Eu tenho dois amigos, o Abraão e o Gerson, que são mais ou menos o que eu seria se eu não me preocupasse tanto com o que os outros vão pensar do que eu digo e faço. Eles são como clones meus que não tentam ser diplomáticos e políticos, que não tentam agregar grupos e gostos diferentes.
Eles são mais radicais do que eu. O Abraão, por exemplo, não gosta de Friends; e o Gerson (na verdade os dois) não gosta de Los Hermanos.
Eu gosto tanto de Friends quanto de Los Hermanos.
Sabe do que mais eu gosto? De (500) Dias Com Ela. O Abraão detesta. Ele prefere Alta Fidelidade. (Filme de que eu também gosto, e muito.) Nunca tínhamos discutido isso, mas, um dia, em um bar de Fortaleza – enquanto esperávamos a boa vontade do garçom para nos trazer mais uma cerveja e dividíamos a mesa com a Paola e a Juliana, que falavam algo sobre a Deborah Blando – o Abraão me revela, delicado como o cabo de um facão que cortou cana o dia inteiro, que (500) Dias com Ela é filme de menina e que Alta Fidelidade é que é filme de macho.
Não sei se foi com essas palavras, mas foi algo bem próximo disso.
Eu havia reassistido a (500) Dias Com Ela havia alguns dias e confirmado meu apreço pelo filme. Então tentei defender suas qualidades. Sem sucesso. Aliás, eu nunca consegui convencer o Abraão de nada (por exemplo, de que Trainspotting é claramente melhor que Clube da Luta e que o Ferroviário de 1994-1995 é melhor que o Barcelona de 2010-2011). Eu já havia visto Alta Fidelidade uns anos antes de Marc Webb dar à luz (500) Dias Com Ela e sempre gostei do filme estrelado por John Cusack, mas nunca me veio a ideia de que os dois têm semelhanças. Até que…
Não sei qual a intenção do diretor, mas 500 Dias com Ela é Alta Fidelidade fagocitado e cuspido para espectadores uma década mais novos. Continuo gostando da história de Tom e Summer, mas é inevitável perceber as nítidas referências a situações, cenários e partes do roteiro do filme de Stephen Frears. E no melhor estilo Rob Gordon (quem viu Alta Fidelidade sabe a importância que o Rob Gordon, o protagonista do filme, dá ao hábito de fazer listas), a seguir um TOP 5 dessas referências, que o Abraão com certeza chamaria de “cenas CHUPADAS descaradamente”, assim, com Caps Lock e tudo.
1. O pop-rock como culpa do sofrimento
Rob Gordon, em uma das primeiras cenas de Alta Fidelidade, encara o espectador e diz que a culpa do sofrimento são os filmes e as músicas de pop rock. Inclusive questiona: “quem veio primeiro: a música ou o sofrimento?”.
Em (500) Dias Com Ela, o narrador, ao apresentar o personagem de Joseph Gordon-Levitt, cita a música pop britânica e a total falta de compreensão do filme A Primeira Noite de um Homem como a razão pela qual Tom acredita no amor.
2. A famosa cena “Expectativa/Realidade”
É verdade que a cena Expectativa/Realidade de (500) Dias Com Ela é ótima e a trilha que a acompanha contribui muito pra que ela seja memorável e compartilhada Facebook afora – provavelmente devido à bagagem que Marc Webb tinha como diretor de videoclipes.
Mas essa cena não é nada além de uma versão mais elaborada e bonitinha daquela em que o Ian vai à loja do Rob pedir a ele que pare de ligar para Laura, e então Rob começa a imaginar diversos desfechos diferentes para a situação.
3. Os amigos
Assim como Rob, Tom também tem dois amigos estranhos. E nesse aspecto (500) Dias Com Ela não chega nem perto de Alta Fidelidade, pois os amigos de Tom são bem menos relevantes para a trama do que de Rob. Isso se deve, não principalmente, mas muito, à atuação de Jack Black como Barry em Alta Fidelidade.
Ainda assim, protagonista com dois amigos coadjuvantes importantes.
4. Arquitetura
Em determinada cena de Alta Fidelidade, Rob entra em seu apartamento e Laura está na cozinha lendo uma das várias listas que ele já fez. É um TOP 5 Empregos dos Sonhos. Um deles é trabalhar como arquiteto. O mesmo desejo tem o protagonista de (500) Dias Com Ela, desejo esse que Summer traz à tona.
Entre tantas profissões possíveis, os dois precisavam mesmo ter interesse pela mesma disciplina?
5. O casal que tem os mesmos gostos
Numa conversa com Rachel, sua irmã precoce, pré-adolescente e confidente, Tom fala que Summer tem gostos muito parecidos com os dele, como a banda Smiths e o pintor Magritte. Rob, por sua vez, no apartamento de Marie de Salle, diz que o que importa é do que gostamos e não o que somos.
Há outras referências além dessas cinco, como:
- citações de músicas do disco The Boy with the Arab Strap, do Belle & Sebastian;
- os protagonistas dançando depois de uma realização;
- alusões aos Smiths e ao Bruce Springsteen;
- o fato de tanto Rob quanto Summer terem namorado uma garota chamada Charlie na faculdade;
- a cena em que, ao fim de um encontro, Rob e Tom vão para um lado do caminho e a garota com quem estavam vai para o outro;
- o cenário da loja de discos, onde acontecem boa parte das cenas de Alta Fidelidade (pois Rob é dono de uma), e onde Tom mostra a Summer um disco do Ringo Starr (pois ela, em uma cena anterior, afirmara que o baterista era seu Beatle preferido e que Octopus’s Garden era a melhor música dos Fab Four).
Isso não significa, claro, que (500) Dias Com Ela não seja original. É um filme bem montado, bem fotografado, bem dirigido, com ótima trilha sonora e atuações sensacionais.
Mas o cinema, a música e a arte de um modo geral é repleta desses casos. Basta comparar Picasso e Matisse, Beatles e Oasis, Quem Quer Ser um Milionário e Cidade de Deus. O Abraão vai continuar dizendo que (500) Dias Com Ela é filme de menina – em certa medida, até é –, e, como em qualquer uma de nossas conversas, eu acabo concordando com ele.
Até porque, como disse Renato Russo: “quais são as palavras que nunca foram ditas?”
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