Na vida, não temos manual para lidar com situações que pegam a gente desprevenido, e que ninguém espera ou deseja passar por. Uma dessas situações é: como lidar com uma traição no meu grupo de amigos?

Nós do PDH temos tentado fazer pontes importantes entre todos os temas que a gente debate aqui – de masculinidades e equidade – e outras questões e dilemas práticos que atravessam o dia a dia de qualquer pessoa

Imagina que você tem um círculo de convivência e ocorre uma quebra de confiança, uma trairagem, entre duas dessas pessoas que você ama e convive. Como lidar? 

E aqui vamos entender traição como quebra de confiança. Isso pode ou não estar relacionado à quebra da monogamia. Traição pode ser entre um casal de amigos que estavam em um acordo de exclusividade, ou pode ser uma quebra de confiança, uma punhalada nas costas entre dois brothers. 

Traição na amizade

No episódio Amigo do Peito, do podcast Não Inviabilize (quadro Picolé de Limão), Déia Freitas conta a história de um rapaz que pede para seu “amigo do peito” fazer um favorzão: um empréstimo que seria destinado para pagar a cirurgia de retirada de vesícula da mãe do rapaz. O amigo do peito faz o empréstimo em seu nome e, quando o suposto filho atencioso não paga a primeira parcela, o amigo do peito descobre que a mãe do rapaz não fez a cirurgia nenhuma, que o dinheiro foi destinado para pagar o silicone da namorada do tal rapaz e que este, que pediu o empréstimo em nome do amigo, não teria nenhuma condição de pagá-lo. Se isso não é uma puta traição, eu não sei o que é…

Cada caso é um caso:

Alguns casos, como este do amigo do peito, são mais revoltantes, outros, têm mais nuances e pontos a serem  ponderados.

Imaginando que duas pessoas no grupo brigaram, num conflito em que houve traição, quebra de confiança, mágoa e ressentimento. O que você, como amigo de ambas as partes, deve fazer ou não fazer? Como lidar?

Sim, sabemos que não tem manual. Aqui eu vou levantar algumas reflexões – que vem de um arcabouço pessoal, de alguns dilemas da vida, das amizades, das conversas de bar vividas – para tentar trazer algumas perspectivas que nos ajudem a elaborar os dilemas. 

Acolha quem foi ferido

A pessoa que foi traída, foi pega de surpresa e teve sua confiança quebrada, então essa é a pessoa que tende a estar numa situação de maior vulnerabilidade emocional. Nesse momento é super importante acolher esse amigo ou amiga, demonstrar que podem contar contigo e com as outras pessoas do grupo, que esta pessoa não vai estar desamparada depois de uma trairagem. 

Claro, você pode e deve ir falar com a outra parte, mas demonstre sua solidariedade com quem foi a “vítima da situação”. 

Acolher não precisa envolver criticar a outra parte

Se você não está genuinamente puto com a outra parte, não é preciso performar uma indignação. Também não caia no erro de minimizar a traição numa tentativa de botar panos quentes. “Poxa, mas ele teve boas intenções” ou “ele sempre gostou tanto de você”. Tudo isso pode soar mais desconfortável.

Você pode só permitir e legitimar a dor que aquela pessoa está sentindo: “Eu entendo a sua dor, não é pra menos. Você tem o direito de estar chateado”

Mitigando as violências:

Tem uma questão de gênero bem importante para administrar em tretas entre amigos: Quando dois amigos brigam feio, podem sair ameaças como “eu vou quebrar aquele filho da puta”, e aí o seu papel como amigo responsável, mais do que escolher um lado, é ajudar o cara a sair da raiva e encontrar outras formas de resolver os problemas e lidar com a frustração.

Se a gente estiver falando de traição de casal, a coisa muda bruscamente de figura a depender de quem trai: quando a mulher é a responsável pela quebra de confiança, é possível ver reações que tendem a violência entre os homens. Aí vale reforçar mais ainda a sua preocupação em fazer esse cara ver que ameaças não são um caminho, que um erro não pode justificar outro e que traição não é uma autorização a violência e outras coisas do gênero.

A humanidade das pessoas para além do certo e errado

Não vai ter fórmula, cada caso é um caso e a vida real não é tão fácil de se dividir entre heróis e vilões. Em alguns casos, sim, a gente pode cravar com mais facilidade que tal pessoa rompeu com todos os valores importantes para nós e que não tem conversa. Mas muitas vezes a vida realmente entrega dilemas que nos dividem e que não tem resposta certa. Uma letra de sertanejo fala: “Se resolver trocar o amor por um instante, Termina comigo antes”. Mas as relações não são assim tão simples.

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Às vezes uma paixão acontece e se soma a outro amor. Se fosse meu amigo, meu conselho não seria nem o término nem o sufocamento da paixão, seria tentar uma relação aberta, ter um diálogo sobre isso. Mas sendo bem consciente, eu sei que isso não é uma opção para muitos casais, e que, para alguns, até mencionar o assunto pode se tornar motivo de insegurança, crise e posteriormente, término. 

Quem quebrou a regra estabelecida está errado, objetivamente falando. Mas a vida não é um jogo com um juiz apitando. Às vezes a própria regra não era justa. E no fim, a vida é cheia de contradições, encruzilhadas, escolhas que nem sempre são as melhores. 

Legenda

Escolher um lado é opcional

Pode ser que diante da briga você tenha imediatamente se identificado com um lado: você pode se sentir pessoalmente ofendido com a traição, escolher um lado e defender com unhas e dentes o seu time. 

Mas pode ser que não. Em muitas das vezes, principalmente quando se é amigo de ambas as partes, a gente fica dividido. A gente entende o sofrimento da parte traída, mas não é raro que a gente também consiga se enxergar diante do dilema de quem traiu. 

Ele está errado, mas é meu amigo

Você pode achar que um lado está certo e o outro errado e, mesmo assim, não querer romper com nenhum dos dois. 

Às vezes a gente vai precisar se posicionar até para não cair no lugar de “brother que passa pano”. Você pode sentar com o teu amigo, dar um puxão de orelha, descer um sermão, cobrando, inclusive, reparação. Um exemplo dessa postura seria pressionar o rapaz do empréstimo a vender a moto (ou os rins) para pagar o amigo do peito. 

Mas saber que o outro está errado e cobrar dele correção, não te obriga a se afastar. Em algum ponto da vida, todo mundo vai errar. Uma coisa que a gente fala muito aqui no PDH é que o processo de responsabilidade masculina não é uma chavinha que vira e que te transforma num homem imaculado sem defeitos. 

Um percurso de responsabilidade masculina não é sobre sair do “passar pano” e chegar no “apontar dedos”. 

Inclusive, mais cedo ou mais tarde, você também pode cometer um erro e precisar desse ombro, desse puxão de orelha e da presença desse amigo que te ajuda a crescer. 

O que buscamos é uma caminhada ombro a ombro, em que, diante do erro dos nossos amigos, nós vamos estar lá, dialogando, apontando o que for necessário e contribuindo para um processo de reparação e mudança que vai envolver erros, sentimento de culpa, pedidos de desculpas, a necessidade de um ombro amigo.

Você não é obrigado a vingar quem se sentiu traído

Não é raro que, diante das mágoas, a pessoa que sentiu injustiçada possa dar ultimatos:

“se você me considera, você não olha mais na cara dele”

A depender do caso e da situação, na teoria, podemos dizer que não, você não tem uma responsabilidade moral em tomar as dores da pessoa traída e provar sua amizade se afastando do traidor. No entanto, os cenários podem ser muito diferentes de caso para caso. Nessa ponderação, sempre vale voltar e analisar como o que aconteceu afeta nossos valores e  o que nós queremos fazer diante disso. 

Os seus valores podem ser uma boa bússola para guiar seus dilemas

Na tentativa de ponderar se um erro é aceitável, perdoável ou corrigível, aqui vão algumas perguntas: primeiro precisamos diferenciar o que é uma quebra de confiança e o que é um crime.

Depois também vale pensar se foi um erro pontual da pessoa, ou se esse mesmo cara está sempre errando, pedindo desculpas e errando novamente. Se for esse o caso, a situação muda de figura, sua tolerância pode ser menor. Em todos os casos vale considerar quais valores são inegociáveis para você? Esse amigo que errou, no geral, tem vivido de acordo com esses valores, ainda que hajam tropeços? Ou ele tem violado constantemente esses valores nas relações com você e com as outras pessoas?


publicado em 07 de Dezembro de 2022, 18:42

Gabriella Feola

Editora do Papo de Homem e autora do livro <a href="https://www.amazon.com.br/Amulherar-se-repert%C3%B3rio-constru%C3%A7%C3%A3o-sexualidade-feminina-ebook/dp/B07GBSNST1">Amulherar-se" </a>. Atualmente também sou mestranda da ECA USP