Ontem, o Supremo Tribunal Federal (STF) iniciou o julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54 (ADPF 54), ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde (CNTS), na qual se alega que a persecução penal às mulheres grávidas de fetos anencefálicos equivale a tratamento desumano e degradante, comparável à tortura.
Em termos práticos, vota-se para descriminalizar o aborto de fetos em que não há formação de cérebro.
Pela configuração político-jurídica atual, é natural que o STF seja chamado a decidir temas sensíveis relativos aos Direitos Humanos, colocando-o no centro do debate político. É só pensarem no julgamento do reconhecimento da união homoafetiva (ADI 4277 e ADPF 132) e no caso da liberação das pesquisas com células-tronco (ADI 3510).
Vou tentar, de forma clara e simples, explicar qual é o papel atual dessa instituição para que vocês possam fazer uma leitura mais segura de futuros julgamentos. E vou aproveitar para analisar alguns aspectos dos votos proferidos ontem.
O STF como guardião da Constituição e o papel contramajoritário
Um dos primeiros aspectos que costumam causar dúvidas quando se analisa a atividade recente do STF é quanto ao papel do Tribunal. Todos sabemos que só se pode fazer ou deixar de fazer alguma coisa por causa do que está escrito em lei. Assim, como é que um órgão do Judiciário acaba, na prática, decidindo se as mulheres podem abortar ou se os homossexuais podem constituir unidades familiares sem que isso esteja na lei?
Ocorre que cabe ao STF a guarda da Constituição da República, que é o fundamento de validade de todas as outras normas. Se a aplicação de uma lei acabar configurando uma situação contrária a uma norma ou preceito da Constituição, o STF pode ser provocado para:
- retirar a norma do mundo jurídico; ou
- estabelecer uma interpretação dela que harmonize a aplicação com a constituição.
Com isso, desde que devidamente provocado, o STF pode anular ou influir em praticamente qualquer ato do poder público que destoe da Constituição. Suas decisões se aplicam a toda a sociedade e são insuscetíveis de revisão, a não ser por eles mesmos.
Vou frisar este ponto. O STF pode anular atos de qualquer um e só se submete à sua própria autoridade. São onze velhinhos, escolhidos por diversos Presidentes da República, que podem anular uma Lei elaborada, bem ou mal, por parlamentares que estão ali por terem recebido milhões de votos.
Esse poder foi se consolidando na medida em que o Legislativo foi caindo vítima da própria paralisia. Em uma democracia de verdade, era de se esperar que o Legislativo trataria de introduzir as inovações no sistema jurídico e o Judiciário se limitaria a resolver as crises sociais conforme as normas que fossem democraticamente elaboradas. Mas nosso Parlamento está muito preocupado com bicheiros e outros assuntos mais importantes.
Como os Direitos Humanos não podem esperar, a responsabilidade cai sobre o STF.
Ocorre que, ao julgar se a lei está de acordo com a Constituição, os ministros do STF agem conforme o convencimento que tiverem, o que não necessariamente deve coincidir com o pensamento da maioria da população para que a decisão tenha legitimidade. Nesses casos, o STF abre a possibilidade de participação a grupos representativos das correntes de pensamento em conflito.
Isso abre uma nova dimensão de participação democrática. Enquanto os gays estão subrepresentados no Congresso (acho que o Jean Willys deve ser o único assumidamente gay), eles possuem a mesma força argumentativa no STF do que os grupos conservadores. Isso permite ao STF corrigir eventual abuso majoritário (representativo da maioria da população) do Poder Legislativo, atuando como Poder contramajoritário (amparando interesses das minorias).
Pois é. Democracia não é só o império da vontade do maior número de pessoas.
O julgamento e as falas dos ministros
A ADPF 54 busca definir se a persecução penal da mulher que pretende interromper a gravidez de feto anecéfalo equivale a tratamento desumano e degradante, como se fosse tortura, violando a dignidade da mulher.
O conceito-chave aqui é dignidade da pessoa humana, e ele corresponde àquelas palavras “gordas” nas quais você pode enfiar o que você quiser. No âmbito do Estado Democrático, garante-se ao indivíduo a “busca pela felicidade”. Nesse contexto, dignidade pode ser entendida como a qualidade daquele que pode definir o que lhe é necessário. O mendigo não é indigno porque é pobre, mas pode ser indigno por lhe terem sido retiradas ou negadas as condições materiais – saúde, educação, seguridade social – por meio das quais se exerce a liberdade. Nesse contexto, quantos ricaços prisioneiros do próprio status não vivem na mais pura indignidade?
Então, a questão é se as mulheres podem decidir se lhes é necessário ou não interromper a gravidez no caso do feto ser diagnosticado com anencefalia.
Do outro lado da questão teríamos a proteção à vida do feto. Essa questão foi enfrentada pelo STF, até então, nos seguintes termos:
“Aborto é crime contra a vida. Tutela-se a vida em potencial. No caso do anencéfalo, não existe vida possível. O feto anencéfalo é biologicamente vivo, por ser formado por células vivas, e juridicamente morto, não gozando de proteção estatal.” – Ministro Marco Aurélio.
Ao adotar este posicionamento, o STF acaba definindo que o direito à vida não se realiza apenas garantindo a existência biológica, mas com a preocupação com a viabilidade de uma existência digna. Se o feto anencéfalo não chegará a desenvolver consciência, não será nunca capaz de decidir o que lhe é necessário, não recebe a proteção jurídica de ser humano. É de raciocínios como esse que os grupos conservadores têm medo, uma vez que podem ser transportados para outros casos sensíveis, como os da eutanásia e do aborto de fetos antes do desenvolvimento do sistema nervoso.
Por isso não se fala em aborto do anencéfalo. Aborto é crime contra a vida. Como o anencéfalo não chega propriamente a viver, o que se diz é interrupção terapêutica.
Mas foi quando confrontado com o argumento de que a continuidade da gravidez teria utilidade pela produção de órgãos que poderiam ser transplantados para outros fetos que o ministro Marco Aurélio brilhou:
“A mulher, portanto, deve ser tratada como um fim em si mesma, e não, sob uma perspectiva utilitarista, como instrumento para geração de órgãos e posterior doação. Ainda que os órgãos de anencéfalos fossem necessários para salvar vidas alheias – premissa que não se confirma, como se verá –, não se poderia compeli-la, com fundamento na solidariedade, a levar adiante a gestação, impondo-lhe sofrimentos de toda ordem. Caso contrário, ela estaria sendo vista como simples objeto, em violação à condição de humana.”
Isso pode até parecer óbvio, mas afirmar, na mais alta corte de justiça do país, que “a mulher deve ser tratada como um fim em si mesma” é uma declaração impactante. Por isso não cabe a afirmativa de que o STF está impondo uma obrigação às gestantes. Ele está reconhecendo a autodeterminação das mulheres.
Outra premissa importante foi estabelecida quando se disse que a proteção da dignidade da mulher é tão relevante quanto a proteção à vida. É por esse motivo que, mesmo quando o feto é viável – tem condições de nascer com vida –, autoriza-se a interrupção da gravidez quando ela resulta de estupro ou quando há risco de vida para a mãe.
“Parece-me lógico que o feto sem potencialidade de vida não pode ser tutelado pelo tipo penal que protege a vida. Estamos a tratar do mesmo legislador que, para proteger a honra e a saúde mental da mulher, estabeleceu como impunível o aborto provocado em gestação oriunda de estupro, quando o feto é plenamente viável.” – Ministro Marco Aurélio
Nesse ponto, eu concordo com George Carlin quando ele critica a posição conservadora em relação ao aborto.
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De fato, as mesmas pessoas que costumam defender o feto com unhas e dentes são aquelas que são contra políticas assistencialistas aos mais necessitados. Enquanto se é feto, você tem direito a toda a proteção possível. Depois? Depois incide a autonomia privada e a meritocracia, então é melhor correr.
O voto divergente do ministro Ricardo Lewandowski e a ladeira escorregadia
O julgamento estava em 5 a 0 no sentido de se permitir a interrupção da gestação do feto anencéfalo quando o ministro Lewandowski abriu a divergência. Segundo ele, o STF não poderia avançar na questão, pois a lei seria bastante clara na sua proibição do aborto e na estipulação de exceções, dentre as quais não estava inserida a hipótese de anencefalia do feto.
O fundamento foi o in claris cessat interpretatio: na clareza cessa a interpretação. O vulgo “a regra é clara”, do Arnaldo César Coelho. Isso me parece furado, por duas razões:
1. Seria ótimo que o Legislativo resolvesse a questão. Sério. Os parlamentares contam com maior legitimidade democrática – afinal, foram eleitos pelo povo. Mas sabemos que o Legislativo brasileiro é inerte. Consta que o próximo Código Penal já vai descriminalizar a interrupção da gestação do anencéfalo. Ora, o projeto do novo Código Penal já está pronto, mas nunca é colocado em votação! Enquanto isso, a realidade não espera.
2. Se “na clareza cessa a interpretação”, me digam como foi que o STF leu isso aqui
Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
e entendeu que quando a Constituição diz “homem e a mulher”, considera-se que ela diz também “entre pessoas do mesmo sexo”? Melhor então o ministro Lewandowski dizer que “na clareza cessa o judiciário”.
Mas esse receio do voto do ministro tem a sua explicação representada pela “teoria da ladeira escorregadia”. Ao contrário do que ocorre com o processo legislativo, as decisões judiciais evidenciam ponto a ponto as razões de se impôr determinada regra em determinado caso. E essas razões podem ser transportadas para casos semelhantes.
Uma vez que se estabelece a atividade cerebral como critério para se considerar alguém vivo, há um fundado receio de que a eutanásia ou o aborto no primeiro trimestre sejam liberados. Daí a tal “ladeira escorregadia”: permite-se uma coisa e outras vão lhe seguindo, como que por inércia.
Há países em que o aborto de crianças com síndrome de Down é prática corriqueira. Se considerarmos que a interrupção da gestação do anencéfalo é feita por razões de eugenia (e não pela dignidade da mulher), dá pra entender o medo dos conservadores.
Agora podemos começar a conversar
Enfim, com isso acho que temos o arsenal básico para encarar essas e outras discussões no Supremo. Hoje a votação segue. A tendência é que a tese da possibilidade da interrupção da gestação do feto anencéfalo seja vencedora. Eu aposto num 8 a 2. Aguardo os comentários dos leitores para continuarmos o papo.
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