Circula por aí a notícia de que o Congresso estaria elaborando uma lei que tornará crime protestar durante a Copa, pois os manifestantes seriam considerados terroristas e punidos com até 30 anos de prisão. O que há de verdade nessa história?
O objeto desses boatos é o Projeto de Lei nº 728/2011, cujo texto original pode ser lido clicando aqui. O projeto declaradamente tem por objetivo “incrementar a segurança” na Copa de 2014. Ele foi proposto pelos Senadores Marcelo Crivella (também cantor gospel, com vários CDs de sucesso e líder evangélico), Walter Pinheiro e Ana Amélia Lemos, todos de partidos da base aliada, em dezembro de 2011, cerca de um ano e meio antes das manifestações de 2013.
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Portanto, a não ser que os senadores possuíssem uma bola de cristal, não dá para dizer que o projeto foi elaborado pensando em impedir os protestos e a atuação de grupos como os black blocs durante a Copa.
As poucas emendas (alterações no texto) posteriores ao projeto, que podem ser acessadas clicando aqui, não mudaram o texto original, mas apenas corrigiram aspectos superficiais da sua redação. Por outro lado, é verdade que a tramitação do projeto parece ter sido apressada após a onda de protestos que varreu o Brasil. Para entender como funciona a tramitação, é preciso saber que um Projeto de Lei vai sendo subsequentemente aprovado ou rejeitado por comissões temáticas (compostas por grupos de parlamentares) dentro do Congresso Nacional, dependendo do teor da matéria.
No caso do Projeto de Lei nº 728/2011, a partir de dezembro de 2011 (data de sua proposição) ele permaneceu na Comissão de Educação até o início de junho de 2013 (pouco antes dos protestos eclodirem). Ou seja, foram cerca de 18 meses em uma só comissão. Após os protestos, o projeto ficou apenas 1 mêsna segunda comissão que deveria aprová-lo, e só 2 meses na terceira comissão. O trâmite detalhado pode ser visto clicando aqui.
Claro, podemos atribuir essa repentina pressa ao simples fato de que faltam poucos meses para a Copa e esse evento é o objetivo declarado do projeto. Nesse caso, a urgência na tramitação não passaria da tradicional preguiça dos nossos congressistas, que deixam tudo para a última hora.
Mas resta uma pergunta: embora a lei tenha sido elaborada antes dos protestos e seu texto original não tenha sido alterado, há algum artigo que possa ser aproveitado para criminalizar a conduta dos manifestantes? Temos no projeto o artigo 4º, que define o crime de terrorismo (esse é o nome dado pelos senadores), condenando de 15 a 30 anos de reclusão quem “provocar ou infundir terror ou pânico generalizado mediante ofensa à integridade física ou privação da liberdade de pessoa, por motivo ideológico, religioso, político ou de preconceito racial, étnico ou xenófobo“.
É importante deixar claro que o crime não é para todos que produzirem terror ou pânico generalizado (termos bem genéricos, não?), mas sim para quem fizer isso mediante a prática de dois atos específicos: ofendendo a integridade física de alguém ou privando uma pessoa de sua liberdade.
Só essas duas condutas é que se enquadram no crime de terrorismo, e unicamente se seu resultado for a produção de terror/pânico generalizado. Além disso, a motivação da agressão física ou da privação de liberdade deve ser ideológica, política, religiosa ou decorrente de um preconceito.
E atenção: a pena é aumentada em um terço se, entre outras coisas, a agressão ou a privação de liberdade que produziu terror ou pânico generalizado for feita contra autoridade, ou com o uso de explosivos, fogo e arma química, ou então dentro de estádio de futebol em dia de jogo da Copa (é o que diz o parágrafo 2º do artigo 4º).
Analisando a lei, parece claro que, originalmente, a ideia era punir a atuação, no Brasil, de grupos terroristas internacionais que eventualmente quisessem aproveitar o evento para praticar algum delito de grande comoção mundial, como, por exemplo, matar o presidente de uma certa nação, ou explodir uma bomba dentro de um estágio cheio de torcedores de determinado país.
Porém, é possível que essa nova lei, se aprovada, venha a ser utilizada para tratar como terroristas os brasileiros que decidirem protestar durante a Copa da mesma maneira que protestaram em 2013?
É possível sim, embora isso dependa de uma interpretação muito forçada do conteúdo da lei. Afinal, um manifestante que atira uma pedra na direção de um policial durante um protesto (ambos participantes de uma mesma coreografia trágica) não estaria pelo menos tentando ofender a integridade física de uma autoridade? Se isso produz ou não pânico ou terror generalizado, é um bocado subjetivo, pois o conceito da lei é nebuloso.
Embora eu esteja certo de que grande parte da comunidade jurídica se recusasse a interpretar a lei nesses termos forçados, não podemos descartar que a interpretação dada pelos policiais municiados de cassetetes e armas fosse a mais desfavorável possível aos manifestantes, e são esses policiais que inicialmente decidem se determinado crime está sendo perpetrado em flagrante ou não.
Claro, é provável que após a prisão em flagrante algum juiz desqualificasse a acusação criminosa inicial e liberasse o manifestante. Mas, até lá, a polícia já teria conseguido facilmente debelar a manifestação, descendo o sarrafo e prendendo todos os que, segundo seus critérios subjetivos, fossem terroristas. Além disso, também é possível que essa interpretação distorcida da nova lei seja confirmada posteriormente por algum juiz mais rigoroso, predisposto a condenar os protestos em geral.
Quanto à privação da liberdade, já li gente dizendo que isso pode ser utilizado para tratar como terroristas os manifestantes que, por exemplo, fecharem uma via de acesso público. Essa é uma interpretação mais forçada ainda, pois o conceito de privação de liberdade aceito por nosso sistema jurídico-penal é aquele que caracteriza o crime de sequestro e cárcere privado (art. 148 do Código Penal), ou seja, de clausura ou de confinamento em um lugar fechado ou de difícil acesso (como em uma ilha).
Mas mesmo assim não há como garantir que as autoridades públicas, durante a Copa de 2014, venham a forçar a barra e conferir um entendimento mais abrangente para o conceito de privação de liberdade, a ponto de distorcerem o entendimento jurídico consolidado durante décadas.
É muito improvável, mas não impossível que, apesar dos futuros protestos de grande parte da comunidade jurídica, algumas autoridades (policiais, delegados, secretários de segurança pública e até mesmo alguns juízes) venham a dizer que houve privação de liberdade se alguém não puder ir a determinado local por causa das manifestações. Em nossa história de descalabros e abusos, nada surpreende.
Por outro lado, é verdade que parece haver um certo exagero nos boatos de que a lei foi criada para tratar futuros protestos na Copa como atos de terrorismo. Não podemos ser ingênuos. Assim como há aqueles que pretendem lucrar eleitoralmente com o sucesso da Copa de 2014, há aqueles que gostariam de lucrar com os protestos e com o fracasso do evento.
Ambos os lados pretendem nos manipular, ambos querem se aproveitar de nós, seja de nossa inação, seja de nossa participação em protestos. Quando alguém espalha o boato de que há uma lei destinada a reprimir os protestos, sem nos informar dos detalhes do fato, não estará tentando nos incitar a aderir às futuras manifestações? E com que objetivo? Vos cabe a resposta, leitor.
Nessa discussão, uma coisa é certa: nosso sistema jurídico já possui leis criminais suficientes para que sejam severamente punidos os casos típicos de terrorismo internacional (assassinato ou sequestro premeditado de um Chefe de Estado ou explosão de uma bomba dentro de um estádio, p. ex.). Não precisamos de novas leis.
E parece excessivo prever novos crimes apenas para um evento passageiro e excepcional. Aliás, essa capacidade que um evento esportivo como a Copa tem de alterar a legislação do Brasil não só em seus aspectos administrativos (regras diferenciadas para licitação) como até penais tem um aspecto um pouco surreal. Desconheço se todos os outros países que sediaram a Copa também alteraram sua legislação de forma tão profunda, mas se não for esse o caso, então começo a compreender porque o presidente da FIFA, Joseph Battler, disse que em nosso país o futebol é uma religião.
Será?
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