388 anos de escravidão
É possível começar essa conversa pensando nos 388 anos de duração da escravidão das pessoas negras no Brasil. Quando olhamos para o que aconteceu com os escravizados, logo após a abolição, através do decreto da Lei Áurea, vamos perceber que essas pessoas foram expulsas das fazendas e saíram sem absolutamente nada.
“As pessoas negras foram excluídas do contexto histórico do Brasil por terem ocupado, durante muito tempo, a situação de escravizados, modo de trabalho considerado inferior, onde percebe-se a falsa crença por parte dos brasileiros sobre uma incapacidade do negro para o trabalho, além é claro de que após a “abolição”, eles continuaram sem acesso a qualificação exigida pela industrialização para ingressarem no mercado de trabalho. Assim, apesar dos escravizados terem sido libertos, a visão da sociedade sobre eles continuava a mesma, ou seja, eles continuavam invisibilizados perante à população não-negra.”
Duane Brasil Costa Uly Castro de Azevedo (2016) – Das Senzalas às Favelas: Por onde vive a população negra brasileira
Os escravizados recém libertos tiveram que procurar casa e emprego dentro de uma sociedade extremamente racista, que não estava disposta a inserir essas pessoas no funcionamento social ou criar mecanismos para isso. Alguns, não tendo outra escolha, ficaram com os seus patrões em troca de restos de comida e algum espaço para dormir.
“A partir do final do século XIX, a mão de obra negra escravizada passou a ser substituída progressivamente pela mão de obra branca imigrante decorrente de países europeus, como Alemanha, Espanha e Itália, dando forças assim à teoria do branqueamento, que incentivava massivamente a imigração europeia e excluía a mão de obra negra.”
Duane Brasil Costa Uly Castro de Azevedo (2016)
Desta forma, as pessoas negras tiveram que procurar lugares fora das regiões centrais para tentar reconstruir as suas vidas. E assim ocuparam os morros e espaços fora dos centros urbanos, dando início também ao que hoje entendemos como favelas.
“Apesar dos escravizados terem sido libertos, suas condições de vida e de moradia, pouco mudaram, o que se conclui, mais uma vez, que a abolição vivida pelos escravizados no Brasil foi inacabada”.
Duane Brasil Costa Uly Castro de Azevedo (2016)
Mas então o que são cotas raciais e para quê elas servem?
Com a ajuda do documento da CAAF (Coordenação de Ações Afirmativas) e da CIP (Coordenação de Inclusão e Permanência) da Universidade Federal de Goiás, podemos compreender que as cotas raciais são ações temporárias realizadas em alguns países com a finalidade de diminuir a desigualdade econômica, social e educacional entre pessoas de diferentes etnias raciais. Essas ações podem ser realizadas em diversos meios, mas é obrigatório e mais usado no setor público: ingresso em universidade, concursos públicos e banco.
Tramita também o projeto de lei 2067/21 que determina que a empresa contratada pela administração pública, para a execução de serviços, reserve pelo menos 30% dos postos de trabalho a empregados negros. A proposta foi realizada pela deputada Benedita da Silva e no momento aguarda a designação de relator na Comissão de Finanças e Tributação.
“Negros representam 70% da população que vive em situação de extrema pobreza, concentram maiores taxas de analfabetismo do que brancos – 11% entre negros e 5% entre brancos (Pnad, 2016) –, além de constituírem mais de 61% da população encarcerada (Depen, 2014), embora representem 54% da população (IBGE)”.
Afirma Benedita da Silva e os outros 29 deputados da bancada do PT responsáveis pelo projeto.
Portanto, as cotas raciais são uma medida de ação contra a desigualdade em uma sociedade que privilegia um grupo racial em relação ao outro. É importante destacar que as cotas raciais não se aplicam somente a pessoas negras. Em várias universidades existem cotas também para indígenas e seus descendentes.
Se duas pessoas que vivem em situações desiguais forem concorrer nas mesmas condições, a desigualdade será mantida, pois o esforço individual não será suficiente para uma concorrência justa. As cotas raciais seriam uma maneira de colocar essas pessoas no mesmo patamar de condições para concorrer. E isso de forma temporária, até que, socialmente, tenhamos oportunidades mais justas e igualitárias para todos.
As cotas são uma ação dentro de uma realidade na qual não partimos todos de um mesmo lugar de igualdade atrás das oportunidades de estudos, trabalho e saúde, por exemplo. Com isso, é possível compreendermos que parte das nossas conquistas individuais não são apenas mérito e esforço próprio, mas também uma soma das vantagens que temos devido ao lugar de classe, raça e gênero que ocupamos na sociedade. Uma conquista pessoal é a soma dos meus esforços com toda essa complexidade de igualdade e desigualdade social.
Essas ações afirmativas vão abrindo portas desde as cotas da graduação, pós-graduação até a inserção no mercado de trabalho, que nem sempre contrata por capacidade ou formação profissional. O que faz com que o racismo aconteça nos processos seletivos e contratações, mas não seja percebido, principalmente, por pessoas brancas.
Mas essa desigualdade é realmente comprovada?
Uma pesquisa chamada: “Perfil social, racial e de gênero das 500 maiores empresas do Brasil”, realizada em 2016 pelo Instituto Ethos, mostra como os maiores cargos das 500 maiores empresas do Brasil são ocupados por pessoas brancas:
Segundo o Instituto Ethos, no ritmo que o país está, a igualdade racial no ambiente de trabalho só será alcançada daqui a 150 anos.
Não é estranho um país com mais de 119 milhões de pessoas negras ter pouquíssimos negros em posição de liderança e chefia?
Isso tudo acaba sendo uma herança da época da escravidão que ainda perdura e, na maioria das vezes, não é vista ou percebida por pessoas brancas. Para o professor Nelson Fernando Inocêncio da Silva, do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade de Brasília (UNB), a falta de oportunidades realmente faz parte da herança colonial brasileira:
“O Brasil foi o principal destino do tráfico atlântico de escravizados, chegando em alguns períodos a receber 40% de todo o contingente de africanos trazidos à força para as Américas. Apesar de ter hoje a segunda maior população negra do mundo, atrás apenas da Nigéria, o país mantém os brancos no comando”.
Essa falta de chefes negros não tem nada a ver com a falta de capacidade, mas é fruto do próprio racismo que faz com que homens brancos tenham maior poder de decisão dentro dos espaços empresariais:
“Existe o processo de promoção dentro das empresas. Quando você olha para cargos mais altos, os negros não estão fora porque têm menos capacidade, mas porque não são promovidos. Quem decide a promoção são os brancos.” Renato Meirelles, presidente do Instituto Locomotiva.
Isso vai se refletir também nos salários para cargos de diretoria e gerência. A pesquisa do Instituto Locomotiva mostra que homens negros com ensino superior ganham em média R$4.990,00 por mês, já os homens brancos com ensino superior chegam a ganhar 46% a mais, cerca de R$7.286,00
Quando esse estudo faz um recorte acerca das mulheres, as mulheres negras ganham em média R$3.067 e as mulheres brancas ganham R$4.566,00. Portanto, mesmo que pessoas negras tenham a mesma formação profissional, os negros acabam ganhando menos para realizar as mesmas funções.
A partir de todas essas informações, notamos que para uma herança histórica de desigualdade do povo negro, se faz necessário a construção de uma reparação histórica para que possamos então acessar aquela igualdade citada na Constituição. As cotas raciais são parte desse processo.
Raça é prioridade!
O Pacto Global da ONU Brasil está realizando o Movimento Raça é Prioridade. A meta é promover mais de 15 mil pessoas negras (negras, indígenas, quilombolas, ou pertencentes a outro grupo étnico minoritário) em cargos de liderança até 2030, tendo 20 mil pessoas negras capacitadas, com mais de 1.500 empresas comprometidas com essa meta.
Um caso de sucesso
Em 2020, a empresa Magazine Luiza tornou o seu programa de treinee, processo de treinamento de profissionais em início de carreira, exclusivo para pessoas negras. A empresa recebeu muitas críticas, inclusive de estar promovendo um suposto racismo reverso. Um argumento que não se sustenta, pois racismo reverso não existe. Pessoas negras não têm poder estrutural e institucional para excluir pessoas brancas ou oprimi-las. Isso se comprova pelo fato de as pessoas negras não serem maioria nos espaços de poder, decisão e contratação. Espaços esses todos organizados e liderados por pessoas brancas.
O programa de trainee só para negros do Magazine Luiza vem sendo feito todos os anos desde então e oferece um salário de R$6.800,00 para os selecionados. Além de não exigir experiências profissionais anteriores ou fluência em inglês.
A empresa não fere o artigo 5º da Constituição Federal sobre igualdade, muito pelo contrário, ela ajuda a garantir igualdade, a fim de que todas as pessoas possam ter maior possibilidade de partir do mesmo lugar e ter as mesmas condições e oportunidades para alcançar e realizar os seus projetos de vida.
Isso é reparação histórica e promoção de igualdade.
Que possamos apoiar essas ações em espaços nos quais estamos inseridos.
“Eu não sou racista, qual é meu papel nessa conversa?”
Podemos fazer um exercício inicial de reflexão juntos:
- Qual é a posição das pessoas negras nos lugares em que eu frequento para diversão? Elas estão todas trabalhando ou estão frequentando estes espaços?
- Quantas pessoas negras têm no meu trabalho? Elas estão em posição de liderança?
- Dentre os meus artistas favoritos, quantos são negros?
Um segundo passo:
- Se eu presencio uma situação de racismo, o que eu faço? Me calo ou intervenho?
- Se uma pessoa negra aponta que estou tendo uma atitude racista, como eu reajo? Tento me justificar ou reflito sobre esta situação?
A partir dessa reflexão, dois livros podem nos ajudar muito nessa jornada antirracista:
– Pequeno Manual Antirracista da Djamila Ribeiro
– Racismo Estrutural do Silvio de Almeida
Enquanto pessoas brancas precisamos nos repensar e nos revisar constantemente. Isso começa por essas observações cotidianas sobre mim mesmo, as minhas relações, afetos, como o mundo está distribuído à minha volta, e como percebo e reajo diante da desigualdade racial. Mas principalmente, como me alio nas propostas de reparação dessa sociedade historicamente tão desigual na qual vivemos. Não é sobre culpa, é sobre responsabilidade e ação concreta.
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