Sexo sem camisinha em filmes pornográficos é seguro? Afinal, todos os atores fazem testes de HIV periodicamente…
Saiba qual é a brecha no teste de HIV que contaminou atrizes pornôs é até hoje é largamente ignorada no Brasil, expondo todos ao risco. Incluindo você (seja pornstar ou não).
Porn Valley
O Porn Valley é o carinhoso apelido para San Fernando Valley, que fica do outro lado de Hollywood, em Los Angeles. O motivo do nome é que 90% dos filmes adultos americanos são produzidos ou editados no Porn Valley. Para decolar na carreira, atrizes de todo o mundo acabam se instalando nas redondezas.
Essa concentração geográfica contribuiu muito para a explosão da indústria. Na década de 70, quem filmava filme pornô estava sujeito a riscos de ser processado por distribuição de material obsceno. Tudo era muito underground.
Considerando o ambiente regulatório anti-pornografia e a dispersão dos produtores e atrizes, é com espanto que surgiram clássicos como Deep Throat (1972), The Devil in Ms. Jones (1973) e Debbie Does Dallas (1978). Hoje tudo é mais organizado. Ou quase.
Apesar dos custos de transação existentes, o que a cena “todo mundo conhece todo mundo” do Porn Valley trouxe de bom foi uma eficiente rede de proteção contra o HIV. Ou quase.
Antes de contar a história de como a AIDS foi do Brasil para o Porn Valley, paralisando a indústria e colocando todo mundo em quarentena, esclareço que gosto de pornografia e não sou falso moralista, mas também não estou fazendo apologia. Para ter neutralidade na abordagem, comecei contando “O Lado Negro do Pornô” para nos próximos textos apresentar o papel fundamental da pornografia no avanço tecnológico e de marketing digital.
Vamos agora continuar a série [PdH Porn]…
Estupradores e AIDS
Com a exposição que o trabalho gera, a chance de atrair fãs sinistros, psicopatas e sequestradores aumenta consideravelmente. O Boteco Sujo conta como a Pamela Butt quase foi sequestrada duas vezes, mas escapou.
A atriz pornô americana Sharon Mitchell não teve a mesma sorte.
Em uma carreira que conta mais de dois mil títulos na filmografia, abuso de heroína e diferentes DSTs, em 1996 um fã psicopata a seguiu, esmurrou seu nariz e a golpeou repetidamente na cabeça para deixá-la inconsciente e a estuprar. Ela apenas não morreu por conseguir rastejar até a porta, onde deixava seus halteres. Mesmo com o nariz quebrado em cinco partes, Sharon conseguiu revidar aos ataques do estuprador com alguns quilos de ferro.
A experiência foi traumática. Sharon Mitchell largou o mundo do pornô e foi atrás de um Ph.D. em sexologia pelo Instituto de Estudos Avançados de Sexologia Humana. E hoje é a fundadora da AIM Healthcare – Adult Industry Medical Healthcare Foundation, uma organização sem fins lucrativos fundada para cuidar das necessidades físicas e emocionais dos profissionais do sexo através de testes de AIDS e programas de aconselhamento e terapia.
A doutora Sharon Mitchell teve um papel fundamental no controle do maior medo da indústria do pornô: AIDS. Com sua experiência, treinamento e contatos, ela conseguiu o respeito da comunidade do Porn Valley, que recebeu com satisfação seus serviços de testes HIV. Todos os atores fazem seus testes com regularidade, num exemplo de auto-regulamentação que funcionou por muitos anos, até dar merda por conta de uma brecha no sistema.
O ator Darren James veio pro Brasil filmar pornô. Voltou para os EUA, fez testes que deram negativos e continuou filmando com outras atrizes. Em testes futuros, o resultado foi positivo. Surpresa: os sinais do HIV podem demorar algumas semanas para aparecer no sangue.
É o que nosso querido Dr. Health explica com o conceito de “janela imunológica” nos comentários de seu texto inaugural:
“Trata-se do tempo que o organismo leva para formar anticorpos contra o vírus na vigência da primeira infecção. Ou seja, você transou sem proteção, acha que foi contaminado e fez o exame logo depois, digamos, dois dias. Este exame pode dar negativo mesmo se você tiver sido infectado, pois seu organismo necessita pelo menos um mês para produzir anticorpos em quantidade suficiente para o exame “positivar”. Esta é a chamada janela imunológica, e dura mais ou menos um mês. Em resumo: um exame HIV negativo indica que até o mês anterior, você não se contaminou!”
Pois é: o sistema de testes é intrinsecamente falho, a não ser que cada participante da indústria de porn fique sem transar (tanto diante como fora das câmeras) sem camisinha durante algumas semanas para cada filmagem e novo teste. O tempo varia conforme o caso e o método usado para o teste. De todo modo, quem acompanha o ritmo de atores em alta demanda sabe que é muito comum que mais de uma foda seja feita por dia. É o caso de Darren James.
De onde veio exatamente o bichinho? Ninguém sabe ao certo. Enquanto o que se alega nos EUA é que Darren James tenha contraído o HIV de Bianca Biaggi, a imprensa brasileira insinua que o ator tenha tido relações com travestis.
O caso deu um bafafá danado e no fim da história a possível epidemia foi controlada: quatro profissionais, incluindo Derren, foram localizados pela AIM. Uma das vítimas contaminadas era a novata canadense Laura Roxx, que esperava apenas filmar por curto período em Los Angeles para retornar ao Canadá. Seu primeiro parceiro foi Derren James no filme Split That Booty 2 e foi nesse filme que ela condenou sua própria vida. As outras atrizes que também foram contaminadas são Miss Arroyo e Jessica Dee.
A fragilidade do controle baseado em testes de HIV está relacionada à janela imunológica e até mesmo a fraudes. Rolava uma história em que em Budapeste, capital do pornô europeu, tinha um soropositivo usando o teste de seu irmão gêmeo e fazendo de tudo para infectar o maior número de pessoas da indústria.
É por essas e outras que alguns produtores de filmes gays, como Chi Chi Larue (que é também diretor de filmes hetero para a Vivid) insistem no uso da camisinha e não confiam nos testes.
É fácil culpar os produtores pela prática arriscada, mas o grande problema é que parte dos consumidores odeia assistir cenas com preservativo. Para não perder essa fatia de mercado, os produtores e atores arriscam sua saúde e bolso. Tanto Darren James como a iniciante Laura Roxx estão com processos na justiça contra aqueles que acreditam ser os responsáveis.
Minha experiência: descaso total
Já faz alguns anos que eu conheci a “Comunidade da Sedução” e, depois de trancos e barrancos, tentando diferentes técnicas e me encontrando com os tipos mais bizarros, consegui o resultado desejado, com excelentes memórias e experiências sexuais.
Em minhas presepadas, sempre usei camisinha, por saber que a prática de ter múltiplas parceiras aumentava minha exposição a algo indesejado. Como nunca usei droga injetável ou tive acidentes pérfuro-cortantes (as outras possibilidades de contaminação apontadas pelo Dr. Health), meu risco era praticamente zero.
Até quando conheci Nina, uma croata de corpo exuberante e um coração de ouro. Foi daquelas paixões de mergulho, que imediatamente deixam ambos confortáveis e íntimos. Transamos sem preservativo.
Essa única vez serviu de lição. Fiquei preocupado, mas já estava feito… e a tensão no post coitum ia aumentando. Quebrei o silêncio assegurando que era a minha primeira vez sem a borracha. Nina, mais aliviada, me disse que era sua segunda vez.
Não sabia se eu ficava aliviado ou preocupado. A pergunta não quis calar e pedi mais informações. “Quem pergunta o que quer, ouve o que não quer”: o outro parceiro era um desconhecido de balada. One night stand. Pronto, fiquei paranóico.
Quando voltei ao Brasil, procurei um médico do plano de saúde para o check-up de rotina. Colesterol, essas coisas. Ah, por favor doutor, marque também teste de HIV, que é bom ter, né? O médico não perguntou nada, atendendo prontamente meu pedido. Teste de HIV estava marcado logo abaixo do pedido de hemograma completo.
Na clínica, também tudo foi rotineiro. Não recebi qualquer orientação especial. Acho que junto com a papelada tinha algum folheto de comentários genéricos sobre AIDS. Aquelas coisas que a gente está cansado de ler e acaba pulando. Mas uma coisa que eu lembro é que o papel dizia que se o teste desse positivo, era pro paciente não entrar em desespero e fazer um segundo teste, pois poderia ser um falso-positivo, dada a sensibilidade proposital do mecanismo.
O teste deu negativo. Já aliviado, procurei por mais informações, só pra ter certeza. Afinal, se existe falso-positivo, talvez houvesse um “falso-negativo”…
E foi aí que conheci mais sobre a Janela Imunológica. Deixei passar o tempo necessário, e marquei o segundo teste. Somente com o segundo negativo é que fiquei tranquilo.
Bronca
O que me impressiona dessa história toda é como o sistema não está projetado para esclarecer essa brecha.
O teste do Darren James – e de todos os atores de filme pornô que ignoram a janela imunológica – é uma grande ilusão de segurança.
Como até hoje eu participo da tal Comunidade de Sedução e por isso troco ideias com muitos leitores, fico preocupado com o que vejo. Vou aproveitar o espaço do PdH para meter bronca: é praticamente um crime não alertar com clareza que existe a possibilidade do negativo ser, no fim das contas, um “falso-negativo” se a janela imunológica não for observada.
Não adianta deixar uma explicação escondida em algum lugar que ninguém lê. Alô, autoridades de políticas públicas e saúde! Cadê o alerta obrigatório sobre a janela imunológica?
Explico o que quero dizer: doei sangue anos atrás e lembro que antes de espetarem qualquer agulha, me perguntaram se eu tinha transado em troca de drogas ou dinheiro. E eu lá tinha cara de drogado ou michê?
Descobri mais tarde que essas perguntas eram parte de um procedimento padrão regulado pela ANVISA (Resolução 153 de 2004 que, entre outras coisas, define “Situações de Risco Acrescido”). Se existe algo regulado nesse nível de detalhes, por que não exigir também uma orientação clara sobre a possibilidade do teste não cobrir a janela imunológica?
Acho que isso é importante pois quem vai até um médico pedindo um exame de HIV, igual quem pede duzentos gramas de mortadela na padaria, geralmente tem alguma história cabeluda escondida, mas disfarça com cara de paisagem:
• É aquela menina que durante anos só transou com camisinha, mas ontem o preservativo rompeu.
• É o gay ainda enrustido que, para se soltar mais, acabou exagerando no álcool e talvez tenha se enroscado com penetração no dark room de uma balada, mas ele não lembra direito.
• É o casal consciente que resolveu se dedicar a um relacionamento monogâmico e que combinou de fazer o teste antes de começar a transar sem camisinha.
• É aventureiro apaixonado transando no meio da antiga Iugoslávia sem proteção…
E outras infinitas possibilidades, que eu não preciso listar aqui.
O elemento comum é que quem vive apertos desse tipo vai correndo fazer o exame, sem saber todos os detalhes da janela imunológica. Principalmente quando a história é comprometedora, o paciente não sai explicando para o médico o motivo de querer o exame – reduzindo ainda mais suas chances de saber que o resultado negativo pode estar comprometido.
Quando eu pedi o meu exame, não recebi qualquer orientação nesse sentido – mas talvez eu tenha tido azar na escolha do médico e da clínica. Talvez a culpa seja minha, pois falhei na minha responsabilidade como paciente em confiar e contar todos os detalhes.
No entanto, se o sistema assume que é o paciente quem tem a responsabilidade de espontaneamente dar detalhes dos motivos pelos quais quer o exame, ou se supõe que basta entregar um folheto explicativo no dia da coleta, eu desconfio que esse sistema não é confiável o suficiente. Na minha experiência, eu senti falta de profissionais mais proativos em esclarecer que pode ser que dois testes sejam necessários, ou aguardar alguns dias a mais antes de realizar o exame.
Imagine o potencial da merda em acreditar no teste como base para poder transar sem proteção sem levar a janela imunológica em conta… Aconteceu no mundo do porn e continua acontecendo fora, colocando todos nós em risco. Como poderíamos aperfeiçoar a conscientização pública?
Esta foi a continuação de “O lado negro da pornografia”. O próximo texto da série [PdH Porn] terá uma abordagem mais positiva, contando como a pornografia impulsiona a evolução tecnológica e novos modelos de negócio.
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