Além de arrotos e peidos, não temos noção da infinita variedade sonora que o corpo é capaz de produzir. Quando digo “corpo”, considero nosso ser como um todo, tento não pensar no corpo como se fosse uma casca de caramujo que a gente simplesmente habita.

Na época em que comecei a tatear o potencial musical do corpo, era apenas brincadeira. Não tinha nenhuma pretensão, talvez exatamente por isso a ludicidade da prática me deu prazer em estudar. Hoje integro o grupo STOMP.

A convite do Gustavo Gitti, compartilho um pouco das minhas explorações com vocês. Falo sobre o contexto, listo 12 jeitos de tirar som do corpo e ao fim deixo um exercício simples.

Percussão corporal não é só coisa de músico

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Voluntários ou involuntários, volumosos ou sutis, alguns sons estão tão incorporados no cotidiano que já nem conseguimos identificá-los como tais: ronco, palmas, assobio, estalo de dedo, respiração, espirro, esfregar de mãos, soluço…

Existem também aqueles que até chegamos a explorar um dia, geralmente quando crianças, mas já não usamos mais. Durante nosso crescimento, somos estimulados a usar certos tipos de sons e desencorajados a usar outros. Não só porque existem sons considerados culturalmente apropriados e inapropriados, mas também porque estipulam-se certos sons como padrão para se comunicar – a voz, por exemplo.

Sabendo que os sons do corpo existem potencialmente desde que o corpo é corpo, podemos assumir que os utilizamos desde nossas origens. Se pensarmos sob parâmetros evolutivos, a utilização do som como ferramenta de comunicação entre os indivíduos da espécie garante, entre outras coisas, articulação e desenvolvimento.

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O que muita gente também não sabe é que, além de instrumento de comunicação, os sons do corpo podem servir para outros fins.Nos últimos dez anos, mais atenção tem sido atraída para este tipo de olhar sobre as práticas que utilizam os sons corporais. Existem milhares de possibilidades e utilidades quando explora-se esse recurso, mas, em especial, há uma prática que faz muitos olhos brilharem. A “percussão corporal” é uma expressão que tem sido usada, não só em referência à prática de percutir partes do corpo, mas também para criar um jeito de olhar as técnicas que percutem o corpo, organizando os sons em uma estrutural musical.

A percussão, de modo geral, é uma prática bastante associada a culturas populares e a percussão do corpo acompanha este mesmo raciocínio. Em atividades de cultura popular, dança e música trabalham quase sempre juntas e, nesses ambientes, podemos encontrar vários tipos de percussão corporal. Em várias culturas, dá para observar a presença da percussão corporal como recurso sonoro e musical. Em cada lugar, ela é desenvolvida dentro de um estilo e, conforme analisamos seu tipo de técnica e nível de complexidade, podemos até identificar diálogos com o respectivo contexto cultural.

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O mais legal de conhecer um pouco de cada estilo é poder perceber o quanto um transbordou no outro. A contaminação das técnicas é um processo que, obviamente, não ocorre apenas neste tipo de ambiente, mas o interessante de perceber as influências de um no outro é exatamente poder desenvolver este exercício de reflexão, e expandi-lo a outros universos.

Quando conhecemos as diferenças entre as práticas que se utilizam da percussão corporal, de onde vieram e como se organizaram, podemos notar que contaminação de linguagens dentro da arte é um fenômeno que ocorre em todos os lugares. A mestiçagem, a contaminação, a hibridez e a pluralidade são fatores necessários para uma evolução efetiva e inteligente. Dá pra notar também que estamos sempre em constante transformação e que, ao contrário de alguns movimentos conservadores, é importante aceitar o não estabelecimento do conceito de pureza.

Listo abaixo práticas que utilizam a percussão corporal como recurso sonoro e musical, não necessariamente só na música, mas também na área da dança. Na verdade, em algumas práticas é difícil identificar se é música ou dança, e talvez isso nem importe tanto. Restrinjo-me ao âmbito da apresentação cênica, não toco ainda em áreas como musicoterapia, dinâmicas de grupo, educação musical e muitas outras que também desfrutam da percussão do corpo.

De acordo com a minha escolha pessoal, aqui estão alguns dos nomes e estilos mais importantes de percussão corporal. Esta é uma passada superficial, mas tentei detalhar um pouco sobre a origem, timbres explorados e coloquei um vídeo de cada estilo. Tecnicamente, considerei percussão corporal as técnicas que batem partes do corpo umas nas outras ou no chão.

Vamos ver algumas possibilidades para se fazer som com o corpo.

Gumboot

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Estilo de dança e percussão corporal nascido nas minas de ouro da África do Sul como um instrumento de comunicação entre os mineradores que eram proibidos de falar. Os caras trocavam ideias com frases rítmicas batendo as mãos nas botas de borracha.

Barbatuques

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Além de ser o nome do grupo, tornou-se o nome da própria técnica, desenvolvida inicialmente por Fernando Barbosa (“Barba”), criador e diretor do grupo. O método começou a ser explorado a partir da transposição dos sons da bateria para o corpo e se desdobrou em uma pesquisa, de níveis bastante sensíveis, da ampla variedade de timbres corporais, desde os percussivos até os vocais.

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Hambone (Juba Dance)

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Estilo de dança rítmica inventado por escravos afro-americanos que não podiam usar nenhum tipo de instrumento musical. Pelo fato de alguns escravos poderem se comunicar por meio da percussão de tambores, os comerciantes de escravos proibiram qualquer tipo de instrumento, o que acabou estimulando a utilização do próprio corpo. Nesta técnica, leves tapas no peito, coxas e pernas são combinados com batidas dos pés no chão e palmas.

Clogging

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Considerada como uma das primeiras danças urbanas, se originou durante a Revolução Industrial no Reuno Unido (“clog” é o tipo tamanco utilizado por milhões de trabalhadores naquela época). Há basicamente batidas dos pés no chão ou de um pé no outro. Esta técnica era utilizada como entretenimento, acompanhada de cantigas, e influenciou a criação da juba dance e do sapateado americano.

Tap dance (sapateado americano)

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Mistura de clogging, step dance irlandesa e juba dance, alterna entre linhas de pesquisa mais dançadas e linhas mais tocadas. As dançadas se aproximam do teatro musical da Broadway e as tocadas do jazz. No tap, as partes do corpo mais usadas são os pés, acompanhadas de eventuais palmas.

Stepping

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É uma linha das danças percussivas criada por fraternidades de estudantes universitários afro-americanos por volta de 1900 nos Estados Unidos. Passos, palmas e gritos de guerra combinam som e movimento de uma maneira bem interessante.

Stomp

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Além de ser o nome do grupo inglês que trabalha com percussão em movimento, também pode ser considerado o nome de um estilo de percussão corporal. Entre percussões de instrumentos não convencionais, o grupo também explora a percussão do corpo de uma maneira bastante original. Os shows possuem caráter cênico e de movimento bastante forte, e os timbres corporais mais usados são a batida dos pés no chão (botas), palmas e batidas nas coxas.

Flamenco

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Combinação de música, canção e dança, o flamenco se desenvolveu em Andalucia (Espanha) a partir grandes influências de grupos ciganos vindos da Romênia. Há tapas no corpo, mas a característica mais forte é a presença das palmas e frases rítmicas do sapateado. Sua principal fórmula de compasso é a de 12, com acentos nada convencionais aos ouvidos ocidentais.

Saman

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Estilo de dança da Indonésia que utiliza a percussão corporal de forma bem sutil, geralmente com um grande número de dançarinos para que as palmas e tapas se tornem audíveis a um grande público. Os dançarinos ficam de joelho e a percussão é feita nas palmas e costas das mãos, coxas e tórax.

Dança romena

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Dança folclórica desenvolvida principalmente na região da Transilvânia durante o período do feudalismo, em pequenas vilas, como uma atividade comunitária à disposição dos participantes, é geralmente trabalhada em roda ou em pare, acompanhada de instrumentos musicais e canto. A percussão corporal mais comum neste estilo explora estalos de dedo, pisadas no chão, batidas de mão nos pés, coxas e palmas de mão.

Dança cigana

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Com origem na Hungria e na Eslováquia, possui as mesmas influências que a dança romena, mas é organizada de modo diferente. O andamento é bastante rápido e as frases rítmicas são mais complexas. Os timbres corporais tocados são palmas, pisadas, tapas nos pés, coxas e peito.

Kathak

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Derivada da palavra “katha” (história, narrativa), é um estilo de dança do norte da Índia, que geralmente, conta uma história sobre a mitologia hindu ou sobre os famosos contos Mahabharata, Raymayana e Purana. Piruetas rápidas e posições estáticas são acompanhadas por instrumentos tradicionais hindus, como cítara e tabla. Os dançarinos usam guizos (ghungroo) nos tornozelos, batem os pés no chão e criam frases rítmicas que acompanham os padrões da música.

“Dum-chi-chi-dum-dum…” Tire um som do seu corpo agora

Pra você que chegou até aqui, provavelmente deve estar batendo uma vontade de se arriscar nessas descobertas sonoras. Se ainda não tem familiaridade, aí vai um esquema que pode te iniciar na técnica dos Barbatuques. É uma célula rítmica de 4 batidas. Quando chegar ao final da célula, volte ao começo e tente tocá-la de uma maneira fluente e cíclica:

1. Mão direita: batida no peito

2. Mão esquerda: estalo de dedo

3. Mão direita: estalo de dedo

4. Mão esquerda: batida no peito

Se você observar, é só alternar as mãos, não precisa necessariamente começar com a mão direita. Se quiser continuar desenvolvendo, é só ir substituindo os timbres por partes diferentes do corpo.

Junte uma galera para brincar!

Seguimos o papo nos comentários. Fico à disposição para ajudar quem quiser aprender um estilo desses. Mesmo os que parecem mais distantes, como o Gumboot, estão bem acessíveis aqui no Brasil.

Pedro Consorte

Pesquisador em som e movimento, integrante do show <a>STOMP</a>