Tudo começa com a tela escura e o som de bichos voando, zanzando, e se comunicando no que poderia ser uma mata fechada.
E corta para o silêncio.
O novo filme de Martin Scorsese, aquele que ele levou vinte e oito anos para se concretizar, vai trabalhar isso todo o tempo: nossas dúvidas são mais assertivas que a nossa certeza. E mesmo sem querer passar lição de moral alguma, como é costumeiro em seus trabalhos, em tempos de convicções ultrapassando a importância dos fatos – bem vindos aos dias da pós-verdade -, mostrar a imprecisão das nossas fés é de grande ajuda.
Em Silêncio, dois padres jesuítas vão ao Japão de 1640 para resgatar o antigo mentor deles, que em relatos fora dito ter se afastado das práticas cristã. Andrew Garfield é Sebastião Rodrigues e Adam Driver, o qui homão da porra do momento, é Francisco Garupe, homens de fé que partem para a ilha do extremo Oriente em uma época de opressão contra os catequizadores católicos. Nos últimos anos, quem adotasse o cristianismo como religião sofria perseguições e violências, eram torturadas e mortas se não renegassem a nova crença enquanto padres eram capturados e mortos por tentarem alastrar os dogmas europeus naquela parte da Ásia.
O cineasta faz o filme se alimentar dessa dualidade de certezas e dúvidas, tanto das personagens quanto as nossas, como expectadores. No início, quando a confiança do sucesso dos dois reverendos é a mais estável possível, tudo o que temos na chegada deles no Japão é escuridão e névoa, uma neblina densa que permite que ouçamos, mas não nos deixa ver com clareza. Logo que a retomada das práticas católicas vão se estabilizando nos pequenos vilarejos do litoral, a chuva atrapalha, as missas são feitas quase no breu, as conversas ocorrem no meio da plantação, sem visão plena, com a audição comprometida. Essa composição de mostrar as convicções deles nos dando hesitações é a grande peça, tanto aqui quanto mais pra frente, quando tudo se inverte e, conforme a confiança em Deus vai ficando mais abalada, mais claridade temos, mais o silêncio se faz constante, áspero, incômodo (o filme praticamente não tem trilha sonora).
A crise da fé. Quando jovem, Scorsese esboçou a tentativa de ser padre por pouco mais de um ano. Sua vontade de filmar Silêncio há tanto tempo, com roteiro adaptado do livro escrito por Shusaku Endo em 1966, vem dessa construção de "falhas" religiosas, do constante virar de mesa entre o acreditar e o duvidar, assim como seu personagem Kichijiro (Yōsuke Kubozuka) faz durante toda a trama, ligando bem esses altos e baixos, uma versão inocente da própria oscilação vista nos dois sacerdotes portugueses.
Silêncio é teatral na fala (as entoações nos diálogos e o tempo das conversas), é clássico na maneira de ser filmado (muita estática e takes que lembram pinturas), é um filme dirigido sem a tentativa de fazer autorreferências ao trabalho consagrado do diretor, fugindo das câmeras e e respiros de Taxi Driver, Os Bons Companheiros, O Lobo de Wall Street. Martin Scorsese é um profissional de coragem que, já com mais de quarenta anos, prefere intercalar seus filmes nova iorquinos com tentativas de homenagear outros cinemas (como fez com A Ilha do Medo, Hugo, agora com Silêncio), dessa vez o japonês de Akira Kurozawa e Yasujirō Ozu.
E nessa convicção em mudar, em sair de seu eixo confortável, Scorsese nos imputa a dúvida da qualidade real de seu trabalho, o que é muito proveitoso e positivo.
A certeza que fica é que, por mais que ele ande por vales de sombra, não precisamos temer porque Scorsese vai nos entregar um baita filme.
Amém.
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