O desafio dos homens negros como um todo é sobreviver. Basta olhar os dados do Atlas da Violência: 70,7% das vítimas de assassinatos no Brasil são homens negros. De 2011 a 2021, o número homens negros mortos por violência no Brasil aumentou 11,5%, já entre homens brancos a taxa caiu 12,9%.

É urgente a agenda de buscar soluções para o enfrentamento do genocídio, cárcere, situação de rua e avançar nos cuidados com a nossa saúde mental. Não dá para aspirar dias melhores sem pensar em como enfrentar, na prática, essa agenda desafiadora. 

Mas para além da luta por sobrevivência, queremos, sim, encontrar caminhos para viver bem e sonhar com dias melhores. 

Photo by Jed Villejo on Unsplash

Existe, no Brasil, um forte vínculo de boicote, hostilidade e medo das masculinidades negras. Para dar um exemplo disso que chamo de boicote:

A marca Boticário fez uma campanha mostrando uma família (dita “tradicional”) composta por pai, mãe e filhos negros. Eles moravam em uma casa legal, com poder aquisitivo, se divertiam, conversavam… Tudo de uma maneira muito natural. Uma cena que deveria ser comum num país que, como o Brasil, tem 56% da população negra. (IBGE, 2016)

https://cdn.iframe.ly/api/iframe?url=https%3A%2F%2Fexame.com%2Fmarketing%2Fo-boticario-poe-familia-negra-em-comercial-e-os-racistas-nao-gostaram%2F&key=e6a82a3187193e35da6276eca978f2f1&v=1&app=1

Não demorou muito para que o racismo ganhasse forma e parte das pessoas – basicamente pessoas brancas — não se conformaram com uma família preta sendo exemplo nos meios de comunicação. O imaginário social não nos aceita como detentores de boas práticas familiares, de prosperidade e felicidade.

Nesses momentos, fica evidente o clima de boicote que se nota através dos meios de comunicação, artístico e intelectual. 

Frantz Fanon dizia: “não somos homens, nem humanos”.

A cruel realidade é assim que o  imaginário social enxerga a nós, homens negros. Somos homens, mas sem gozar das delícias atribuídas ao masculino prestigiado que percebe nos homens brancos, hetero, cisgênero e detentores de posses.

Estamos em um longo processo de resistência. Pensar de forma coletiva é a chave para nossa sobrevivência. Resistir é estar organizado junto a nossa comunidade. 

Avançaremos nas nossas questões prioritárias, buscando o fim das violências contra os nossos. E faremos isso na medida que vamos expondo as nossas vivências, transformando o contato com o mundo, voltando nossa atenção para nossa comunidade, estando em união com nossas mulheres negras. Faremos isso desenvolvendo todo um senso de coletividade que se perdeu no tempo.

As masculinidades negras expõem nossas dores, medos e traumas. 

A nossa subjetividade passa pelos sentimentos mais humanos, ainda que não nos vejam como humanos: o medo, a dor, a tristeza e a saudade fazem parte do que somos.

E, dentro desse contexto, podemos dizer que somos o grupo sociorracial que é constantemente derrotado pela barbárie. Nossa missão central é humanizar corpos que são desumanizados. As referências positivas nos ajudam a construir representações dentro das masculinidades negras.

O escritor costa marfinense, Ahmadou Kourouma, nos presenteia com referências, com quatro arquétipos positivos de homens negros: o griô, o ferreiro, o príncipe e o caçador.

Uma representação do Griô
  • O griô representa o homem negro conciliador, o artesão da palavra com grande poder inventivo, um homem que preza pela capacidade intelectual, não pela força bruta e truculência, antítese do estereótipo do homem negro violento e estúpido que o imaginário social nos coloca. 
  • O ferreiro que é um sábio e conhecedor dos mistérios do mundo. Esse arquétipo é totalmente hostil a noção dos incultos negativos que os homens negros carregam. 
  • O príncipe simboliza o senso de responsabilidade com seu povo: educação e liderança. O príncipe é uma figura que contrapõe o estigma do homem negro violento, bêbado, irresponsável e imaturo. Hostil ao imaginário social que nos coloca como homens emasculados.
  • O caçador que é zeloso e protetor da sua comunidade, provendo-a de alimentos e cura. Esse arquétipo não admite a ideia do homem negro negligente, que também é uma marca visível quando falamos de estigmas e estereótipos na visão do branco.
Leia também  Sugerimos que usem fotos e nomes reais ao comentar

Esses arquétipos nos ajudam dar forma para algumas figuras importantes que podem balizar as vivências dos homens negros dentro das masculinidades. Nos ajuda a desmistificar todas essas narrativas que, o tempo todo, apontam para o homem negro como vilão. Precisamos deixar evidentes as rachaduras dentro dessa luta entre masculinidade prestigiada e desprestigiada. A primeira tira da segunda todo prestígio desses outros grupos de homens que fogem ao modelo hegemônicos, os homens negros, os homens LGBTI+, os homens trans, homens com deficiência, etc.

Dito isso, hoje, a manutenção das nossas vidas é, de fato, a nossa agenda mais desafiadora. 

O estado e sociedade interdita e limita a nossa fruição, nossa liberdade, nosso desfrutar. Coisas essenciais para que nos estabeleçamos dentro de toda estrutura social. 

Não é fácil ser o homem que mais morre e que menos ocupa posição de prestígio na sociedade. 

Portanto, neste dia 20 de novembro reafirmo a importância de retomarmos a nossa narrativa, para que a gente possa construir positivamente um legado ancestral (pois, certamente, seremos ancestrais dos que virão). 

E para você branco antirracista, que pensa na questão da equidade interseccional, é preciso que exista de fato uma evolução individual, que entendam seus privilégios e, dessa forma, enxerguem que o País é forjado e banhado pelo racismo e preconceito. Só entendendo esse mecanismo e se despindo dos privilégios poderemos avançar no compromisso por uma sociedade mais justa.

Portanto é preciso que a branquitude se articule, na prática, de forma conjunta para combater a desigualdade, a falta de equidade interseccional.

Essa desigualdade mata, e mata mais se esses corpos forem de pessoas pretas. Não usem apenas esse dia para refletir as questões raciais. Usem esse dia para pensar e botar em movimento ações por mudanças concretas. 

Aos homens negros dessa diáspora, continuemos nos articulando de forma organizada e conciliadora, para que a nossa masculinidade não seja ultrajada por valores da branquitude. 

Referências que ajudaram na construção desse texto:

  • Interseccionalidade – Carla Akotirene.
  • Henrique Restier – Diálogos contemporâneos sobre homens negros e masculinidades.
  • JJ. Bola – Seja homem – masculinidade desmascarada.
sitepdh

Ilustradora, engenheira civil e mestranda em sustentabilidade do ambiente construído, atualmente pesquisa a mudança de paradigma necessária na indústria da construção civil rumo à regeneração e é co-fundadora do Futuro possível.