Há cerca de 12 anos, ajudei a fundar uma startup chamada Basecamp: uma simples ferramenta de colaboração para projetos, com o objetivo de ajudar pessoas a fazerem progresso juntas. Ela é vendida através de uma assinatura mensal.

O Basecamp pega uma parte da vida profissional de algumas pessoas e faz ela ficar um pouco melhor. É um pouco mais bacana do que tentar gerenciar um projeto por email ou fazendo uma mistureba com sistemas separados para conversas, compartilhamento de arquivos e gerenciamento de tarefas. Isso acabou se tornando um negócio confortável para meu sócio e para mim, além de um ótimo lugar de trabalho para nossos funcionários.

E é isso.

Não causou nenhuma “disrupção”. Não fez nenhum novo bilionário. Nunca foi um unicórnio. Pior ainda: mesmo depois de todos esses anos, o Basecamp ainda emprega menos de 50 pessoas. Nós nem temos um escritório-satélite em São Francisco!

Você deve estar pensando: SEM GRAAAAAAÇA. Por que eu estou prestando atenção nesse cara? Não era pra isso aqui ser uma conferência para os vencedores do grande jogo das startups? Tipo gente que já pegou centenas de milhões em capital de risco, ou que pelos menos têm a ambição disso? Qual o trouxa que em sã consciência ficaria mais de uma década ralando em uma empresa que nem sequer tem a pretensão de Devorar o Mundo™?

Bom, a razão de eu estar aqui é para te lembrar que de repente, assim bem de repente, você também tenha a sensação esquisita de que essa atmosfera comum de disrupção-mania não seja o único ar respirável para uma startup. Que talvez essa obsessão pela disrupção não esteja somente tomando o lugar de outros motivos válidos para se começar uma startup, como também possa ser definitivamente tóxica para todos os envolvidos.

Parte do problema parece ser o fato de que aparentemente ninguém mais quer se contentar com apenas deixar sua marca no universo. Não, eles têm que ser donos do universo. Não basta estar no mercado, eles têm que dominar o mercado. Não basta servir o cliente, é preciso capturar o cliente.

De fato, é difícil conversar com a maior parte do povo de startups hoje em dia sem ser soterrado com menções a “efeito de rede” e ao valor de adiar a “monetização” até o momento em que você encontre algo que absolutamente todas as pessoas no mundo queiram ficar olhando.

Nessa atmosfera, o termo “startup” acabou sendo limitado a descrever a busca por total dominação corporativa. Se tornou uma obsessão com os tais unicórnios e com as propriedades dos seus “sucessos”. Uma geração inteira de pessoas trabalhando com a internet, e na internet, enfeitiçadas pela possibilidade de se transformar em uma criatura mística.

Mas quem pode culpá-las? Esse conjunto de ideais de contos de fada tem sido reforçado a cada esquina.

Comecemos de baixo: as pessoas que fazem uma série de pequenas apostas em muitos potenciais unicórnios acabaram se descrevendo como “anjos”. Anjos? Sério? Vocês tiraram essa conveniente alcunha justamente das parábolas de uma religião que explicitamente e especificamente mostra o seu principal representante chutando e expulsando o pessoal da grana do seu templo enquanto proclamava que seria mais difícil um homem rico entrar no reino dos céus do que um camelo passar pelo buraco de uma agulha?

“E outra vez vos digo que é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no Reino de Deus.” — Mateus, 19:24

E esse é só o primeiro passo do processo. Se você for capaz de emendar um número suficiente de palavras-chave sobre disrupção, uma admiração suficiente por seus versos sagrados, como softwares devorando o mundo, e um anseio suficiente pela Meca San-Franciscana, você também pode avançar neste esquema multinível de investimentos.

Os anjos são só o nível de entrada da santíssima trindade da grana de startups. Prossiga pelo iluminado caminho e você rapidamente conseguirá uma audiência com os sábios investidores de risco. Por último, se o seu gráfico de crescimento em formato de taco de hóquei for bom, você terá a oportunidade de sentar-se em frente aos banqueiros investidores, que avaliarão a sua capacidade de permanecer lindo e cheiroso pelo menos até terminar o período no qual os insiders não podem vender suas ações.

E adivinha qual o nome que as pessoas deram para essa afirmação final? UM EVENTO DE LIQUIDAÇÃO. O batismo exigido para que se entre no reino dos céus financeiro. Sutil, hein? Ah, e daí, quando você Chegar Lá™, você tem a oportunidade de renascer como um anjo, e o círculo da divindade se completa. Ale-fucking-luia!

Você pode pensar, cara, e eu com isso? EU SOU ESPECIAL. Eu vou vencer todas as probabilidades e sair da fábrica de unicórnios com meu chifre único e especial. E quem se importa com o vocabulário evangélico dos investidores? Se eles me mostrarem a grana, eu chamo eles de Santo Dólar Misericordioso se eles quiserem. Não faz a menor diferença!

Então você primeiro pega um monte de dinheiro com os anjos desesperados para não perderem a oportunidade de ter participação no próximo unicórnio. Depois pega uma quantidade ainda mais obscena de dinheiro com os investidores de risco para inflar seu crescimento e chamar atenção dos banqueiros e fazê-los pensar que você eventualmente vai ser digno de ser jogado no mercado público.

E a cada passo desse caminho já traçado, você acumula mais e mais chefes. Mais pessoas oferecendo “orientações” sobre como espremer os números até que se torne problema de outra pessoa a tarefa de manter o castelo flutuante inflado e sempre subindo. Mas é claro que, depois que você pega o dinheiro, não é mais “orientação”. É uma dívida, com toda a reciprocidade persistente que vem com isso.

Se você realmente quer se tornar o próximo Uber de cinquenta bilhões de dólares daqui a cinco anos, acho que esse jogo até faz algum sentido dentro da sua própria lógica torta. Mas é mais do que válido gastar alguns momentos do seu tempo para reconsiderar: é isso que você quer? Ou, pra deixar mais correto: o que você quer é uma tentativa incrivelmente improvável disso?

Não vá aceitando automaticamente essa definição de “sucesso” só porque é disso que todo mundo está correndo atrás no momento. Sim, o coro é alto e canta uma canção tentadora, mas você não precisa nem tirar muito verniz da superfície para ver que essa madeira não é tão forte quanto você pode imaginar.

Vamos dar uma passo para trás e examinar exatamente o quanto essa noção de sucesso é estreita.

Primeiro, considere a seguinte questão: por que você está aqui? (N.T.: Este texto é transcrição de uma fala do autor em um evento de empreendedorismo na Irlanda.)

“Garanta Seu Ingresso Para Se Juntar Às Maiores Empresas e Às Mais Empolgantes Startups: não são só startups que vêm ao Web Summit. Executivos sêniores das empresas líderes do mundo estarão conosco para descobrir o que o futuro traz e para conhecer as startups que estão mudando suas indústrias.” — Convite do evento Web Summit

Este é um motivo: você acha que gostaria de ser um dos mencionados nesse tipo de coisa: uma das Maiores Empresas Do Mundo ou Mais Empolgantes Startups. Em outras palavras, você também gostaria de experimentar ser portador daquele chifre de unicórnio. Você sente que está predestinado a isso.

Então, para responder à pergunta, “por que você está aqui?”, podemos tornar ela literal. Por que você está AQUI? Em Dublin, na Irlanda, na União Europeia? Você não está careca de saber que certamente a maneira mais rápida, e provavelmente a única, de entrar para o uniclube é alugar um quarto com um colchão na parte mais suspeita de São Francisco, onde o aluguel é apenas US$ 4000/mês?

Porque apesar da área ao norte do Vale do Silício estar ocupada com suas disrupções de tudo, eles ainda não conseguiram disrupturar com a geografia básica. Então, se o seu anjo ou o seu investidor de risco não conseguem dar um pulo no seu escritório (pelo qual você está pagando caro demais) para uma jam session, bem, você não é grande coisa, né?

A pergunta real é: por que você começa uma startup? Eu realmente não acredito que a maior das pessoas é motivada unicamente pela vontade de aplaudir o último taco de hóquei. Enfeitiçados, provavelmente, mas não unicamente motivados por isso. Te convido a ir um pouco mais fundo e explorar essas motivações. Como inspiração, aqui estão algumas das minhas, quando comecei a me envolver com o Basecamp:

Eu queria trabalhar para mim mesmo. Caminhar no meu ritmo. Mapear meu próprio caminho.

Falar o que quer que eu pensasse, sem me preocupar com o que alguns caras de terno iriam pensar. Todos os clichês de independência que soam tão pitorescos até o momento em que você se vê numa reunião de conselho sendo questionado sobre por que você não está levantando mais investimento, produzindo mais, crescendo em velocidades supersônicas pra ontem???

A independência é daquelas coisas de que você só sente falta depois que perde. E quando você a perde no sentido de que agora tem os mestres da grana ditando TODA A SUA JORNADA, na maior parte das vezes ela está perdida de vez. Depois que o trem começa a fazer choo-choo ele não para mais, você não desce mais, até que você descarrile na primeira curva mais forte ou chegue à Estação IPO no Lago da Liquidação.

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Eu queria fazer um produto e vendê-lo diretamente para as pessoas que se importariam com a qualidade dele.

Há uma incrível conexão que é possível quando você alinha seus objetivos financeiros com o serviço aos seus usuários. É uma categoria de trabalho bem diferente em comparação a tentar capturar o maior número possível de pares de olhos e depois vender sua atenção, privacidade e dignidade em atacado para quem pagar mais.

Vou usar outro clichê aqui: é uma sensação de trabalho honesto. Simplesmente um trabalho honesto. Eu faço um produto bom, você me paga um dinheiro bom por ele. Nós nem sequer precisamos de palavras difíceis como “estratégia de monetização” para descrever essa transação, porque ela é tão simples que até o meu filho de três anos entende.

Eu queria criar raízes. Laços de longo prazo com meus funcionários, clientes e com meu produto.

É impossível dirigir e guiar uma bomba-relógio de capital de risco que só pode ser desarmada com um retorno de investimento de 10 a 100 vezes. As relações de trabalho mais satisfatórias que tive nas minhas quase duas décadas trabalhando na internet foram as que duraram mais tempo.

O Basecamp tem clientes que vêm nos pagando há mais de 11 anos! Eu trabalhei com o Jason Fried por 14, e com um grupo cada vez maior de funcionários por quase uma década.

Vejo muitos obituários desse tipo de longevidade: o local de trabalho moderno não te deve nada! Todas relações são efêmeras e temporárias! Existe um prestígio em pular de galho em galho o máximo possível. E eu penso, sério? Eu não conheço isso, não aceito isso. Não existe nenhuma lei natural que torna isso inevitável.

Eu queria ter a maior chance possível de chegar ao ponto crucial da estabilidade financeira.

No sentido econômico abstrato, 30% de chance de ganhar 3 milhões é tão bom quanto 3% de chance de ganhar 30 milhões e tão bom quanto 0.3% de chance de ganhar 300 milhões. Mas no sentido concreto você tem que escolher: em qual bilhete quer apostar?

As estratégias usadas para tentar os 30% de chance nos 3 milhões costumam ser diretamente opostas às necessárias para tentar os 0.3% de chance nos 300 milhões. Mirar nas estrelas e acertar na lua não é o que acontece numa manhã de segunda-feira.

Eu queria ter uma vida além do trabalho.

Hobbies, família, estimulação intelectual e interesses além do HackerNews, de qual framework de JavaScript vai ser o próximo a se popularizar ou de como otimizar nosso funil de inscrições.

Eu queria aceitar as limitações de uma semana com 40 horas de trabalho e me sentir bem ao fim de cada uma. Não queria estar sempre pensando que estou devendo mais e mais do meu tempo durante os meus preciosos vinte e poucos e trinta e poucos. Eu só vou viver essas décadas uma vez e nem fodendo eu vou vendê-las por uma grana maior mais tarde.

Pra mim, esses motivos significaram uma rejeição à definição de sucesso proposta pelo modelo econômico San-Franciscano, que é Cresça Muito Ou Caia Fora. Para nós, no Basecamp, significou começar o negócio como algo paralelo. Esperar pacientemente por um ano até que ele conseguisse pagar os nossos modestos salários antes de torná-lo um negócio de tempo integral. Buscar e crescer uma audiência, em vez de comprá-la, de modo a ter alguém para quem vender nosso produto.

Pela mitologia predominante das startups, isso significa que nós nunca nem fomos uma startup! Nunca houve um plano de dominação mundial, nunca se falou sobre uma captura completa de algum mercado. Certamente não houve nenhum dos grandes marcos de comemoração. Não teve financiamento de série A, não teve plano para tornar a empresa pública, não teve nenhuma aquisição.

Nossa definição de estar vencendo nem mesmo inclui o estabelecimento daquela santidade oca do monopólio natural! Nós não vencemos por erradicar a concorrência. Por sabotar suas jogadas, por tentar roubar seus empregados ou por queimar mais dinheiro em menos tempo… Nós prosperamos em um mundo E, não em um mundo OU. Nós podemos fazer sucesso E você também pode fazer sucesso.

Isso pode parecer papo de molenga, de quem não tem ambição. Eu gosto de chamar de humildade. Realismo. De buscar algo alcançável. É uma experiência projetada e uma busca consciente que reconhece os retornos extremamente diminuídos de vida, de amor e de significado a partir de um certo ponto do sucesso financeiro. De fato, não só diminuídos, mas negativos para muitas pessoas.

Eu já conversei com centenas desses empreendedores que venceram segundo as métricas tradicionais do sucesso no manual de instruções padrão das startups. E quanto mais conversávamos, mais todo mundo se dava conta de que as armadilhas de um sucesso avassalador não estavam tão altas na pirâmide masloviana de prioridades quanto essas outras medições motivacionais mais efêmeras e difíceis de quantificar.

Acho que outro jeito de colocar o que estou tentando dizer é: há uma enorme conspiração no mundo das startups. As pessoas agem em interesse próprio. Especialmente aquelas cuja contribuição primordial é o capital com que eles entram. Elas racionalizam o comportamento como sendo “para o bem da comunidade” sem um pingo de ironia ou introspecção. Nem mesmo o mais maléfico e cartunizado magnata jamais vai pensar sobre si mesmo nada além de “estou fazendo o que é o melhor”.

De vez em quando, esses interesses próprios transparecem das maneiras mais reveladoras. Por exemplo, quando anjos ficam se gabando: você nem sabe qual negócio vai ser o próximo unicórnio. Dessa forma, a única jogada racional é atirar no máximo possível de alvos. Eu considero isso uma impressionante aceitação de quão limitada é a influência deles no processo. Tipo, cara, não faço a menor ideia de qual merda vai grudar na parede, então pelo amor do meu six-pack de Rolex, vamos continuar jogando pra todos os lados!

Tudo isso é absolutamente não-representativo do resto do mundo corporativo. Por isso que o mindfuck é tão completo. Temos uma pequena minoria de provedores de capital, as turminhas deles e as empresas clientes que têm todo o interesse em perpetuar o mito de que você precisa delas. De que adentrar o inóspito e gelado mundo dos negócios sem o dinheiro deles no seu colchão é uma perda de tempo.

Não acredite! Eles convenceram o mundo de que São Francisco é principal esperança de progresso, e que, apesar de você dever tentar emular a cidade onde quer que isso seja possível, essas emulações sempre serão rasas. Melhor mandar seus talentos para cá, para que eles tenham uma possibilidade real de glória e de dominação mundial.

Eles treinaram a mídia como cachorrinhos obedientes para comemorar o seu processo e idolatrar o seu vocabulário. Oh, Series A! Cap tables! Vesting cliffs!

Mas, no fim das contas, são só emprestadores de dinheiro.

Se você colocar a moralidade frente à frente com a influência do capital, ela quase sempre vai perder. A ganância sozinha já é um poderoso motivador, mas fica ainda mais acelerada quando você está servindo à do outros. Colocar privacidade à venda? Sem problemas. Tratar prestadores de serviço como uma classe secundária de indivíduos autômatos para com os quais a empresa não precisa demonstrar nenhum tipo de lealdade? Normalíssimo.

A mania de disrupção se encaixa perfeitamente nos objetivos dessa intriga. É uma licença para matar. Corra rápido e quebre a sociedade.

Nem tudo é maligno, claro, mas isso está sugando uma quantidade completamente desproporcional de atenção e de luz do universo empreendedor.

A distorção é exacerbada pelo fato de que as pessoas que estão construindo empresas rentáveis fora da esfera dominadora do capital de risco têm pouca necessidade sistêmica de contar suas histórias. Os VCs, no entanto, precisam dessa contínua campanha de relações públicas para atingir seus objetivos de recrutamento. Eles não podem ganhar uma vez e se contentar com isso.

A representação dos unicórnios é tão real quanto o rosto de uma modelo na capa de uma revista. Retocada e editada zilhões de vezes, preparada com esmero, trabalhada com afinco.

A web é a melhor plataforma de empreendedorismo já inventada. Tem as menores barreiras de entrada e o maior potencial de alcance humano. Eu amo a web. Não acredite nessa barreira de acesso feita de dinheiro. Ela não existe.

Examine e interrogue suas motivações, rejeite o dinheiro se conseguir, e faça uma startup útil. Uma marca no universo já é muita coisa.

Controle sua ambição.

Viva feliz para sempre.

* * *

Nota da tradução: esse texto foi originalmente publicado no Medium do autor.

David Heinemeier Hansson

Criador do 'Ruby on Rails'. Fundador do Basemcamp. Best-seller pelo New Yorque Times por Rework and Remote" e piloto de corrida."