 anos, o país seria dividido entre vencedores muito satisfeitos e perdedores muito irritados, cozinhando uma rivalidade que impede o diálogo e a composição – e que possivelmente veria sua reprise na próxima eleição.

Prós: simplicidade de apuração (o que não é tão essencial em época de eleições informatizadas) e maior entendimento do processo pelo eleitorado.

Contras: polarização da sociedade e campanhas que tendem mais ao emocional do que ao racional, vulnerabilidade à “ditadura da maioria”.

Hacking 1: o voto de rejeição

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Aqui as coisas começam a ficar interessantes. Vamos fazer uma pequena modificação no sistema acima: o eleitor agora tem direito a DOIS votos: um de aprovação (quem ele quer), exatamente como fazia antes, e além de tudo tem um voto adicional, de rejeição (quem ele não quer). A ideia é mensurar não somente o que é o melhor para as pessoas, mas também o que é o pior para elas, e fazer um balanço da situação que cause a menor quantidade de mal-estar.

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Os votos de rejeição, aqui, têm valor. A regra pode variar, mas vamos trabalhar neste exemplo com a regra “um voto de rejeição anula um voto de aprovação” (regras alternativas podem ser “dois votos anulam um”, “cinco votos anulam um”, etc).

Notem que essa votação se aproxima de uma negociação da sociedade, mediada pelo mecanismo do voto. A sociedade negocia consigo mesma um acordo, um contrato, propondo e rejeitando os candidatos como se fossem cláusulas que um ou outro aceitam ou não aceitam, e acabam elegendo um candidato que se apresenta como bem mais consensual do que no voto simples.

Os efeitos são interessantíssimos. Logo os partidos percebem que militarização e fomento de diferenças não funcionam, pois fazer inimigos tem um custo altíssimo – pode dinamitar, inclusive, uma alta votação. Nomes desgastados ou polêmicos são descartados pelos partidos, o que causa uma renovação de quadros muito mais veloz. Figuras como Sarney, Collor, Calheiros, Maluf, com alto grau de rejeição, perdem força e podem mesmo cair no ostracismo.

Breve as campanhas se ajustam, e os discursos dirigidos a segmentos ou divisões são substituídos por discursos direcionados a toda a população. O marketing político “de guerra” não só perde efeitos, como torna-se contraproducente. Ninguém quer fazer inimigos. As campanhas começam a ser cautelosas… o que resulta em políticos cautelosos em seus mandatos.

O eleitor começa a perceber que tem o poder não só de escolher quem vai vencer, mas de se proteger de imposições hostis ditadas por uma maioria altamente mobilizada. O “voto útil” perde força, pois é possível votar contra alguém sem abandonar seu candidato do coração. Resultado: a informação é preservada e convertida em um efeito socialmente útil.

No nosso país de exemplo: Pedro Azul parece ótimo para os azuis, e João Vermelho parece ótimo para os vermelhos. O problema é que o outro lado não aceita de jeito nenhum qualquer um deles. A rejeição de quase metade da população anularia a aprovação da quase outra metade, forçando uma saída que agradasse ambos. Como em um contrato feito entre adultos, ou como em uma negociação diplomática balanceada, ambos os lados cedem um pouco para evitar que um dos lados perca tudo.

Aqui a própria regra media este acordo: é como se cada um dos candidatos polarizadores fossem cláusulas propostas por um lado não aceitas pelo outro, em um contrato entre iguais. Amarildo Amarelo tenderia a sair favorecido, e, tendo pouca rejeição, poderia passar na frente e se firmar como o “aperto de mãos” deste contrato eleitoral do país consigo mesmo.

É um exemplo de como uma arquitetura inteligente de regras pode diminuir os custos transacionais e viabilizar um acordo mutualmente benéfico, que seria inviável de outra forma.

Prós: diminuição drástica da polarização, renovação de quadros, racionalização das campanhas, diminuição do efeito “ditadura da maioria”.

Contras: o conceito pode ser de difícil entendimento pelo eleitorado, imprevisibilidade dos resultados.

Hacking 2: ordem de preferência

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Vamos mexer um pouco mais nas regras. Aqui, ao invés de um voto de aprovação e um de rejeição, os eleitores teriam direito a ordenar uma lista de preferências. Para a apuração dos vencedores, existem dois métodos principais:  o Método de Condorcet e a Contagem de Borda.

O Método de Condorcet envolve um pareamento dos candidatos (ou seja, soma-se quantas pessoas preferem um dos candidatos a outro, e faz-se isso para todas as combinações possíveis). É bem mais complicado – talvez demais para o eleitor médio entender facilmente – embora tenha propriedades matemáticas interessantes. Por esta razão trataremos  apenas do segundo, a Contagem de Borda.

Na Contagem de Borda, o método mais simples, cada posição na lista receberia uma pontuação (por exemplo, o candidato escolhido como primeira opção receberia 3 pontos, o candidato escolhido como segunda opção receberia 2, e o escolhido como terceira opção receberia 1 ponto). Somam-se os pontos totais, e pronto, temos o vencedor.

Assim como no sistema anterior, o vencedor pode não ser o que apareceu mais vezes em primeiro lugar, surgindo uma solução que leva em consideração alternativas e preferências de um modo ainda mais refinado e profundo do que o sistema com voto de rejeição. Tal como naquele, uma “tomada hostil” de uma maioria mobilizada fica mais complicada: não basta ter “50%+1″, ainda assim deve-se ter uma boa parcela de votos alternativos.

No nosso país de exemplo: vamos supor dois eleitores. O primeiro estabelece estas preferências: Pedro Azul, Amarildo Amarelo e Maria Pequeninha. Ele é obviamente azul, e prefere qualquer um a João Vermelho. O segundo é vermelho, e suas preferências são: João Vermelho, Amarildo Amarelo e Maria Pequeninha. Pela Contagem de Borda, o vencedor seria Amarildo Amarelo, com 4 pontos (embora não tenha sido a primeira opção de ninguém!), seguido de Pedro Azul e João Vermelho, com 3 cada, e Maria Pequeninha, com 2.

A Contagem de Borda já é bastante utilizada em eleições em empresas e associações, e está começando a ser utilizada na política. A Câmara de Dublin recentemente utilizou a Contagem de Borda, e o método também é utilizado na Eslovênia e nas pequenas nações da Micronésia de Kiribati Nauru. O Partido Verde da Irlanda também usa a Contagem de Borda para eleger seu presidente.

Prós: diminuição drástica da polarização, renovação de quadros, racionalização das campanhas, diminuição do efeito “ditadura da maioria”.

Contras: o conceito pode ser de muito difícil entendimento pelo eleitorado.

Então? Vamos continuar com a mesma regra, ou tentar forçar uma mudança de comportamento político pelo melhor e mais inteligente caminho, o da mudança do conjunto de incentivos? Existem inúmeras regras que podemos experimentar: nunca se pode desprezar o efeito de uma mudança inteligente nas regras para dar um “empurrãozinho” na sociedade na direção de um objetivo desejado – um efeito muito mais poderoso, inteligente e sustentável do que tentar mudar as consequências por decreto!

Nota do editor: esse texto foi originalmente publicado no site Ano Zero, e foi adaptado para ser publicado no PapodeHomem hoje, pós-eleição.

Douglas Donin

Especialista em Direito Internacional e graduando em Economia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, já foi ditador da Latvéria e inimigo de estelionatários neopentecostais no site “Duvido”. Escreve também no <a>Ano Zero</a>."