Era um dia de domingo de muito calor em Santos, litoral de São Paulo. Minha mãe estava grávida de seis meses e por conta de enjoos, tonturas e outros sintomas, tinha se levantado bem cedo. Meu pai, acordou um pouco mais tarde bem a tempo de ir para a frente da televisão acompanhar a corrida de fórmula 1, como era comum nos lares brasileiros da época.

Ayrton Senna corria pela Williams na temporada de 1994. Aquela altura, ele já era tricampeão mundial, desfrutava do status de maior ídolo do esporte nacional e tinha o poder de arrastar multidões para a frente da TV. Meu pai, apesar de ter trabalhado em oficinas mecânicas quando jovem, não era um profundo entendedor de automobilismo, mas não tinha quem resistisse às grandes performances do brasileiro na principal categoria de corrida de carros do mundo.

Era 1º de maio e o gosto amargo do feriado ter caído num domingo só piorava. Os mesmos sintomas que fizeram minha mãe levantar cedo, faziam com que ela continuasse passando mal pela manhã. Meu pai e minha irmã mais velha faziam o que podiam para socorrê-la, mas nada parecia ser o suficiente. Estavam preocupados.

De repente, sentados à mesa do café da manhã, tentando fazer alguma coisa parar no estômago da minha mãe, os três viram a imagem do acidente. Senna tinha entrado na curva Tamburello do famoso circuito de Ímola, na Itália, mas não tinha saído dela. No meio do caminho sua barra de direção quebrou e impediu que ele completasse a curva de alta velocidade resultando numa colisão frontal com um muro de concreto, ao que tudo indica, numa velocidade de 200 km/h.

As câmeras de transmissão rapidamente se focaram no carro da Williams destruído e chegaram a captar um movimento do piloto com a cabeça. Segundo relatos, aquilo fez com que as pessoas acreditassem que ele estavam bem, mas meu pai, que também não é um profundo conhecedor da medicina, temeu pelo pior:

"Hmm, não sei não…"

Simultaneamente, minha mãe lhe cutucou no braço e disse:

"Me leva pro hospital que eu acho que o Breno vai nascer."

Morre um piloto

A premonição de minha mãe, felizmente, não estava certa. Fui nascer alguns meses mais tarde, próximo da final da Copa do Mundo daquele ano – mas isso é assunto pra outro dia. O susto não tinha passado disso mesmo: um susto.

Já a premonição de meu pai, infelizmente, estava. Senna foi socorrido na pista por uma equipe médica, depois encaminhado ao hospital mais próximo de helicóptero, onde foi anunciado morto algumas horas depois. Era o Brasil perdendo seu maior esportista no auge da carreira. A comoção, naturalmente, foi gigantesca.

Perdi a conta de quantas vezes ouvi a história do dia que eu quase nasci sendo contada, mas devo ter ouvido a história do dia que Senna morreu até mais vezes. Tudo isso foi ajudando a compor a imagem mental que tenho daquela sucessão de acontecimentos. Mas para quem não havia nascido naquela época, como eu, é difícil imaginar a dimensão da idolatria que as pessoas tinham por ele.

Assim como meu pai, eu também não nutro um profundo conhecimento sobre automobilismo, mas sei que o efeito-Senna fez com que os brasileiros continuassem assistindo corridas de fórmula 1 durante muitos anos mesmo sem nunca mais ter tido um campeão mundial como ele e os que vieram antes dele.

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Me lembro de ter visto inúmeras corridas do Rubinho e comemorado algumas de suas vitórias. Lembro-me de ter acompanhado de perto o título que Felipe Massa ganhou em 2008, no Brasil, por apenas alguns segundos. Mas, admito, eu nunca tive a sensação e a relação com a fórmula 1 que gerações anteriores a minha tiveram.

A maneira apaixonada e admirada com que as pessoas contam a história e Senna, porém, já me fizeram revisitar muitos momentos da carreira e da vida do piloto que nunca vi ao vivo. As batalhas que ele travou com adversários como Alain Prost, as voltas rápidas que só ele era capaz de fazer na chuva, as manobras ousadas que desafiavam os limites de seu carro, as ultrapassagens que entraram para os melhores momentos 'all time' das história da fórmula 1 e as inúmeras voltas da vitória, com invasão de pista, bandeira do Brasil em riste, discursos patrióticos inflamados e uma idolatria poucas vezes vista na história deste país, o que é justamente o ponto deste artigo.

Nasce um herói

Desfile do caixão em carro aberto, enterro transmitido em rede nacional, apresentadores sisudos chorando ao vivo, programas que nem tinham relação com esporte fazendo minutos de silêncio e discursos de conforto à família, reportagens especiais a cada aniversário de vida e de morte, um instituto criado postumamente em seu nome e diversos rankings internacionais que, entra ano, sai ano, colocam seu nome no mais alto patamar da história do automobilismo. É uma repercussão que a gente não vê mais hoje em dia.

Recentemente, a gente viu algo parecido após a tragédia com a Chapecoense. Em outros momentos, talvez com a morte de Hebe Camargo ou dos Mamonas Assassinas. Mas me parece que nada se compara com o que aconteceu com Senna, o que me leva a pensar que talvez Senna ocupe o lugar de último herói brasileiro.

Você deve concordar comigo que não vivemos tempos de muitas unanimidades. No dia que Pelé morrer, por exemplo, espero que a repercussão seja tamanha ou maior, mas ainda assim Pelé terá vestido a camisa de um clube e por isso mesmo marcado gols e feito jogadas que fizeram torcedores de outros times sofrerem. Ele não desfruta do privilégio de Senna de ter competido a vida inteira num esporte no qual sua única camisa era a do Brasil.

Falta um ídolo que "una todas as tribos"?

Nesse ano, quando completou-se 23 anos do meu quase nascimento e da morte de Senna, os termômetros/relógios de rua da cidade de São Paulo mostravam a frase #SennaEterno Herói Brasileiro.

A recordação de toda essa história e o termo um tanto quanto esvaziado ultimamente "herói brasileiro" me chamaram a atenção. Será preciso ver um outro esportista morrer tragicamente no exercício de sua função e ainda jovem para termos um novo herói? Será possível que os nossos novos posicionamentos permitirão o nascimento de uma nova unanimidade nacional? Será que estamos sendo menos simplistas, individualistas e imediatistas? Ou estamos sendo mais invejosos, intolerantes e céticos?

Isso eu não sei te responder, mas sei que dificilmente algum de nós viverá pra ver outro Ayrton Senna acontecer.

Link Youtube – A "melhor primeira volta" da história da Fórmula 1.

Link Youtube – Senna vencendo pela primeira vez no Brasil.

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Mais que um jogo é uma coluna de autoria de Breno França que usa acontecimentos esportivos para propor reflexões sobre aspectos importantes de nossas vidas.

Breno França

Editor do PapodeHomem, é formado em jornalismo pela ECA-USP onde administrou a <a>Jornalismo Júnior</a>